O Novo Modelo de Ensino

Autoria: Diogo Faustino (LEAer)

Neste artigo exploro o que mudou, o que pode ser imputado ao novo MEPP e o que sempre esteve de errado com o Técnico. O balanço do primeiro ano com o novo modelo de ensino.

Esta história tem o seu início em Setembro de 2018, com o lançamento do Relatório Final da Comissão de Análise ao Modelo de Ensino e Práticas Pedagógicas do IST (CAMEPP) [1]. Devo admitir que é uma das peças literárias que mais gosto me deu de ler nestes últimos anos. Prova que o corpo docente do IST está, no mínimo, ciente, e que compreende as dificuldades dos estudantes. Se se solidarizam ou se mantêm numa indiferença sádica já não me cabe avaliar. Este relatório da CAMEPP faz uma análise verdadeiramente isenta e crítica do “estado da Nação”, desde as tendências globais na educação e na engenharia nas escolas de referência à análise do ensino no Técnico, com recurso aos mais diferentes indicadores. Tudo isto desemboca na elaboração do novo MEPP, com a proposta das diferentes medidas que viemos a conhecer.

Um primeiro ponto que gostava de esmiuçar é precisamente a análise crítica do MEPP (neste caso, aquele em vigor em 2018). A comissão assume um tom “assumidamente provocador” e põe o dedo na ferida, concretizando algumas das maiores queixas dos estudantes. Só para nomear alguns dos assuntos discutidos:

  • Eficiência formativa reduzida (percentagem do número de diplomados relativa ao número total de alunos matriculados pela 1.ª vez, rondava os 60%);
  • Estruturas curriculares monolíticas, densas e de carácter enciclopédico;
  • Desequilíbrio do esforço dedicado ao estudo ao longo do semestre;
  • Carga de trabalho excessiva associada a muitas UCs (com particular destaque para a dissertação), extravasando quase sempre o esforço pré-definido;
  • Falta de investimento em certas componentes da avaliação (e aprendizagem) porque o esforço envolvido é excessivo face ao peso da componente na avaliação;
  • Poucas UCs de carácter não estritamente técnico-científico (ditas “fofinhas”), que são menorizadas por contraponto com as UCs a “sério”, difíceis e hard-core;
  • Alunos pouco preparados para lidar com situações que envolvem fenómenos, características, valores e pessoas (que não devem ser reduzidos a uma medida quantitativa);
  • Aulas teóricas recitativas centradas no docente e caracterizadas por uma passividade discente generalizada e por um absentismo crónico;
  • Aulas laboratoriais centradas na execução de protocolos pré-estabelecidos pelos docentes;
  • Aulas práticas centradas na resolução de problemas pelos docentes, com alunos incapazes de progredir autonomamente devido ao fraco conhecimento das matérias;
  • Reciclagem anual de projectos e trabalhos laboratoriais que mina a criatividade, levando os alunos a elaborar relatórios à imagem dos relatórios de colegas dos anos anteriores;
  • Sistema de avaliação predominantemente centrado em exames
  • Concentração de estudo na época de exames, por oposição a um estudo contínuo
  • Estratégias de estudo/ensino desenhadas para a resolução de exames

A Comissão não deixa de defender aqueles que são os pontos fortes da escola – “a formação exigente e rigorosa, as capacidades dos diplomados, a elevada empregabilidade” – algo a que penso que nenhum estudante se opõe. Deixei, no entanto, um dos pontos mais importantes da análise por referir. A CAMEPP refere ainda que os percursos educativos são caracterizados por dificuldades artificiais, introduzidas na lógica de uma cultura do IST

O que é então esta “cultura do IST”, ou falta dela?

Numa anterior conversa com Isabel Gonçalves, Coordenadora do Núcleo de Desenvolvimento Académico, discutíamos a existência ou não de um sentido de “comunidade” no IST.  [2] Foi uma entrevista genuína e reveladora deste aspeto do nosso Instituto, em que a Isabel afirmou que o Técnico tem uma cultura “anti-vulnerabilidade”, que confunde a autonomia com a independência. Em conversa com alumni, a impressão com que ficamos é que o que se aprende no Técnico é a trabalhar sobre pressão. É esta, inevitavelmente, a “cultura do IST” que é repercutida para dentro do Instituto e para fora dos seus campi.

Mais à frente no relatório pode-se ler:

“Embora parte dessa dificuldade (associada às UC) possa estar de facto intrinsecamente ligada aos conceitos e matérias em estudo, parte dela é um artefacto introduzido na lógica da meritocracia da dificuldade. No contexto da cultura vigente, a norma é a de que os alunos devem enfrentar grandes dificuldades no seu percurso. Para o efeito, torna-se assim indiferente se essas dificuldades são intrínsecas ou completamente arbitrárias (por exemplo, resultado de práticas pedagógicas desajustadas, desempenhos docentes inferiores, espaços inadequados, horários mal desenhados). O sucesso do aluno mede-se assim pela sua capacidade de sobreviver

Há também uma série de referências a intervenções do Prof. Michael Athans do MIT, durante a sabática que realizou no Técnico em 2001. Desde “In 5 years, IST students have been taught almost twice as many technical subjects as compared to those of an average MIT student in a 4 year engineering curriculum.”* a “MIT students excel in independent thinking and problem-solving, while IST students are ‘spoon-fed’ ”**, percebemos que o IST só conseguiu copiar das escolas estrangeiras os piores aspetos.

As “dificuldades artificiais” de que falava são então obstáculos desnecessários e que nada acrescentam ao currículo do aluno. Não querendo embarcar na moda de imitar o famoso Instituto de Tecnologia de Massachusetts, não deixa de ser uma prova de que os alunos só têm a ganhar se houver um ajuste das práticas pedagógicas, de forma a que as principais dificuldades do curso no IST sejam os conceitos e as matérias de aprendizagem.

Por todas estas razões e mais algumas fiquei sem palavras com um artigo publicado no Público, naquilo que mais pareceu uma campanha concertada da lavagem de imagem do IST [3] [4] , em resposta às notícias de assédio moral e sexual[5] que se foram espalhando pelos meios de comunicação social nas semanas anteriores.

“Será que ter um nível de exigência que conduza a uma taxa de insucesso global de 30% (o valor típico das escolas de engenharia europeias) corresponde a assédio moral e implica riscos psicológicos inaceitáveis para os estudantes? Ou, pelo contrário, faz parte de um processo educativo exigente e que filtra aqueles cuja capacidade de trabalho não se adapta a um ensino exigente?” [3]

Quem o escreveu foi Arlindo Oliveira, dia 6 de junho, no Público. A sua posição enquanto ex-presidente só agrava ainda mais o conteúdo das suas palavras. Foi por esta altura que perdi novamente a fé de que os docentes do IST estivessem cientes das reais dificuldades dos estudantes, nem que fosse para melhorar uns quantos indicadores e subir nos famosos rankings.

Ignorando por momentos que este texto se trata de uma reação a denúncias de assédio moral e sexual no IST, gostaria de debater estas afirmações. Não só se normaliza uma brutal taxa de insucesso, como esta até parece ser um fator positivo, instrumentalizando os percursos académicos e as vidas daqueles a quem o IST falhou.

No relatório da CAMEPP lê-se que “os números da taxa de abandono e de diplomados são consideráveis, por excesso no primeiro caso e por defeito no segundo caso, e sintomáticos de que algo não está bem no ensino do Técnico.“ É por ser assim lá fora que temos que copiar?

Até com a narrativa do “filtro” da exigência tenho vários problemas. Apesar de a nota de entrada no ensino superior ser um bom indicador para uma melhor performance académica, a correlação entre a nota de entrada e a taxa de abandono é muito fraca. [6] A nota de seriação não é um critério absoluto, mas demonstra que não são só os alunos “menos capazes” a desistir do IST.

Vamos então discutir as “dificuldades artificiais” que os alunos do Técnico encontram e com as quais já estamos todos familiarizados. Começamos pelas apontadas pela Marta Pile e Isabel Gonçalves, no seu artigo “O Insucesso Académico no IST e a Necessidade de Monitorização das Iniciativas Pedagógicas” [7

  • elevado número de alunos por turma;
  • deficiências na relação Aluno/docente;
  • falta de salas de estudo;
  • falta de bibliotecas de maior dimensão;
  • falta de instalações/espaços que promovam a “vida na escola”;
  • falta de coordenação entre as disciplinas horizontais e específicas;

O relatório da CAMEPP volta a insistir nesta tónica:

  • A maioria das salas de aula não têm condições para a prática de um ensino ativo, centrado no trabalho autónomo dos alunos, envolvendo discussão em pequenos grupos, debates entre grupos e apresentações, onde o professor tenha fundamentalmente um papel de facilitador;
  • Falta de espaços de laboratórios abertos dotados de recursos técnicos e humanos que ofereçam verdadeiras “experiências de engenharia”, capazes de estimular a criatividade dos alunos e de os motivar para a engenharia e para a necessidade de uma formação de base sólida; 
  • Falta de residências universitárias perto dos campi em número muito superior ao atual, por forma a minimizar os tempos de deslocação entre as residências e os respetivos campi. Na situação atual, as residências do Técnico cobrem, aproximadamente, 5 % dos alunos. Por várias razões (por exemplo, o preço dos quartos em Lisboa), uma percentagem muito significativa dos alunos gasta algumas horas por dia nas viagens entre a sua morada e o campus;
  • Falta de uma cultura Técnico, com a qual os alunos se identifiquem por via não só das atividades de ensino e aprendizagem, mas também pela sua participação em projetos e atividades extracurriculares (por exemplo, introdução à investigação, seminários, projetos com a indústria, ligação à sociedade, desporto, etc.) além das fronteiras dos departamentos. A mitigação dos tempos de acesso aos campi, referidos no ponto anterior, é certamente uma condição necessária para a criação da referida cultura Técnico;
  • Condicionamentos específicos sobejamente conhecidos relacionados com o ensino no Taguspark e a sua integração no universo Técnico.

Isto tudo levou, então, à formulação das 33 medidas concretas a ser adotadas no IST. Para além das muitas medidas de caráter administrativo e/ou organizativo (como o fim dos mestrados integrados, 6 ou 3 ECTS em todas as UC, calendário escolar dividido em trimestres) destaco:

  • Eliminação tendencial do funcionamento de UC em semestre alternativo;

Esta prática tinha sido introduzida para combater o insucesso escolar em determinadas UCs e o racional apresentado baseou-se no fim das precedências e no expectável aumento da qualidade de ensino (e por consequente na diminuição das taxas de retenção) para retirar esta possibilidade aos estudantes. Resta saber se é possível voltar atrás com esta medida caso não se verifique uma diminuição significativa das retenções (que tornaria verdadeiramente ineficaz a alocação de recursos docentes a esta modalidade), já que os estudantes têm agora que aguardar um ano letivo inteiro antes de poder repetir certas UC fundamentais.

  • Reforço da formação em soft-skills e em HASS (Humanidades, Artes e Ciências Sociais), medida sobre a qual já escrevi [8];
  • Reconhecimento curricular de atividades extracurriculares. 

E, por último, uma miríade de mudanças na forma de lecionar. Promessas que nos fartámos de ouvir: aulas teóricas com enquadramento das matérias, mais exemplos e demonstrações; práticas colaborativas e de trabalho mais próximo com o docente; aprendizagem por projetos, case studies e problem based learning. Mais trabalho autónomo, mais avaliação contínua. Até se fala numa possível classificação “pass/fail”.

À falta de relatórios e estudos sobre a concretização e implementação de todas estas medidas, resta-nos medir o pulso da massa estudantil, por aquilo que se vai ouvindo entre conversas de refeitório e pausas para café. Em suma, os docentes formidáveis (e a verdade inegável é que existem no IST) continuaram a fazer aquilo que já faziam, incorporando todos os aspetos já discutidos na sua lecionação e fazendo todos os possíveis para dar o melhor aos seus alunos. Os docentes com quem os estudantes cronicamente têm dificuldades continuaram a impôr o seu estilo de ensino anacrónico e até hostil. O maior inimigo do novo MEPP é também o dos estudantes: a inércia geral da classe docente. Não houve uma revolução nas aulas práticas, nem tão pouco nas teóricas (que simplesmente se tornaram mais longas), e se os projetos e a avaliação contínua foram incorporados à força nas UC, foram a somar aos anti-pedagógicos exames finais – cuja perda de peso na avaliação final apesar da geral manutenção da sua obrigatoriedade (a maioria dos quais com nota mínima) só pioraram o paradigma.

Para responder às preocupações levantadas e tentar ajustar o novo MEPP à realidade, debateu-se em AGA, no passado dia 2 de fevereiro, uma Tomada de Posição sobre a sua implementação. O principal órgão estudantil, com o conhecimento do Conselho de Escola, da Assembleia de Escola e do Conselho de Gestão, endereçou ao Conselho Pedagógico uma série de recomendações necessárias para ajustar assim a atual transição. [9]

  • Rever os métodos de avaliação, isto é, implementar uma avaliação estritamente contínua baseada em testes e/ou trabalhos, laboratórios, etc., realizados durante o horário letivo;
  • Rever o enquadramento temporal da época de recurso das unidades curriculares nos períodos ímpares;
  • Garantir que os professores disponibilizam as notas das unidades curriculares periódicas até pelo menos um mês antes da data do exame de recurso;
  • Garantir o cumprimento da regulamentação relativamente à alocação das HACS;
  • Melhorar a distribuição dos momentos de avaliação contínua ao longo do calendário letivo;
  • Reduzir a duração máxima das aulas teórico-práticas e teóricas para 1h30m, mantendo a carga horária semanal de cada unidade curricular;
  • Melhorar a coordenação dos processos administrativos entre secretarias das outras faculdades, tendo também em atenção a compatibilidade horária entre o IST e as outras faculdades, no que diz respeito às unidades curriculares das HACS;
  • Garantir a disponibilização atempada de material de estudo suficiente e que permita melhores condições para o trabalho autónomo de cada estudante;
  • Elaboração de um repositório, onde sejam disponibilizadas gravações do conteúdo lecionado, tal como acontece noutras universidade de renome;
  • Conceder o acesso à Época Especial a todos os estudantes, visto tratar-se de um ano experimental e de adaptação;
  • Realizar uma análise sobre as consequências da extinção da lecionação das UCs em regime de semestre alternativo e quais os impactos no aproveitamento escolar dos estudantes.

Apesar da maioria destas medidas serem vagas e não apontarem um caminho claro para a resolução das preocupações, são um espelho daquilo que urge corrigir antes do início do próximo ano letivo. Como diria o eterno professor Luís Magalhães, uma reforma para pior parecia improvável. Não creio que tenhamos mudado para pior, mas a maioria dos problemas fundamentais, identificados certeiramente pela CAMEPP, permanecem.

* Em 5 anos, os alunos do IST aprenderam quase o dobro de disciplinas técnicas do que um aluno do MIT em 4 anos de currículo de engenharia.

** Os estudantes do MIT destacam-se pelo seu pensamento independente e capacidade de resolução de problemas, enquanto que os estudantes do IST têm a “papinha toda feita”.


Referências:

[1] – Relatório Final

[2] – Entrevista a Isabel Gonçalves

[3] – Mimar ou não mimar, eis a questão

[4] – Excelência, exigência e existência | Opinião | PÚBLICO

[5] – Inquérito do Técnico mostra que 400 alunos se queixam de assédio moral e sexual | Ensino Superior | PÚBLICO

[6] – Galhoz, S., (2018) Sucesso e abandono escolar no IST: (Uma nova) Análise geracional. Núcleo de Estatística e Prospetiva, IST.

[7] – O Insucesso Académico no IST

[8] – O que fazem as HACS na Engenharia?

[9] – Tomada de Posição

Imagem de Capa [Manuel Palmeira]: https://unsplash.com/photos/nzHN4ZQDZ60?utm_source=unsplash&utm_medium=referral&utm_content=creditShareLink

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