Autoria: Professora Teresa Peña
Quando nasci, por mais estranho que isso possa parecer hoje, a minha mãe não podia viajar sem autorização do meu pai, pois a emissão de passaporte exigia essa autorização. E só durante a minha infância em Portugal, as mulheres passaram a poder, pela lei, exercer profissões liberais, ser funcionárias públicas e realizar obras literárias e artísticas sem necessidade de consentimento dos maridos. A atividade científica no feminino não vinha certamente citada nessas leis.
Para lá de qualquer realidade jurídica, a minha mãe sempre me transmitiu, a mim e às minhas irmãs, que nós determinamos o nosso próprio destino e os nossos limites, e que a nossa independência é um valor sagrado. Creio que isso ajudou a tornar-me cientista, quando ainda praticamente não se falava de Ciência em Portugal. Talvez também pela força das personalidades das minhas avós — a família onde cresci era dominantemente matriarcal — nunca pensei que devia (não) ser isto ou aquilo devido ao género com que nasci. Claro que o género me define em grande parte. Mas intrinsecamente nunca o senti como limitação. A primeira vez que me questionei se poderia ser limitação, foi no estrangeiro, como pos-doc na Alemanha e depois nos Estados Unidos. No Instituto em Hannover, para lá de mim, só a secretária era mulher. O mesmo nos Estados Unidos. Percebi então que era vista pelos meus colegas como uma curiosidade, mas como eram intelectuais liberais davam-me o benefício da dúvida, e os que me contrataram sentiam-se auto-satisfeitos nesse seu papel progressista. Na início da minha vida como cientista, também percebi que para ser eficaz nas Conferências a dar palestras, tinha de colocar a voz de uma certa maneira, e adoptar uma postura de autoridade que não era exactamente o que sentia “por dentro”.
O meu interesse pela ciência começou numa aula de Física, tinha eu 13 ou 14 anos. A professora perguntou o que é que acontecia à luz quando encontra um obstáculo. E eu achei que era uma pergunta fácil. Desconhecia o conceito de ondas e que a luz se propaga como uma onda. Mas achei que a resposta era muito óbvia: a luz contorna os obstáculos, a luz não pára com os obstáculos , espalha-se por todo o espaço! Para mim aquilo era tão intuitivo que decretei, na minha ingenuidade: a ciência é muito simples, basta observar bem o que passa à volta. No meu quarto conseguia ver a luz que vinha do corredor mesmo que não estivesse à frente da porta. Por isso a luz “virava-se” na ombreira da porta. Aquela pergunta simples, criou qualquer coisa nova em mim, levou-me a fazer um percurso da observação até à explicação para lá da observação. Foi uma sensação engraçada, até porque a minha resposta na aula foi considerada perfeita na altura! Na ciência, é como dizia Fernando Pessoa, na personalidade Alberto Caieiro, “O essencial é saber ver “. E tudo começa com perguntas.
Mas porque eu era asmática, o que eu queria era ser médica para me curar e aos outros. Só depois decidi não estudar medicina porque pensava que Medicina era fazer clínica e ver a morte muito perto. E o que eu queria era perceber porque tinha asma, o que era um anti-histamínico e porque é que a cortisona levava uma eternidade a atuar nos meus ataques de asma. A ciência apelou-me primeiro através da curiosidade sobre a doença. Talvez fosse isso que mais tarde me envolveu na criação do curso em Engenharia Biomédica no Técnico, com o impulso do Jorge Dias de Deus.
No fim do secundário percebi que também tinha algum jeito para matemática, mas pus logo de lado porque considerava a matemática como a arte. A arte é muito bonita, mas eu queria fazer alguma coisa que atuasse no mundo. Sempre gostei de coisas bonitas, mas achava erradamente que a arte era como decoração. Agora tenho uma visão diferente e sei que a arte tem uma atuação decisiva na humanidade e na evolução da sociedade. É transformativa, embora de forma diferente da Ciência. Eu queria o lado material da matemática, e esse lado era, e ainda acho que é, a Física.
Quando estava no último ano do secundário tive outra professora… estas duas professoras tiveram uma influência muito importante… que nos disse que havia um livro interessante de Física, escrito pelo Einstein para nós lermos. Depois vim a saber que consta que o Einstein não escreveu grande parte do livro, mas sim o co-autor Leopold Infeld. Naquela altura não havia Gradiva, portanto eu li uma edição dos Livros do Brasil. Era a introdução à física, Do Newton aos Quanta. E lembro-me de estar deliciada a ler, esticada ao Sol nas férias —as férias nessa altura eram eternas, o que era muito bom— um livro muito pequenino, preto e verde, com a cara do Einstein despenteado dentro de uma moldura verde. Estava a ler e lembro-me da alegria que sentia por entender o que estava a ler. O livro não tinha fórmulas matemáticas. E foi um livro decisivo nas minhas escolhas do futuro! Foi o me fez decidir estudar física.
Tudo começou com gostar de perguntas, a curiosidade, a doença também, a Física que explicava coisas para lá da matemática, a Física que permitia atuar sobre as coisas. Foi por causa de um livro, duas professoras, e as mulheres da família que me tornei cientista. As mulheres, na família e na escola, foram importantes.
E as mulheres em Ciência fazem diferença?
Parece-me uma hipótese natural que mais talento para a Ciência advém da diversidade de género de quem participa nas equipas. O olhar diferente traz métodos e ideias diferentes e o confronto de perspectivas é importante. Para se aprender, ensinar e Investigar, como fazemos no Técnico, temos, como dizia Alberto Caeiro, de fazer “ …um estudo profundo, uma aprendizagem de desaprender”.
Por fim, nesta semana que Celebra a Mulher, alguns números sobre o desequilíbrio de género num mundo onde 50% são homens e 50% mulheres:
O relatório “Global Gender Gap” do World Economic Forum de 2020, analisou dados mundiais que medem o estado actual do hiato de género. Este hiato é definido por indicadores em quatro dimensões: Educação, Saúde e Sobrevivência, Participação Económica e Oportunidade, Fortalecimento Político. Os resultados nos dois primeiros indices ( Educação e Saúde) dão hiatos de género preenchidos já respectivamente a 96,1% e 95,7%, estando a menos de 4% de estarem fechados. A conclusão é que o acesso das mulheres à Educação está a progredir bem.
No entanto os dois últimos índices (os Papéis da mulher na Economia e na Decisão Política) são 58,8% e 24,7%, tendo ainda de subir 40% e 75% para se fecharem os hiatos! Isto significa que as mulheres ainda não chegaram aos lugares de maior impacto económico e público, e a sua esfera de ação é ainda limitada quando comparada com a dos homens. Os dois índices fazem descer o índice de hiato global para 69%.
Outra conclusão deste estudo é que embora tenha havido ao longo dos anos progresso em todos os quatro indicadores, vão ser precisos 95 anos para o índice de Fortalecimento Político fechar o hiato, e cerca de 100 anos para se fechar o hiato global. A geração das/dos estudantes do IST de hoje e os seus filhos vão fazer pois muita diferença ainda.
No índice Educação estamos só a 12 anos de se fechar o hiato de género. Isto é uma boa notícia para Ciência e a Engenharia, pois com a diversidade de género e uma participação maior na Ciência e na Engenharia vem mais talento. Se na Cência se passa o que acontece na Economia, onde o crescimento de empresas com forte liderança feminina foi maior que nas restantes, ao diminuir-se o hiato ligado aos cargos de poder — o que está a ser mais lento — as instituições científicas irão crescer melhor. Portugal, no índice do hiato de Educação está no 73º lugar numa lista de 153 países. A Austria é o país europeu que comanda esta lista, estando os Estados Unidos no lugar 34, o Reino Unido no 38. Além do índice Educação, a evolução do indicador de hiato global vai ser muito importante no hiato de género em Ciência e Engenharia, pois se estas impactam a Economia e a Saúde o recíproco também acontece.
Nas últimas eleições para o Conselho Pedagógico no Técnico o número de alunas candidatas excedia o de alunos. Foi um facto histórico na Escola. O Técnico está mesmo a mudar, como o resto do mundo está. No mundo em aceleração profunda, a minha conclusão é que precisamos de fazer mais e melhor ciência mais e melhor engenharia para resolver os problemas crescentes – nos recursos, na saúde, na distribuição da riqueza, do conhecimento. E as mulheres fazem-no tão bem como os homens.