Vista aérea do Instituto Industrial de Lisboa
Autoria: João Dinis Álvares (MEFT)
Enquanto o Instituto Industrial de Lisboa abria portas ao proletariado e agilizava o elevador social, o Instituto Superior Técnico, com propinas e um ensino intenso, tornou-se num instrumento ativo contra este mesmo elevador. O que Vitorino Damásio criou, em 1852, por mais que não fosse de todo um paraíso social, foi desvirtuado em prol de uma interpretação capitalista do porquê da existência do Técnico. Vejamos a história que começou com Fontes Pereira de Melo, primeiro Ministro das Obras Públicas, Comércio e Indústria . O ano era 1846.
Turnos de 12 horas no verão, turnos mais pequenos durante o inverno, porque a luz não permitia mais. Em Portugal, sentia-se o silêncio da tempestade que chegava, vinda da Europa, o novo rosto da noite que prometia mudar a vida de todos nos séculos seguintes: um mundo no qual já nascemos e que por vezes se torna difícil de imaginar sendo diferente.
1846. O mundo ainda está a recuperar do romantismo e vários ramos da atividade humana estão ainda num processo de metamorfose. O foco mais elevado na ciência traz um cada vez maior conhecimento e, com isso, novos perigos, novas maneiras de monopolizar as massas.
Enquanto as grandes capitais já tinham as suas noites iluminadas há várias décadas, só neste ano é que Portugal finalmente começou a acompanhar o resto do mundo. Até lá, como na maioria da sua História, estava na sombra. Com a iluminação a gás a tornar-se parte do dia-a-dia, os donos das indústrias estenderam os turnos de inverno para terem a mesma duração que os turnos de verão, 12 horas, dado que a desculpa de que os dias eram mais pequenos já não era aplicável. Sendo esta apenas uma das várias medidas que a burguesia industrial implementou, em detrimento das condições de trabalho do proletariado, a implicação deste movimento logo se transformou em algo concreto: a formação da classe operária. Dois anos depois, em 1848, na Alemanha, Karl Marx e Friedrich Engels publicam o Manifesto Comunista, que viria a inflamar muitos corações espalhados pelo mundo. As repercussões seriam imediatas.
Conhecida atualmente como a Primavera dos Povos, que despoletou em quase toda a Europa revoluções sociais que derrubaram várias monarquias, também em Portugal os seus efeitos foram sentidos. O jornal A Revolução de Setembro reportou a que foi a primeira greve industrial em Portugal, em 1849:
«Os operários recusaram-se a fazer serão e pretendem o pagamento por inteiro como se trabalhassem as horas que trabalham de Verão. Convém que o Governo, tomando este negócio em séria consideração, procure remediar o mal nascente, conciliando os interesses dos operários e dos proprietários. É a questão da organização do trabalho que aparece sempre com o desenvolvimento da indústria. É o mal social que nos rebenta à porta, quando todos o julgavam ainda muito longe de nós.»
Nesta greve, entre 500 e 600 operários foram às ruas reclamar pela regularização dos horários de trabalho. Do outro lado da Europa, no Império Russo, o círculo literário Petrashevski do qual Fiódor Dostoiévski e Sergei Durov faziam parte fez com que estes fossem aprisionados e enviados para um campo de trabalhos forçados na Sibéria, por espalharem ideias anti-czaristas. Em França, Napoleão III – sobrinho de Napoleão Bonaparte – terminava o seu golpe de estado e assumia o poder.
De volta a Portugal, poucos anos antes, Fontes Pereira de Melo era promovido a tenente, por ter sido distinguido no curso de engenharia na Escola do Exército, enquanto o seu pai era nomeado governador de Cabo Verde, tendo o seu filho o acompanhado.
Fontes Pereira de Melo, não muito depois, voltou à sua pátria, tendo-se tornado a personagem principal do período da monarquia constitucional conhecido como Regeneração. Este período iniciou-se com o golpe de estado liderado pelo marechal Saldanha, a 1 de maio de 1851, que pretendia terminar o governo setembrista da altura. Este ar de mudanças era escorado na intelligentsia desta época, proveniente da Universidade de Coimbra, sendo Alexandre Herculano um dos seus membros mais ativos. Viviam-se os primeiros momentos do desenvolvimento tecnológico acelerado romântico, um século de injustiças e promessas de melhores condições de vida – a sociedade reinventava-se. Neste golpe de estado, para além das medidas económicas e políticas aplicadas de forma a pôr Portugal a par do resto da Europa, a Constituição foi alterada em dois pontos e foi criado o novo cargo de Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria. A primeira pessoa a ocupar este cargo foi Fontes Pereira de Melo.
Na École Polytechnique de Paris, o Conde Henri de Saint-Simon convencia os seus discípulos da utopia socialista tecnológica que propusera, onde os adventos da tecnologia e comunicações iriam abolir todo o tipo de antagonismos sociais. A influência destas ideias logo se espalhou para a Escola Politécnica de Lisboa (EPL): Ribeiro de Sá, formado nesta mesma Escola, descreveu a massa operária da sua metalurgia, em resposta à greve de 49, como «o braço negro e robusto […] movido pelo vapor», que transformava «a carreira modesta» de cada um dos 60 operários da fundição «na gloriosa carreira de um dos homens mais úteis à sociedade». A perspetiva utilitarista da era industrial vinha ao de cima, uma vez mais. Ribeiro de Sá e outros engenheiros da EPL viriam a juntar-se ao poder governativo da Regeneração. É nesta época que Álvaro de Campos nasce e a influência é notória na sua poesia.
As influências saint-simonianas entranharam-se na imagem nacional, havendo quase uma certa vergonha pelas máquinas industriais só produzirem 1000 cv, quando na Prússia já chegavam aos 42000 cv; pelo facto de só haver cerca de 16000 proletários a nível nacional, entre outros fatores. A predisposição para mudar isto culminou em dezembro de 1852 com a fundação do Instituto Industrial de Lisboa, no bairro da Boavista.
O seu primeiro diretor foi José Vitorino Damásio, tenente de artilharia do Porto que combateu no Cerco do Porto pela causa liberal de D. Pedro, contra os absolutistas de D. Miguel. A sua nomeação para diretor é obviada por ter sido um dos elementos fulcrais para o sucesso do golpe de 51. Para Vitorino Damásio, já como reitor, o principal objetivo do seu trabalho era “formar a classe industrial”, como é contado por Tiago Saraiva e Marta Macedo no livro “Capital Científica: Práticas da Ciência em Lisboa e a História Contemporânea de Portugal”,
«O novo Instituto […] pretendia oferecer três tipos de curso – elementar, secundário e complementar – e, para serem admitidos, os candidatos apenas tinham de ter 12 anos de idade e saber ler, escrever e contar. O Instituto Industrial combinava o modelo francês do Conservatoire des Arts et Métiers, vocacionado para a educação de trabalhadores, e a elitista École Centrale, dedicada ao ensino de engenheiros, criando um curso com uma estrutura tripartida acessível não só a operários qualificados e mestres, mas também a diretores industriais. »
Com uma formação mais alargada, a hierarquia tríptica industrial – operário, oficial e mestre – logo se estendeu a um outro cargo, o de diretor, que implicava que os estudantes tivessem de frequentar os cursos de química aplicada, mecânica industrial – este dirigido pelo próprio José Damásio – e, também, economia e legislação industriais. Desta forma, tentava-se criar uma classe industrial coesa, que coabitasse sob o mesmo teto, que impedisse um retorno à greve de 1849. De forma a permitir a frequência dos operários, as aulas do Instituto Industrial (IIL) só se iniciavam ao fim do dia, depois das 20h. No primeiro ano de funcionamento, 749 alunos inscreveram-se, tendo nos anos seguintes este número sido elevado para mais de mil. Para além de aulas teóricas, o Instituto contava com uma grande quantidade de oficinas e carpintarias, deixando claro que a formação prática era um dos principais pilares do IIL.
Dadas as despesas com a iluminação a gás, uma vez que o Instituto só funcionava à noite, Damásio decidiu que «as oficinas do instituto hão de funcionar não só como escola prática, mas como Fábrica, e nesta relação devem ganhar o seu próprio sustento.» Assim, o IIL tornava-se como uma fábrica-modelo, regida por um conjunto de regras laborais mais transparentes, mais claras sobre as condições de trabalho a que os seus estudantes-trabalhadores seriam sujeitos, de modo a fornecer uma perspetiva mais clara sobre as condições humilhantes a que o proletariado estava a ser sujeito na vida normal. Isto fez com que a burguesia industrial lisboeta se ressurgisse e pressionasse o governo ao encerramento das instalações do Instituto Industrial.
«Em 1858, foi constituída uma comissão oficial para investigar «se as aulas práticas das oficinas do Instituto Industrial eram prejudiciais à indústria privada», o que levou ao encerramento das oficinas em 1860, com a importante exceção da oficina de instrumentos de precisão.»
Apesar do desfalque a que o IIL foi sujeito, ainda assim continuou as suas funções. Simultaneamente, na Croácia, em Smiljan, Nikola Tesla estava prestes a entrar na escola primária, ainda não ciente do quanto revolucionaria a era industrial. Pouco depois, em 1869, a Escola do Comércio junta-se ao IIL, havendo uma maior oferta nos ramos de economia e administração, passando a ser chamado de Instituto Industrial e Comercial de Lisboa (IICL).
1927. O Ministro do Comércio com um grupo de professores e alunos do Instituto Industrial de Lisboa, depois da sessão de homenagem à memória do General Cerveira de Albuquerque.
Enquanto a guerra entre Vitorino Damásio e o mundo industrial continuava, as condições sanitárias agravadas pelo sobre-desenvolvimento da indústria no bairro da Boavista, onde o Instituto se encontrava, contribuíram para várias epidemias de cólera e febre amarela, chegando a provocar cerca de 9000 mortes. Vitorino Damásio chegou-se à frente como coordenador dos esforços para combater o problema sanitário que assombrava Lisboa, tendo criado o aterro da Boavista e saneado as margens do rio. Porém, a imagem lisboeta continuava a ser um estereótipo industrial, que Ceśario Verde imortalizou n’O Sentimento dum Ocidental:
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina
Acompanhando a escrita, também os teatros entraram numa nova era, onde podiam usar iluminação para exaltar vários momentos das peças. Fonseca Benevides, professor de física no IICL e amante de teatro, faz uma parceria com o Teatro São Carlos ficando em parte encarregue das instalações das máquinas que viriam a produzir a eletricidade necessária para alimentar a iluminação dos espetáculos. Em 1892, Benevides sucede a Vitorino Damásio como diretor do Instituto Industrial e Comercial, virando o foco deste não só para a engenharia, mas também para a física, mais especificamente a termodinâmica, a ótica e o eletromagnetismo. Tiago S. e Marta M. deixam bem clara a maneira como Benevides olhava para Lisboa na seguinte passagem,
«Para Benevides, não havia uma Lisboa literária e romântica no Chiado, por um lado, e uma cidade industrial e racional na Boavista, por outro. As duas eram parte de um todo urbano, feito de poemas, máquinas a vapor, óperas e aparelhos elétricos.»
A contrapor esta visão romantico-tecnológica, temos o lançamento d’Os Maias, de Eça de Queirós, poucos anos antes da nomeação de Benevides para o cargo de diretor, onde Eça faz uma perspetiva pessimista do futuro da nação, chamando à nova geração “choldra ignóbil”, reticente sobre os malefícios de um desenvolvimento acelerado.
Até 1911, o IICL continuou nos mesmos moldes, apesar de não haver muita informação sobre como este funcionou nos inícios do século XX. Ainda assim, as proibições relativamente às oficinas mantiveram-se, o que fez com que o Instituto Industrial tenha construído um edifício, mesmo do outro lado da rua onde este se situava, apenas dedicado à única oficina que lhe foi permitido manter aberta, a dos instrumentos de precisão. Estes instrumentos revelaram-se uma chave para várias inovações tecnológicas, mas também contribuíram para a arte e para a astronomia, tendo sido relevantes para as medições na esfera celeste feitas no Observatório Astronómico de Lisboa, mundialmente reconhecidas pela sua elevada precisão. A ideia de uma Companhia Nacional de Eletricidade começava a ganhar força com a introdução dos desenvolvimentos feitos pelo IICL.
1911 é o primeiro ano depois da Implantação da República Portuguesa, tendo sido neste ano que o Ministério do Fomento promulgou a divisão do Instituto Industrial e Comercial de Lisboa nas suas duas componentes importantes, quase como se dividissem os 4 cursos que Vitorino Damásio divisara para o cargo de “diretor” – Economia e Legislação Industriais vs. Química Aplicada e Mecânica Industrial. A primeira metade seria dedicada mais à parte Económica e Comercial e a segunda seria sobretudo dedicada à Engenharia.
No regulamento publicado pelo Ministério do Fomento, chamar-se-ia à primeira parte de Instituto Superior do Comércio e à segunda de Instituto Superior Técnico.
O Técnico é uma instituição que nasceu da revelia à classe monopolizadora da indústria e quase foi sufocada nesse processo, mas ainda assim o espírito aguentou várias décadas de restrições. Hoje em dia, após várias remodelações, o intuito de formar estudantes para as indústrias continua igual. Porém, passaram-se cerca de 170 anos desde então: as condições de vida mudaram drasticamente e a compreensão dos problemas do passado são agora senso comum. Enquanto o Instituto Industrial de Lisboa abria as portas ao proletariado e o elevador social se agilizava ligeiramente, o Técnico, com propinas e um ensino intenso, tornou-se num instrumento ativo contra esse mesmo elevador social, ainda mais premente com as medidas que o seu atual presidente, Rogério Colaço, quer implementar. O que Vitorino Damásio criou, em 1852, por mais que não fosse de todo um paraíso social, foi desvirtuado em prol de uma perspetiva capitalista do porquê da existência do Instituto Superior Técnico.
Referências:
[1] – “Capital Científica: Práticas da Ciência em Lisboa e a História Contemporânea de Portugal”, Tiago Saraiva & Marta Macedo
[2] – Blog Restos de Coleção: https://restosdecoleccao.blogspot.com/2012/06/instituto-superior-tecnico.html
[3] – “Da Prática de Química à Química Prática: Desenvolvimento da Prática de Química no Ensino Português (1852 -1889)”, Isabel Maria Neves da Cruz, Universidade de Évora
[4] – GALP – https://www.galp.com/corp/en/about-us/galp/our-roots
[5] – “Uma Greve Fabril em 1849”, José Barreto
Interessa saber se Lisboa acompanhou os argumentos trocados entre Karl Marx e Giuseppe Mazzini,
archive.org/details/karlmarxpolitica0000radd/page/66/mode/2up?view=theater
Se o IST reconheceu a preparação dos alunos oriundos da
http://www.avozdooperario.pt/index.php/a-voz-do-operario/historia
http://www.avozdooperario.pt/index.php/educacao/escola-da-graca
pq. esta é uma notável filha do “Mazzinismo”:
montessori150.org/maria-montessori/montessori-books/education-and-peace
Já o IST tem esta referência:
istpress.tecnico.ulisboa.pt/produto/seminarios-desenvolvimento-sustentavel-inovacao/
[…] [2] – Diferencial, João Dinis Álvares: “1852: O Início” – https://diferencial.tecnico.ulisboa.pt/tecnico/1852-o-inicio/ […]