‘Quem canta, seus males espanta’. O adágio é secular e a actividade a que concerne remonta aos primórdios da humanidade. O bucolismo do campo, mas sobretudo os homens e as mulheres que dele vivem, criaram as mais belas melodias que, hoje, residem na nossa memória colectiva e que são parte integrante da nossa identidade enquanto povo .
No início dos anos 60, Michel Giacometti, etnólogo e musicólogo corso radicado em Portugal, encetou uma demanda que só terminou mais de 20 anos depois. Nesta, empenhou-se a recolher, in loco, o legado fonográfico das gentes de Norte a Sul do país, recolhendo músicas, canções e histórias em aldeias, vilas, procissões, etc. Com efeito, ainda hoje se trata da recolha mais exaustiva feita em terras lusas, constituindo parte importante do cancioneiro popular. Esta recolha, embora exaustiva e imparcial, coincidiu, temporalmente, com o advento da democracia e com os ventos revolucionários que dominaram a cena política e social do nosso país durante vários anos. Como tal, foram sobretudo os cantares de intervenção e de crítica das condições de trabalho que se tornaram mais conhecidos e amplamente divulgados, sendo os restantes menosprezados e até marginalizados.
Antes disso, o conhecimento que havia desses cantares devia-se sobretudo à actividade promovida pelo Estado Novo, muito preocupado em não deixar morrer o espírito patriótico e em exaltar a identidade nacional. Nesse sentido, foram várias as iniciativas levadas a cabo pelo Secretariado Nacional da Informação, impulsionado por António Ferro – figura central nas políticas culturais do regime, membro do saudoso Grupo d’Orpheu e que tinha o condão de reunir à sua volta os maiores intelectuais do país. Nessas exibições, o principal era mostrar um estilo de vida simples e despretensioso das pessoas do campo que, embora trabalhadoras e com pouco, viviam felizes e alegres. Isto significou que só os cantares de trabalho eram divulgados e valorizados, levando a que muitos cantares de natureza vária não se tornassem nem conhecidos nem reconhecidos.
Por não se encontrarem dentro deste espectro social e político, no que às letras diz respeito, existem muitos cantares que, embora parte do nosso cancioneiro, ficaram de fora deste conjunto de canções que se tornaram conhecidas graças à divulgação feita nestes dois períodos. É disto exemplo a canção ‘Lá cima Ó castelo’, cuja letra, se encontra abaixo transcrita:
Lá cima ó Castelo
Há de tudo à venda
Diga-me ó menina
Se a nágua tem renda
Se a nágua tem renda
Mas deixai a ter
O que você queria
Era a nágua ver
Já não há não há
Já não pode haveri
Vinho na caneca
P’ra genti bueri
P’ra genti bueri
Pr’a genti pagari
Já não há não há
Quem mande deitari
Lá cima ó Castelo
Si vendem palitos
Diga-me ó menina
Se a nágua tem bicos
Se a nágua tem bicos…
Lá Cima ao Castelo
Se vendem laranjas
Diga-me ó menina
Se a nágua tem franjas
Se a nágua tem franjas…
Lá Cima ao Castelo
Se vendem limões
Mocinhas bonitas
Não são p’ra ganhões
Já não há não há…
Esta canção, oriunda da Beira-Baixa, tem, curiosamente, muitas linhas rítmicas inspiradas no canto sefardita (nome dado aos judeus que viviam na Península Ibérica, nomeadamente, na região das beiras). Vale a pena ouvir, por causa disto, a música na versão que se encontra no álbum “Sefarad en Diáspora”(link: https://youtu.be/NAoswjSodgk ), sendo aliás uma das poucas versões que se encontram disponíveis para audição online. Importa, também, dar um olhar atento ao conteúdo da letra.
De facto, ao longo da letra é notória a referência a um ambiente de festa em que há mulheres, vinho e ‘náguas’ que, para quem não sabe, é uma espécie de saiote que as mulheres vestiam debaixo das saias. Há, inclusivamente, uma clara alusão à vontade dos homens verem a nágua das senhoras (“O que você queria/ Era a nágua ver”), o que, à época, podia ser considerado algo ousado e, em alguns sítios, até obsceno.
Sendo esta uma canção cantada por vozes femininas ao ritmo dos adufes, é curioso também, verificar a vontade de quem canta em pagar o seu próprio vinho (Vinho na caneca/ (…)/P’ra genti bueri/P’ra genti pagari). Ainda que possamos estar a entrar no campo da especulação, não será possível que estejamos perante uma espécie de vontade de emancipação destas mulheres? Mulheres estas que, convictamente, ficavam a noite toda em plena alegria e cavaqueira, mostrando, desta forma, a sua rebeldia e genuína vontade de viver (Já não há não há/Quem mande deitari). Relativamente à última estrofe, surge um termo pouco frequente na língua portuguesa, ‘ganhões’. Na realidade, os ganhões eram os homens, geralmente jovens e fortes, que não tinham tido a sorte de aprender qualquer ofício, e faziam todo o tipo de trabalhos não especializados, à medida que estes iam aparecendo, consoante a altura do ano.
Talvez por isto e pelo tom de luxúria que parece transparecer à medida que vamos ouvindo o refrão, esta música tenha ficado de fora do âmbito dos dois períodos de divulgação descritos no início do texto. No entanto, não é por isso que estas músicas devem continuar no esquecimento, ou privilégio das localidades mais remotas do interior do nosso país. Porque são estas e outras memórias que fazem a nossa cultura, que é, na verdade, o reflexo dos muitos povos que por cá passaram e do quotidiano de muitos homens e mulheres que, ao longo de séculos, aqui viveram.
Texto: Afonso Anjos