Os Nomes Que Circundam a Alameda

Autoria: João Dinis Álvares

O envolvente da Alameda do Instituto Superior Técnico é composto pelas Avenidas Manuel da Maia, António José de Almeida e José Rovisco Pais, homens cujas vidas estão associadas ao trabalho que devotaram a Portugal. Por trás, a “segurar as costas” do Técnico, está a rua Alves Redol, a chama revolucionária, o pioneiro do neorrealismo.

Quando se procura “Instituto Superior Técnico”, surge-nos a morada deste sítio, Av. Rovisco Pais 1, 1049-001 Lisboa. Abrindo o Google Maps, é possível explorar as restantes avenidas que rodeiam o Técnico: Avenida de António José de Almeida, Avenida Manuel da Maia e, por detrás da faculdade, Rua Alves Redol. Se sairmos em direção à Alameda, este, vamos dar à Avenida Manuel da Maia; se sairmos pela Torre Norte, vamos dar à Avenida de António José de Almeida; pela saída da Torre Sul, à morada oficial do Técnico, a Avenida Rovisco Pais; pelas escadas traseiras do Edifício Central, oeste, à Rua Alves Redol.

Mapa do Instituto Superior Técnico com as ruas envolventes, com bússola. Fonte: IST

De modo a que os nomes sejam mais do que uma mera etiqueta, falarei brevemente de cada uma destas personagens. No entanto, antes de começarmos a desvendar as histórias por detrás dos nomes, gostava apenas de referir que os nomes destas ruas nem sempre foram os mesmos: após o 25 de abril, no penúltimo dia de 1974, publicava-se [1] um edital em que se mudou, entre outros, o nome da Rua General Sinel de Cordes para Rua Alves Redol. 

João Sinel de Cordes era um descendente da família De Cordes, cujas origens vão até à Flandres. Não sendo a única história relacionada com fabrico de cerveja ao longo deste artigo, a família De Cordes vem de dois filhos de um fabricante de cerveja, ambos vassalos do Conde Soberano de Hainaut, que se provaram bastante importantes durante a guerra entre o condado de Hainaut e os Flamengos. Como recompensa, ao mais velho irmão foi concedido o Senhorio de Waterpont, onde a guerra tomou lugar, e ao mais novo foi concedido o Senhorio de Cordes. A família, através de uma longa história, acabou por chegar a Portugal. João Sinel de Cordes fez-se voluntário no Exército em 1883 [2], tendo tido bastante êxito na sua carreira militar. Cerca de quinze anos depois, em 1897, era promovido a Capitão para o Corpo do Estado-Maior.

Com a chegada da Primeira República, continuou a sua subida na hierarquia militar. Ao mesmo tempo, o Instituto Superior Técnico estava prestes a ser formalmente formado e António Alves Redol nascia em Vila Franca de Xira. O ano era 1911.

Após ter comandado o Corpo Expedicionário Português em França durante a Primeira Guerra Mundial, Sinel de Cordes continuou a arrecadar medalhas e nomeações, tendo em 1921 chegado a General, daí o nome da rua. Isto decorreu durante o mandato presidencial de António José de Almeida, sexto presidente da Primeira República Portuguesa, do qual falaremos mais à frente. João, juntando-se ao General Gomes da Costa, ao General Carmona e a outros tantos generais, organizou o golpe de Estado do 28 de maio de 1926. Depois do 25 de abril, as ruas chamadas 28 de maio logo mudaram para 25 de abril. Tendo tomado o cargo de Ministro das Finanças várias vezes durante a ditadura, o seu sucessor foi António de Oliveira Salazar, em 1928, com quem discordava veementemente nas suas visões económicas. Um ano depois, Alves Redol [2] mudou-se para Angola, sendo operário e agricultor, em busca de dinheiro para ter melhores condições de vida. Porém, a pobreza com que se deparou fê-lo regressar pouco depois a Portugal: a crise que se vivia no país, na década de 1920, acabou por servir de pano de fundo para o surgimento de Alves Redol como o primeiro autor neorrealista português, uma corrente literária conhecida pela crítica aos regimes totalitários. Não será de espantar que esta corrente fosse marcadamente marxista. Enquanto João Sinel de Cordes continuava nas orlas da Ditadura, Alves Redol juntava-se ao Partido Comunista Português na Clandestinidade, do qual Álvaro Cunhal fazia parte também. Por causa da sua visão socialista e da atenção que dava às condições desumanas de trabalho que muitos operários experienciavam, Redol chegou a ser preso e torturado. Foi por esta razão, portanto, que a rua que durante o Estado Novo se chamou Rua General Sinel de Cordes tenha sido renomeada como Rua Alves Redol. Acabamos assim a história da primeira rua. Facto curioso é que o atual humorista Rui Sinel de Cordes é bisneto do sobrinho do General de que agora falámos. Há quem lhe chame o pioneiro do humor negro em Portugal, que é uma viragem de carreiras que certamente Sinel de Cordes não poderia ter previsto quase um século antes. 

Voltemos ao momento em que João [3] chegava ao topo da carreira militar, altura em que António José de Almeida [4], o homem que dá o nome à rua a norte do Técnico, era presidente da República. Curiosamente, foi o único presidente da Primeira República a cumprir o seu mandato na íntegra. Tendo nascido no concelho de Penacova, fez a sua educação superior em Coimbra, enquanto Portugal e Inglaterra ultrapassavam um período político tenso, o Ultimato Inglês. No jornal académico da Universidade de Coimbra de então, António José de Almeida critica o rei da altura, D. Carlos:

Não se encontra em ponto algum do país um único homem, ou seja católico ou protestante, monárquico ou republicano, padre ou secular, bacharel ou sacristão, ou faça parte da nobreza ou pertença à plebe, que perante a lei não seja responsável. Donde se conclui que El-Rei D. Carlos de Bragança não é um homem! […] Donde se conclui que El-Rei D. Carlos de Bragança é um animal!”

Completou a sua educação em Medicina, em 1895, tendo ido exercer a profissão para Angola e posteriormente para São Tomé e Príncipe, tendo ao final de cerca de 10 anos regressado à capital, abrindo um pequeno consultório no Largo de Camões. Ao mesmo tempo, entrou na cena política pelo Partido Republicano, tendo sido candidato por este nos anos de 1905 e 1906. Quando, em 1910, se instaurou a Primeira República, foi nomeado Ministro do Interior do Governo Provisório.

A 5 de outubro de 1919, oficializou-se a eleição de António José de Almeida como o quinto Presidente da República Portuguesa, prestes a enfrentar um país que ainda estava a recuperar das dívidas acumuladas durante a Primeira Guerra Mundial. Para piorar a situação, o Reino Unido cancelara a sua ajuda financeira, criando o cenário perfeito para o aumento da inflação e uma crise que, a certa altura, iria fazer com que Alves Redol saísse de Portugal e fosse viver para Angola em busca de uma vida melhor. Durante o mandato de António José de Almeida, este viria a dar posse a dezassete governos, um traço da instabilidade política que se vivia. Um destes governos ficou conhecido como o “Governo dos Cinco Minutos” (o 22º governo republicano), que em boa verdade nem chegou a tomar posse, impedido por uma manifestação convocada pela Formiga Branca. Formalmente, a Formiga Branca era a ala mais radical do Partido Democrático (antigo Partido Republicano) e fora criada com o intuito de ser uma espécie de “guarda pretoriana”[1] do Partido. Na prática, tornou-se numa polícia política que fazia o trabalho sujo. De tal forma ameaçados, aquele que seria o 22º governo republicano logo desistiu e nunca tomou posse.

Findo o seu mandato presidencial, António é ainda eleito deputado por Lisboa, mas o reumatismo fá-lo retirar-se da vida política, passando a estar limitado a uma cadeira de rodas. A sua saúde foi-se deteriorando e chegou ainda a ser eleito 12º Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano Unido, a mais antiga ordem maçónica em Portugal, mas nem chegou a tomar posse. Em 1929, os seus restos foram levados para o Cemitério do Alto de São João.

Na interseção da Rua Alves Redol e da Avenida António José de Almeida (mesmo em frente à antiga Cantina de Civil), encontra-se uma estátua sua, obra do escultor Leopoldo de Almeida e do arquiteto Pardal Monteiro. Este último, muito para além da estátua, foi também responsável pela arquitetura das instalações do Instituto Superior Técnico na Alameda.

Alves Redol, sendo o mais novo das quatro ruas, morreria só depois em 1969. O seu funeral foi fortemente reprimido pela PIDE, dada as várias atividades culturais e políticas que desenvolvera não só em Vila Franca de Xira como em Lisboa. O “escritor do povo” morria como mártir dos trabalhadores [4]. O seu filho único, António Mota Redol, é atualmente presidente da Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo. Curiosamente, António Mota Redol fez o curso de Química no Técnico, tendo sido um dos maiores proponentes da luta estudantil em 1962, na sequência da proibição do Dia do Estudante pelo Estado Novo. Não parando aqui, enveredou na Associação de Estudantes e foi Diretor da Secção de Propaganda, Vice-Presidente e mesmo Presidente da AEIST. Muito à semelhança do atual Departamento de Cinema do Diferencial, havia um Cine-Clube Universitário de Lisboa por volta das décadas de 60 e 70, de cuja direção António fazia parte também [9].

Capa do Boletim do Cine Clube Universitário de Lisboa, maio/junho 1966 [10]

Faltam-nos duas ruas.

José Rovisco Pais nasceu em 1862, sendo contemporâneo de João Sinel de Cordes, que nascera apenas cinco anos depois. Para já contou-se a história das pessoas, mas repare-se que cerca de uma década antes de Rovisco Pais nascer, o Marechal Saldanha encabeçava o golpe de estado que mandou abaixo o governo setembrista [6]. Este golpe logo a seguir deu origem ao Instituto Industrial e Comercial de Lisboa, o Instituto que veio a dar origem ao Instituto Superior Técnico em 1911. A geração de António José de Almeida e José Rovisco Pais acaba por ser uma geração embrenhada num mundo em que a consciência de classe começa a entranhar-se na sociedade, numa altura em que o povo começa a ter noção da sua força de uma maneira mais arreigada, o que justifica a instabilidade sociopolítica que ambos sentiram, especialmente o mais novo, Alves Redol.


Por essa altura, na década de 1850, a primeira companhia de transportes públicos portuguesa ganhava mais importância. Esta companhia chamava-se “Companhia de Carruagens Omnibus”, fundada em 1834, cujo nome vem do latim “para todos” e cuja utilização se iniciara na França, através do termo voitures omnibus. Este termo acabou por se estender para o já independente Brasil da altura, onde se popularizou a palavra “ônibus”. A outra palavra bastante famosa para transportes públicos, principalmente em Angola e Moçambique, é machimbombo, cuja origem também está associada com os transportes públicos em Lisboa, um pouco mais tarde. Machimbombo significa, originalmente, elevador mecânico e em Lisboa havia o muito conhecido Machimbombo da Estrela [7], antecessor do atual famoso elétrico 28. A origem da palavra Machimbombo, ao contrário de omnibus, não vem do latim, mas sim do inglês machine pump. A utilização da palavra como transporte público acabaria por chegar ao significado que tem agora em Angola e Moçambique.

Folheto de uma carreira da Companhia de Carruagens Omnibus, em Lisboa (1853)

Voltemos, no entanto, às últimas histórias. José Rovisco Pais foi, acima de tudo, um latifundiário e proprietário da Cervejaria Trindade. Porém, o legado que nos chega ainda hoje dele não tem nada a ver com a sua área de trabalho. A título póstumo, em 1933, foi-lhe concedido o grau de Grã-Cruz da Ordem da Benemerência, pela sua filantropia: foi ele que fez o donativo final de mil e quinhentos contos para se terminar a construção da Maternidade Alfredo da Costa, que equivale a uma ordem de magnitude de milhões de euros hoje em dia. No seu testamento, deixou as suas herdades de Pegões e ainda outros 10 mil contos, uma autêntica fortuna, aos Hospitais Civis de Lisboa para continuarem a assistir os mais necessitados. 

A Cooperativa Agrícola de Santo Isidro de Pegões, sita em Setúbal, nas antigas herdades do filantropo, relembram o seu nome ainda hoje com o vinho Rovisco Pais. O que está por trás desta honra é o facto de as suas herdades, equivalentes a cerca de 7000 hectares, terem sido o fruto do maior projeto de repovoação interna de Portugal, tendo permitido a fixação de cerca de 200 famílias nestes terrenos. Para além disso, não muito longe das herdades, também financiou a Santa Casa da Misericórdia de Setúbal e a Leprosaria Rovisco Pais, hoje Centro de Medicina e Reabilitação. 

Pouco mais se sabe sobre José Rovisco Pais que, durante a sua vida, calou toda a sua filantropia. Só depois de morrer é que se veio a saber mais sobre o seu envolvimento nestas obras.

Chegamos, por fim, à última rua. Manuel da Maia, o mais antigo dos quatro. Por mais que se chame à Baixa de Lisboa a Baixa Pombalina, o engenheiro por trás deste grande projeto foi Manuel da Maia, o homem que dá nome à rua que separa o campus do resto da Alameda. Sendo contemporâneo de Luís XIV e de Isaac Newton, as suas primeiras contribuições para o Reino de Portugal contaram com os trabalhos de fortificação de Lisboa, Estremoz, Beira e Abrantes. No ano em que termina estes trabalhos, em 1704, John Locke dizia as suas últimas palavras em High Laver, no Reino Unido.

Meio século depois, com 74 anos, é nomeado Engenheiro-Mor do Reino, o que queria dizer que era ele quem estava encarregue das fortificações e obras públicas, para além de superintender o ensino de engenharia militar. Ambicioso, propôs-se a fazer vários projetos, dos quais se destaca o Aqueduto das Águas Livres. Dizer “meio século depois”, no entanto, talvez não nos indique imediatamente o problema que isto coloca. O ano em que finalmente lhe dão esta enorme responsabilidade é 1754. Um ano depois, Lisboa era destruída pel’O Terramoto, a capital era engolida pela terra, pelo fogo e pela água. Foi Manuel da Maia quem ficou encarregue da reconstrução da cidade de Lisboa e fê-lo já numa idade avançada, com 75 anos. O Aqueduto, para sua felicidade, resistiu ao Terramoto sem dano.

Porém, há uma parte de Manuel da Maia que talvez importe relevar, a que salvou Portugal de perder quase 500 anos da sua história. Sem este trabalho talvez não conseguisse escrever estes artigos históricos. Antes de chegar a Engenheiro-Mor, Manuel já era o 31º Guarda-Mor da Torre do Tombo, que na altura se encontrava no Castelo de São Jorge, onde estavam as instalações do Arquivo Real. O nome Torre do Tombo, ao contrário do que encontramos hoje na Cidade Universitária, era literal na altura: era uma torre do Castelo de São Jorge, onde havia uma coleção enorme de volumes históricos que contavam a história de Portugal desde 1161 até 1696. Em números, isso constituía cerca de 90 mil documentos originais, todos postos em perigo na manhã do dia 1 de novembro de 1755. Manuel da Maia saiu a correr de sua casa, que sucumbia a um incêndio, em direção ao Castelo de São Jorge de modo a conseguir salvar o máximo que pudesse dos documentos. Convencendo várias pessoas que estavam em pânico por causa do terramoto e dos incêndios, formou uma equipa no momento para salvar os documentos, com bastante sucesso, que ficaram armazenados num armazém improvisado próximo do castelo. Relembro que fez isto tudo com 75 anos de idade.

Muito à semelhança de Rovisco Pais, muito pouco se sabe para além das suas contribuições como Engenheiro-Mor. Ambas personagens importantes, em épocas completamente distintas, com quase dois séculos de distanciamento e cujas vidas são hoje lembradas apenas pelos seus legados ao povo. António José de Almeida, por outro lado, tem a sua vida bastante bem documentada, à semelhança da família real de João Sinel de Cordes. Alves Redol acaba por ser o único elemento cultural e o mais revolucionário destes quatro. Ainda assim, é o único que não tem direito a uma avenida, ficando nas traseiras do Instituto Superior Técnico. É compreensível que assim seja, mas quase parece haver uma mensagem muito subtil nos nomes das ruas que circundam o Técnico. A sua fachada, Manuel da Maia, António José de Almeida e José Rovisco Pais têm a sua vida associada ao trabalho que devotaram a Portugal e, por trás, a segurar as costas do Técnico, está Alves Redol, a chama revolucionária.

Assim termino o meu breve relato das ruas que temos de calcar na nossa peregrinação diária a uma faculdade que tantas vezes nos desilude.

Notas (sobrescritos):

[1] – Guarda Pretoriana era uma secção do exército romano, a parte mais central de uma legião, que estava encarregue de proteger os oficiais, que ficavam no pretório (daí o seu nome). Com o tempo, tornaram-se na guarda pessoal do imperador.

Bibliografia:

[1] – https://www.publico.pt/2017/04/25/local/noticia/a-vontade-de-afirmar-abril-tambem-se-ve-nos-nomes-das-ruas-de-lisboa-1769580

[2] – https://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/ExposicoesVirtuais/ExpoAlvesRedol/ExpoAlvesRedol.htm

[3] – https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Jos%C3%A9_Sinel_de_Cordes

[4] – https://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_Jos%C3%A9_de_Almeida

[5] – https://www.museudoneorealismo.pt/acervo/espolios-literarios/alves-redol-79

[6] – https://diferencial.tecnico.ulisboa.pt/tecnico/1852-o-inicio/

[7] – https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/artigos/rubricas/idioma/o-que-era-o-machimbombo-da-estrela/3192

[8] – https://toponimialisboa.wordpress.com/2017/05/02/jose-rovisco-pais-da-cervejaria-trindade-e-da-maternidade-alfacinha/

[9] – https://arep.pt/antonio-redol/

[10] – http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=04816.017#!1

Leave a Reply