Autoria: João Carranca (LEEC)
Os Censos 2021, que saíram na íntegra apenas no final do ano passado, são a chave para entender o Portugal de hoje e talvez nos permitam perceber melhor o que nos espera. O documento de 132 páginas está repleto de gráficos, tabelas e indicadores estatísticos muitas vezes surpreendentes que pintam um retrato muito completo de Portugal nas mais diversas áreas e que talvez nos ajudem a perceber o que podemos esperar das próximas décadas.
Começando pelo tema que domina sempre as manchetes, a população portuguesa sofreu uma quebra de cerca de 2%, como já era esperado. Trata-se de uma tendência que já tem décadas sobre a qual a nossa geração ouve falar praticamente desde o 1.º ciclo. A situação demográfica em Portugal, tal como no resto da Europa Ocidental, é bastante preocupante e reflete-se por exemplo no índice de rejuvenescimento da população ativa que neste momento é de 76, o que significa que por cada 100 pessoas que saem do mercado de trabalho apenas 76 entram. É natural que os dados do envelhecimento e das quebras de população dominem a discussão pública, mas a verdade é que se trata apenas da ponta do icebergue. No tema da educação vemos talvez a primeira grande surpresa. Não se trata de uma área em que as tendências se tenham alterado drasticamente desde 2011, mas os valores absolutos talvez espantem muita gente.
Apenas 21,2% da população acima dos 21 anos possui algum grau de ensino superior completo. Mais problemático ainda, destes 21,2% apenas cerca de um quinto possui um mestrado, o que significa que alguém que possua um mestrado em Portugal pertence ao Top 4.45% de pessoas com mais estudos. Paralelamente, quase 51% da população não tem mais do que o 9.º ano, com 25% dos restantes a ficarem-se pelo 12.º ano, sendo que 6% não tem qualquer grau de ensino.
Os dados supramencionados colocam Portugal muito abaixo da média da OCDE em todos os parâmetros. Quase nenhum outro país se aproxima de Portugal no que toca à percentagem de pessoas com apenas o ensino básico ou menos: é 57% da população, um número que envergonha. Olhando para as tendências laborais, vemos uma reflexão forte dos dados da educação. Apenas cerca de 49% da população diz ter como principal fonte de rendimento o trabalho. Este número por si só não nos diz tudo, porque como é óbvio existe uma parte significativa da população que está reformada. No entanto, mais uma vez, é um número que está consideravelmente abaixo da média da OCDE e que tem um impacto considerável nos baixos índices de produtividade do país. De destacar aqui a desigualdade de género presente nestes dados: apenas 44,5% das mulheres diz ter o trabalho como principal fonte de rendimento face a 53% dos homens. Na distribuição profissional dos portugueses destacam-se os 15% de trabalhadores não qualificados, o que representa uma redução face aos números de 2011 mas que continua a ser elevado. Destes 15%, a esmagadora maioria são precários e trabalham no setor privado.
A forma como os portugueses se deslocam diariamente também nos traz informações algo inesperadas: Mais de 60% usam o carro, com a esmagadora maioria desses a viajar como condutor. Por outro lado, o segundo meio de transporte mais usado não é o comboio, nem sequer o autocarro. 16,4% das pessoas efetua as suas deslocações diárias maioritariamente a pé.
Os dados para o comboio e o metro, por exemplo, são tão residuais que não aparecem no gráfico de forma explícita. Para ver esses, é preciso descer algumas páginas e olhar para a tabela detalhada com os dados indexados por região:
Já toda a gente sabe que no Interior, em particular nas regiões do Alentejo e do Algarve, o comboio praticamente não tem expressão enquanto meio de transporte, apesar de estar presente. Isto deriva do brutal atraso de desenvolvimento que os comboios nestas regiões têm, com horários péssimos, frequência reduzida, poucas paragens e velocidades do século passado. Para a maioria das pessoas no Interior, nem para viajar até Lisboa faz sentido usar o comboio, com custos comparáveis aos que se teria usando o carro e tempos de viagem muito maiores.
A surpresa está nos números das regiões urbanas, nomeadamente na AM Lisboa. Lisboa e Porto são as únicas regiões onde de facto pode fazer sentido para muita gente usar o comboio e em particular o metro. No entanto, aquilo que vemos são números apenas um pouco melhores do que aqueles que existem a nível nacional. Apenas 10,9% dos inquiridos dizem usar Metro/Comboio como meio de deslocação diário, preferindo esmagadoramente, mais uma vez, o carro. Isto apesar dos problemas inerentes ao carro como as filas enormes em hora de ponta, à entrada e à saída do concelho de Lisboa que atrasam significativamente qualquer deslocação ou o custo mensal que é significativamente mais elevado que o de um passe metropolitano. Trata-se de um indicador que pinta o atraso tecnológico da infraestrutura pública mesmo na área mais desenvolvida do país, que tem um avanço brutal em relação às restantes.
Em relação à área da habitação, de notar o agravamento da degradação dos edifícios para este propósito a nível nacional: 35,8% destes edifícios precisam de intervenções, com 4,6% a precisar de intervenções profundas e 9,4 % a precisar de intervenções médias. Houve uma redução muito significativa no que toca a construção de parque habitacional nesta última década, conforme se pode constatar no gráfico seguinte.
O ritmo de construção, que se mantinha mais ou menos constante desde a década de 70, sofreu uma queda abrupta entre 2011 e 2021, praticamente estagnando. Esta é uma das principais razões para a escassez de alojamentos que se verifica atualmente nas áreas urbanas e para a subida acentuada dos preços das casas em Lisboa. Devido a esta falta de construção, houve também um agravamento do índice de envelhecimento dos edifícios que agora se situa em 747. Isto significa que para cada 100 edifícios construídos depois de 2011 existem 747 edifícios construídos até 1960. No Alentejo este número chega aos 1626.
Finalmente, falta falar do outro grande tema que domina a discussão pública quando saem os resultados dos Censos: a emigração. Como evoluíram os números da emigração na última década, especialmente na era pós Troika?
No total, entre 2011 e 2021 saíram do país cerca de 1,054 milhões de portugueses (o equivalente a quase 10% da população total), dos quais 420 mil de forma permanente. Expectavelmente, foram os anos da Troika que mais contribuíram para esta estatística, mas a redução no pós Troika não é substancial o suficiente. Excluindo os anos de 2020 e 2021, anos de pandemia, o último número disponível é cerca de 77 mil saídas, menos do que no ano anterior mas demonstrando uma tendência de estabilização ou redução lenta. A percentagem de saídas permanentes neste último ano antes da pandemia foi quase a mesma que a observada no pior ano do registo, 2014: 36,6% e 36,7% respectivamente.
A nível de educação dos que saem do país, é, como esperado, muito acima da média nacional. Em 2019, 42,3% de todos os que saíram tinham pelo menos a licenciatura, mais do dobro da média nacional, e apenas 28,3% tinham o ensino básico ou menos, quase metade da média nacional.
Que retrato podemos então afinal pintar deste país? Portugal é hoje uma nação envelhecida, educacionalmente muito atrasada em relação ao resto da Europa, deteriorada a nível de infraestruturas, fraquíssima nos transportes públicos e pouco atrativa para os mais qualificados. Continuando este caminho que tem dominado as últimas décadas, o futuro é tudo menos brilhante. O que se pode fazer para mudar de rumo o mais depressa possível? Para começar, é preciso uma reestruturação dos sistemas de transportes públicos, tanto no litoral como no interior, nomeadamente, o sistema de comboios nacional. A infraestrutura da CP está 30 ou 40 anos atrás da linha férrea francesa ou japonesa. Ir de Osaka a Tóquio, uma travessia de quase 600 km de comboio, o mesmo que de Lisboa a Madrid, demora menos de 2 horas. A viagem de Lisboa a Leiria, cerca de 150 km, demora 3 horas e 50 minutos de comboio. O nosso problema de baixa escolaridade só é resolvido com um melhor sistema de ensino, a começar no pré-escolar, e com a disponibilização em massa de programas de ensino para os mais velhos que foram deixados para trás ao longo das décadas e nunca tiveram a oportunidade de frequentar níveis mais elevados de ensino. Tudo isto implica um enorme investimento estatal e uma revitalização de vários setores que nunca recuperaram das várias crises ao longo dos últimos anos, como o setor da construção.
A lista de projetos e medidas concretas para abordar o problema é longa. Tão longa que talvez dedique artigos específicos a várias delas no futuro mas acima de tudo, acima de qualquer medida específica, precisamos primeiro de uma mudança generalizada de mentalidade que comece na classe política e atravesse todos os outros setores da sociedade. Hoje em dia quase nenhum português acredita em Portugal, quase ninguém tem esperança num futuro para si ou para os seus que não passe pela deterioração da qualidade de vida. Os políticos das últimas décadas não cultivaram essa esperança, mas a verdade é que ela existe. Portugal não está destinado ao declínio, preso a algum futuro particular pelas cordas do destino. O futuro depende das decisões de hoje.
Referências:
- Censos (2021)
- INE, PORDATA
- Observatório da Emigração
- Banco de Portugal