A única verdade que nos acompanha desde a nascença é a realidade de que algum dia iremos morrer. No entanto, a consciência da própria mortalidade paralisa os seres humanos, levando-os a reprimir este lembrete sobre a efemeridade da vida.
A repressão do medo de morrer, por outras palavras, a negação da morte, é descrita, pelo célebre psicoanalista Sigmund Freud, como um mecanismo de defesa em que uma pessoa lida com uma percepção traumática através da negação da realidade da mesma.
A postura das diversas culturas sobre a morte, o ethos da morte, proporciona uma espécie de ordem e sentido à mortalidade, servindo de alicerce social contra o caos associado à não aceitação do nosso destino. Ernest Becker, antropólogo e autor do afamado livro The Denial of Death, estendeu a noção de ethos da morte, afirmando que as culturas bem sucedidas fornecem aos indivíduos estruturas bem delineadas para que possam vencer o medo da morte, nomeadamente através da religião.
Estas doutrinas proveem narrativas plausíveis que permitem negar o derradeiro significado do cessar da vida, o fim da nossa existência. Por exemplo, na concepção Budista a existência é meramente uma ilusão de sofrimento, ultrapassada pela iluminação quando se atinge o Nirvana ou, por outro lado, na religião Cristã é prometida a vida eterna aos fiéis.
Facilmente poderíamos discutir qual a doutrina que garante a maior alienação face ao significado real da morte. Não pretendo, no entanto, embarcar por esse caminho, pois qualquer indivíduo possui a liberdade de lidar com a sua mortalidade sem represálias, desde que não interfira com a liberdade de outrem.
Apesar de tudo, a nossa natureza egoísta impede-nos muitas vezes de fazer uso do que nos distingue dos animais, a razão, utilizando o nosso intelecto em criações que desafiam a própria humanidade.
Entre elas encontra-se o site http://eterni.me/, serviço criado pelo Entrepreneurship Development Program do MIT, que oferece aos utilizadores a possibilidade de se imortalizarem virtualmente, através da criação de um avatar que permite uma interação bastante fidedigna, de modo a que, aquando da sua morte, os seus entes queridos sejam ainda capazes de interagir consigo.
Ao visitarmos o site somos recebidos com a utópica pergunta Quem quer viver para sempre?, seguida de uma breve introdução que deveria ser suficiente para que ninguém desejasse beneficiar deste serviço: Eternime preserva os teus pensamentos mais importantes, histórias e memórias para a eternidade.
Quando os usuários se inscrevem, Eternime recolhe diversas informações nas diferentes contas do indivíduo, tais como o Facebook, Twitter, mail, as fotografias e o histórico da posição geográfica do mesmo, entre outras. Uma vez feita a colheita de informação, Marius Ursache, CEO da empresa, diz que existem dois processos essenciais: uma fase inicial de “fazer sentido” dos dados colhidos e a fase da “imitação” em si.
“Obviamente a fase de ‘fazer sentido’ e de ‘imitar’ são bastante primitivas actualmente. No entanto, interagindo periodicamente com o seu avatar, vai permitir que o mesmo faça mais sentido nos próximos 30-40 anos que ainda tem para viver. Desta forma, torna-se mais preciso e irá conhecê-lo melhor com o tempo”
Marius Ursache
Custa-me acreditar que já existam cerca de 29.000 pessoas inscritas (11 de Maio de 2015, fonte: eterni.me), dispostas a acreditar nesta visão doentia da nossa existência.
Já nos é suficientemente difícil lidar com a morte de uma maneira natural, logo, qual a necessidade de criar novas formas de sofrimento?
“Somos conscientes do drama associado ao tema da morte. Para nós é muito importante enfatizar que não queremos preservar as banalidades da vida de uma pessoa, mas gostaríamos de criar um legado que permitisse que os netos interagissem com o seu avô”
Marius Ursache
Para além de esta frase não fazer sentido, como iríamos explicar a esses supostos netos que esse avatar na realidade não passa de algoritmos de inteligência artificial, não vivos, que, no entanto, simulam perfeitamente a realidade?
Existem diversas empresas que garantem serviços semelhantes, tais como a Legacy Locker, Entrustnet, Deathswitch ou a Life.Vu, mas nenhuma promete a complexidade garantida por Eternime.
Ao darmos asas a estes projectos estamos a ser egoístas num campo que nem sequer sonhei que o pudéssemos ser. Após a nossa morte, a interação dos nossos familiares e amigos com o nosso avatar só tornará mais frustrante o nosso desaparecimento e mais difícil a dor do nosso fim, pois existiremos apenas como um intelecto virtual, dependente de uma ligação a um servidor e impossibilitados de os abraçar, de os tocar, de os beijar ou de sentir.
Irei depositar a minha esperança em que magicamente consigamos absorver, como sociedade, estas palavras sábias do Ricardo Reis:
“Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.
Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
Que a Sorte nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.
Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.”
Texto: Maria Sbrancia