A Luta Do Outro Lado: Professores Vasco Guerra e Cláudia Antunes, Parte 2

Autoria: Matilde Sardinha (LEEC) e João Dinis Álvares (MEFT)

Cláudia Antunes, professora associada do Departamento de Engenharia Informática, revela como foi o seu percurso no Técnico, desde os dias de aluna e delegada de curso, até à atualidade enquanto professora e investigadora do departamento. Além da sua experiência, foram discutidos outros temas, como a sua carta aberta sobre o novo modelo de ensino

O acrónimo MEPP (Modelo de Ensino e Práticas Pedagógicas), já gasto de passar de boca em boca pelos corredores do Técnico, veio alterar o ensino nesta instituição, assim como a vida dos que por aqui andam. Serão muitos os que tecem críticas ao novo modelo de ensino, mas poucos os que têm a coragem de as dirigir diretamente à presidência do Técnico, tal como fez a professora Cláudia Antunes (CA), docente do Departamento de Engenharia Informática. 

Na sua carta aberta sobre o novo modelo de ensino, ao Presidente do IST, o professor Rogério Colaço, CA critica o facto do novo modelo estar a sobrecarregar os alunos com avaliação contínua, impedindo-os de verdadeiramente aprender e interiorizar os conteúdos. “Eu recuso-me a avaliar um aluno que está a aprender[…]. [Um aluno] não deve sentir a pressão de decorar as coisas para a avaliação. Isso não serve para nada”, diz Cláudia Antunes ao Diferencial.

A professora Cláudia ingressou no Técnico no ano letivo de 92/93. Destes primeiros tempos na faculdade, recorda professores que marcaram o seu percurso tanto pela positiva, como pela negativa. Num auditório cheio, um professor de uma das matemáticas fundamentais chama aos alunos “débeis mentais”. “Senti-me uma vez humilhada numa aula, nestes anos todos”, tratando-se portanto de um caso isolado ao longo do percurso da professora. 

Sobre a influência que os seus professores tiveram no seu percurso, a professora defende que a afetou profundamente: “Sou incapaz de estar a explicar uma matéria sem pensar se eu, enquanto aluna, conseguiria perceber aquilo que estou a dizer”. Além de a terem influenciado no tipo de aulas que dá atualmente, foi devido a inúmeros momentos de avaliação com falhas, por parte dos docentes que teve, que a fizeram ter consciência dos cuidados que é preciso ter quando se faz um exame. Defende ser necessário ter em atenção o tipo de alunos que se tem e de que maneira chegam à cadeira. Com alunos de cursos diferentes, têm-se abordagens diferentes: “Quando tu percebes isto, tu percebes que consegues fazer a diferença, se conseguires falar para aqueles alunos”.  É também necessário assegurar que a dificuldade de uma cadeira não se altera de um ano para o outro, nem de uma primeira época de exames para uma segunda. 

Ao longo dos tempos, os professores que passam pelo Técnico mudam, assim como os alunos. A professora nota que, cada vez mais, os alunos reclamam menos sobre as injustiças ou cargas de trabalho desmedidas que lhes são impostas. “Não entra no Técnico um mau aluno, nem um aluno sem hábitos de trabalho. Por muito que digam o contrário, não entra. E, agora, cada vez menos com as médias como estão, só um aluno com hábitos de trabalho é que consegue ter aquelas notas.”, diz a professora, defendendo assim os alunos que se sentem assoberbados com a exigência do Técnico. 

Realça ainda o crescimento no número de monitores a dar aulas, a alunos, que são apenas um ou dois anos mais novos do que eles.”Eu estou a dar aulas com miúdos, que me dão as aulas práticas, porque fizeram a cadeira no ano passado”. Este período pelo qual o Técnico está a passar deve-se, na ótica de CA, não só aos professores que saem jubilados ou por reforma, mas também devido àqueles que saem para o mercado de trabalho onde são oferecidos salários muito mais aliciantes do que aqueles praticados nas universidades públicas. As razões que fazem com que a professora permaneça na carreira académica são a flexibilidade de horários, autonomia e liberdade de organização das matérias lecionadas. 

Alguns argumentam que, nas melhores faculdades do mundo, as aulas práticas são lecionadas por alunos, o que é verdade, mas estes tratam-se de alunos de doutoramento e não de mestrado, como ocorre no Técnico. A falta de professores é notória. “Houve uma altura em que conseguíamos escolher quem é que vinha dar aulas. Tínhamos mais candidatos do que procura. Agora, é ao contrário. Temos de pedir aos alunos que venham dar aulas, porque senão a cadeira não funciona”.

Outro dos problemas que a professora aponta é o facto de alguns departamentos serem mais deficitários do que outros. Ideias surgem para tentar colmatar este problema, como por exemplo reduzir o número de horas de contacto com os alunos. Porém, são apenas ideias que agravam a diferenciação entre departamentos, não resolvendo o problema. Mesmo que haja financiamento para contratar todos os professores necessários, daí surge outro problema: não haver pessoas de doutoramento com perfil e disponíveis para cobrir estas vagas.

Atualmente, os melhores alunos do Técnico fazem a licenciatura e depois vão para o estrangeiro fazer o seu mestrado e doutoramento, o que explica a falta de oferta quando se procuram candidatos para lecionar. A rigidez do Instituto só agrava este facto: “Eles não fazem nada, não sabem nada, não estudam nada. Isto é tratar bem os alunos?”.

A professora acredita que um bom professor universitário terá sempre as duas vertentes bem presentes no seu dia-a-dia: a da investigação e a do ensino. “Eu não acredito que uma pessoa que não investiga tenha futuro”. Quanto a uma universidade apenas com investigadores excepcionais, também não é isso que se procura. Como exemplo, a professora relata uma aula que teve durante o segundo ano da licenciatura. Um dos investigadores mais notáveis do Técnico estava a dar uma aula de processamento de sinais. Este entra na sala de aula, faz um risco no quadro e começa a falar sobre a matéria. Os alunos demoraram 5 minutos a perceber que aquele risco no quadro não era um risco mas sim um sinal do qual o professor estava a falar. Não basta ter muito conhecimento sobre uma área, é também extremamente importante saber transmiti-lo. 

A professora relembra que a sua necessidade de autonomia e liberdade vem já dos seus tempos enquanto aluna no Técnico, daí ter assumido o cargo de Delegada de Curso durante o 3º ano da sua licenciatura. Deste ano, recorda um dos seus primeiros “choques” com a autoridade. Há 30 anos, a Inteligência Artificial não tomava o lugar de relevância que assume atualmente. “Via-se a Inteligência Artificial como algo que serve para pouco”. No ano em que a professora fez a cadeira, como aluna, foi implementado um sistema de detecção de cópias, desenvolvido pelo professor António Leitão. Este sistema acabou por detetar 50 projetos copiados. Enquanto delegada, foi a professora Cláudia que teve de dar a cara pelo sucedido. 

No entanto, tanto neste incidente como em outros, a professora Cláudia sempre se sentiu ouvida e respeitada, enquanto delegada, pela coordenação do curso de Engenharia Informática. Várias foram as reuniões em que esteve presente para a elaboração dos relatórios pedagógicos, cujo departamento de Informática foi dos primeiros a implementar. Nunca sentiu falta de ajuda no esforço para tentar colmatar os problemas do Técnico. “O professor Tribolet tinha sempre a porta do gabinete dele aberta, para que o contactássemos caso precisássemos de alguma coisa. O presidente do Técnico diz que tem o gabinete aberto e nem uma carta recebe. Nem uma carta responde.” Foram professores como este que marcaram a passagem da professora Cláudia, enquanto aluna no Técnico, ensinaram-lhe a responsabilidade que um coordenador de curso tem para que tudo durante o mesmo decorra da melhor forma, mas também a capacidade que necessitam de ter para ouvir as críticas que vão surgindo. “Eu herdei essa coisa de: deixa que quem tem uma opinião a dê. Pode não ser representativo, mas se calhar também o pode ser”.

Há 30 anos, a população do curso de informática era principalmente constituída por homens, tal como nos dias de hoje. Neste meio, a professora desenvolveu a capacidade de se impor, de se fazer ouvir tal como a de interagir com os outros colegas. “Quando entrei no Técnico para Informática, eu olhava os meus colegas nos olhos e eles baixavam os olhos. Os que não baixavam era porque achavam que eu queria arranjar um namorado para me fazer o curso.”

Enquanto delegada de curso, a professora relata que aprendeu muito, pois teve a oportunidade de contactar com inúmeras pessoas. Apesar de terem sido raros os incidentes em que se tenha sentido humilhada, o mesmo não pode dizer sobre os seus colegas. Numa das cadeiras com taxas de reprovação mais elevadas, chegou a ver colegas a sair de horários de dúvidas a chorar. 

Quando falamos em momentos que marcaram o percurso da professora, vamos ao encontro de um projeto da cadeira de Arquitetura de Computadores, que era desenvolvido em grupo. A professora desenvolveu parte do código, que enviou ao seu colega de grupo explicando as partes nas quais tinha dúvidas e por isso não tinha conseguido implementar. Tudo isto sucede na véspera de entrega. No dia seguinte, chegam ao laboratório onde o colega da professora diz que apagou todo o código enviado e feito tudo do zero. A professora decide então entregar o seu projeto inacabado sozinha, deixando o colega entregar a nova versão dele.

“Chega o professor e eu digo: “Nós temos dois projetos para entregar” 

“Dois?” 

“Sim, o dele e o meu” 

“Mas o teu funciona?” 

“Não” 

“Então e vais entregar o teu?”

”Vou”

“Os meus colegas nunca mais olharam para mim com os mesmos olhos. Nunca mais. Eu acho que isso fez o meu caminho dentro do Técnico” Por haver falta de docentes na altura, como já ocorre nos dias de hoje, é Arquitetura de Computadores a primeira cadeira que a professora Cláudia leciona no Técnico, fora da sua área, Inteligência Artificial, e sendo esta uma cadeira com a qual não se sentia nada à vontade. 

É devido à experiência da professora a lecionar a cadeira de Arquitetura de Computadores que, quando trabalha com alunos monitores, não lhes permite esclarecer dúvidas teóricas, apenas dúvidas relacionadas com o projeto. 

Sobre o ensino no Técnico, a professora vê uma necessidade de acompanhar a evolução dos recursos que têm vindo a surgir. Experiências como os MOOC (Massive Open Online Courses) vieram alterar a sua perspetiva sobre aulas teóricas, que defende que devem adotar um cariz teórico-prático. Existem bons materiais para estudar a parte mais teórica dos conteúdos, tais como livros e vídeos. Estes devem ser fornecidos aos alunos previamente, para que as aulas com o professor se tornem um espaço de análise de casos práticos, relevantes e atuais. A professora considera que este modelo de ensino funcionará para cadeiras de Informática, nomeadamente uma das que leciona, Ciência de Dados. 

“A eficiência, a eficácia, a ética, que em Informática são fundamentais… Eu acho que é para isso que nós servimos. É para estar no contacto com os alunos, mas para isso não posso pôr um aluno que fez a cadeira no ano passado a dar este tipo de aulas”.

Este tipo de aulas é especialmente difícil de implementar, quando há falta de professores com experiência para o fazer. Outro dos obstáculos que se põe a este tipo de aulas é a falta de iniciativa dos alunos para apresentar críticas sobre as cadeiras. A professora relata que, quando pediu críticas no final da cadeira de Ciência de Dados aos alunos, cerca de 200 a frequentar a cadeira, apenas um lhe respondeu. A interação com os alunos torna-se ainda mais importante, quando se estão a implementar técnicas de ensino com as quais a professora nunca contactou enquanto aluna. 

Se há problemas financeiros no Técnico que impedem que mais professores sejam contratados ou que materiais sejam adquiridos, existem também entraves à resolução deste problema. A professora Cláudia aponta que um dos principais problemas são os entraves que se põem à doação de dinheiro por parte de ex-alunos que gostariam de contribuir para o desenvolvimento da sua faculdade. O contacto com os ex-alunos foi dificultado pelas novas leis europeias de proteção de dados. A professora considera que esses contactos poderiam ter continuado a ser utilizados com a salvaguarda de que, caso estes não quisessem ser contactados e exprimissem essa vontade, o seu e-mail seria retirado da mailing list

Sobre o tópico de calendários escolares e conteúdos lecionados em cada cadeira, a experiência da professora permite-lhe perceber: “Se o professor tem a coisa toda «montadinha» para ter de ter aquelas 14 aulas senão não consegue dar a matéria, tem de ter matéria a mais”. A folga que é preciso dar provém do facto de os professores terem o direito a faltar a uma aula em casos de necessidade ou porque o público da cadeira muda todos os anos, pelo que o ritmo tem de ser adaptado e reestruturado ao longo do lecionar da cadeira. Eu devo ser a única professora que não compensa feriados. Recuso-me. É horrível conseguir arranjar um slot para toda a gente poder. Vai sempre haver alguém que não consegue. O melhor que consigo é dar a aula online fora de horas para que todos consigam”.

O MEPP veio revolucionar o Técnico a vários níveis: métodos de ensino, número de horas de contacto, organização do calendário escolar, entre outros. “[…]eles fizeram uma coisa extraordinária, uma engenharia extraordinária, que eu acho que não tem nome, que foi passarmos a ter dois terços de aulas teóricas” A professora explica que a única forma de comportar esta redução foi retirando conteúdos às cadeiras, com os quais os alunos nunca terão contacto. 

Ter memória do passado ocupa um dos lugares mais importantes na resolução dos atuais problemas do Técnico. “Com a falta de salas e docentes […] se não otimizamos é um descalabro.” No passado, a professora considera que estes problemas já foram corrigidos de maneiras muito mais eficientes, como por exemplo, as aulas passarem a ser múltiplos de uma hora e meia, o que facilita a arrumação dos horários. 

Durante os seus tempos enquanto aluna, a professora sempre fez um esforço para não faltar às aulas e acompanhar a matéria. “Costumava ir às aulas, fazia um esforço para ir às aulas, até perceber que aquele professor não valia mesmo a pena.” A única altura em que a professora faltou a aulas foi durante o seu segundo ano de licenciatura, por se ver assoberbada com a quantidade de projetos que tinha para entregar. “Lembro-me de não conseguir ir às aulas de maneira nenhuma. Eu tinha de escolher entre fazer os projetos ou ir às aulas”, realidade com que muitos alunos de informática ainda se deparam nos dias de hoje. No entanto, a professora afirma que foram raras as aulas durante a licenciatura sobre as quais chegou à conclusão que não valia a pena ir. 

Esta experiência, enquanto aluna, impacta até aos dias de hoje a maneira como dá as suas aulas. “Fico imensamente incomodada quando vejo os alunos a desaparecerem das aulas.” Quando lecionou pela última vez a cadeira de Ciência de Dados, ficou bastante satisfeita ao chegar ao Natal com 40 alunos dos 60 que no início do período apareceram na sala. Em janeiro, passaram a aparecer apenas 15 alunos. Quando lecionou a cadeira no TagusPark, dos 60 inscritos, apenas teve 20 que foram às aulas desde o ínicio, ou seja, houve 40 alunos que não deram uma oportunidade às suas aulas. “Quer dizer, há 40 alunos que vão preencher os QUC’s e que nunca lá foram[…]. [Cada um deles] é um aluno que nem sequer quer dar a oportunidade ao professor, para ver como é que aquilo vai funcionar”

Sobre a preferência do ensino ou da investigação, a professora responde que o que mais gosta de fazer são as orientações de mestrado ou doutoramento, ou seja, um misto das duas vertentes. 

Além da orientação, considera que dar aulas ao primeiro ano é uma das melhores partes da docência. E porquê aulas ao primeiro ano? “Porque os medos são muito diferentes. Os alunos, quando chegam ao Técnico acham que isto é o paraíso. O paraíso em termos de: é isto que eu quero fazer da minha vida […] quando chegam ao fim do terceiro ano já estão completamente perdidos.”

“Destruídos.” 

“Eu acho que o termo é mesmo: destruídos.”

Os alunos que chegam ao Técnico são os melhores do país, diz a professora, questionando-se assim sobre o que os deixa tão desmotivados. Outra das coisas sobre as quais o Técnico ainda não arranjou uma solução é o choque que os melhores alunos do país, os melhores das suas turmas e escolas, sofrem ao passar a ser alunos medianos. “É o choque inicial. Porque tu deixaste de ser o melhor para ser um entre muitos igualmente bons”. Este problema é ignorado e deixado a cada um dos alunos para resolver por si mesmos.

Para ajudar a colmatar este problema, iniciativas como o programa de Tutorado surgem. A professora tem vindo a participar todos os anos, mas não considera que o programa tenha o efeito desejado. Os alunos não respondem a e-mails ou mensagens do seu tutor, nem se sentem à vontade para os abordar sobre os problemas pelos quais estão a passar. 

O que mais choca a professora ao entrar numa sala de aula é ver alunos completamente diferentes do que foi enquanto aluna. “Quando os vejo sem cadernos, sem canetas, de iPad na mão […] São piores? Claro que não. Agora são muito diferentes”. Estas diferenças transformam-se num desafio para o professor que precisa de arranjar diferentes formas de os cativar e de lhes explicar a matéria. “Quanto mais velho tu és, quanto mais distante tu estás, e quanto mais diferente és dos alunos que tens à tua frente, mais difícil é [alcançá-los].”

Assim termina a segunda parte destas duas entrevistas, aos professores Vasco Guerra e Cláudia Antunes. Muitos outros professores há no Técnico que tiveram outras experiências, mas esperamos que com estas duas consigamos ter dado um pouco da ideia de que os professores notam naquilo que os estudantes fazem. Pode-se dar o caso também de que os professores contactados sejam aqueles que se preocupam mais com os alunos. Afinal, dois professores num mundo de centenas não é representativo. Ainda assim, existem.

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