Duas gerações de engenheiros

Autoria: Joana Bonito (LEFT)

Todos nós crescemos a ouvir histórias. Nos livros, nos filmes, na escola, em casa, com os amigos. As nossas histórias são quem nós somos, e são dos nossos bens mais preciosos. Das histórias que eu mais ouvi foram as dos meus pais. Da infância, das viagens, dos amigos, da escola, e da faculdade. Algumas foram contadas tantas vezes que as sei de trás para a frente. Adoro essas histórias contadas ao jantar, com a quantidade certa de nostalgia e sorriso nos lábios. Histórias que me permitem imaginar os meus pais com a minha idade, a sua vida antes de se conhecerem, antes de serem pais. Assim, passei muito tempo a ouvir as histórias do Instituto Superior Técnico, muitas delas que resultavam sempre em grandes gargalhadas gerais.

Filha de uma Engenheira Química e de um Engenheiro Eletrotécnico, sempre disse que não queria ser engenheira. Mas claro que a ironia da vida me apanhou e cá estou eu, na mesma faculdade onde, 40 anos antes, os meus pais estudaram.  Agora é a minha vez de criar memórias para mais tarde contar aos meus filhos, e muitas delas não podiam ser mais diferentes daquelas que ouvi.

    Começando pelo primeiro passo no ensino superior: a matrícula. Hoje em dia, é dos procedimentos mais fáceis de se fazer (com exceção dos “raros” casos em que o sistema vai abaixo), é só abrir o computador, inserir dados e está tudo feito, nem o horário foi preciso escolher. Bem, e no tempo dos meus pais? As filas eram grandes, e a espera muita. O meu pai chegou às 22h da véspera à entrada da Avenida Rovisco Pais, onde já estavam algumas pessoas, e por ali teve de ficar durante a noite, pois faziam a chamada de duas em duas horas. Lá conseguiu fazer a matrícula depois de almoço e escolher as turmas e o horário. A minha mãe não foi tão radical, bastou-lhe chegar às 7h para assegurar um bom horário. Horários estes que nunca divergiam muito, o 1º e o 3º anos tinham as aulas de tarde, enquanto que o 2º e o 4º de manhã. Já eu tanto entro num dia às 8h, como no dia a seguir estou a sair às 20h. 

    Seguindo para uma tradição muito comum, mas que parece ter-se perdido um pouco: as aulas de praxe. Os caloiros chegavam e numa das suas primeiras aulas eram recebidos por professores com extensas listas de livros para comprarem e muitos trabalhos. Professores esses que eram alunos mais velhos, e em conjunto com uns quantos que se faziam passar por caloiros, conseguiam assustar os novos alunos nessa hora de aula. O meu pai teve a experiência de dar uma dessas aulas. Conta que chegou com uma pasta, com um ar muito profissional, para lá disse umas coisas que não se lembra, os amigos que estavam infiltrados no meio do auditório perguntavam sobre a dificuldade da cadeira, o número de chumbos, os testes. Era uma forte tradição, que acontecia em todos os cursos, e que passados tantos anos é das memórias que ficaram.

    Falando ainda de tradições estudantis no Técnico, este ano fiquei a saber desta: os foguetes. Era costume lançar-se foguetes quando se terminava o curso, à porta do Pavilhão Central, um por cada ano matriculado, sendo raro ouvir-se apenas cinco. A minha mãe lançou os dela em conjunto com o grupo de amigos e colegas do trabalho final de curso, e foi a família toda assistir. Era a despedida do Técnico, o festejo de acabar uma jornada, prontos para se começar outra.

    Voltando um pouco atrás no tempo, uma das minhas histórias preferidas é como se faziam os trabalhos de programação no primeiro ano do meu pai: com cartões perfurados. No pavilhão Central existia uma sala com as perfuradoras, os alunos iam lá, escreviam o seu código e a máquina devolvia os cartões perfurados. Um simples código resultava num maço de cartões, que era depois colocado num cacifo do departamento de informática, que mais tarde corria e devolvia os resultados. O maior problema era que para entregarem os cartões tinham de ter um cartão cor-de-rosa fornecido pelos docentes, e cada aluno tinha direito a poucos, o que significava que a margem para erro era pouca. Dadas as quantidades de vezes que eu preciso de correr um código para descobrir uma vírgula errada, não devia ser nada divertido.

    Sei que os meus pais não andaram no mesmo IST que eu ando. Muitas dessas mudanças podem ser vistas, como os novos edifícios, o número de alunos e cursos, o rácio de mulheres e homens. Outras são silenciosas, vão acontecendo ao longo do tempo, e outras, infelizmente, ainda estão por acontecer. Gosto de ouvir as memórias dos meus pais não só porque me divirto a comparar a sua experiência com a minha, mas também porque posso aprender com elas. A memória permite-nos viver o passado, aprender com ele e tentar não cair nos mesmos erros. Faz parte de nós, mas não nos define, relembra-nos de quem já fomos, do caminho que fizemos, e faz-nos perceber o caminho que nos falta.

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