Autoria: João Carranca, LEEC
O rato corria pelos corredores de um pequeno apartamento em Leningrad. Atrás dele um rapazito baixo e redondo. Seria o 3° ou 4° da semana. Teria o mesmo fim dos outros, pensou o rapaz. Eventualmente, o rato esbarra num dos cantos da cozinha. O rapaz tranca a porta. Convencido da sua vitória, prepara-se para desferir o golpe final. No entanto, instantes antes do seu aparente fim destinado, o rato salta e morde ferozmente a mão do rapaz. O rapaz grita numa mistura de dor, susto e raiva. Limita-se a fugir e trancar as portas das várias divisões. É um momento que define a sua vida.
“A imprevisibilidade do desespero”. As criaturas vivas não gostam de se sentir encurraladas. Nunca são mais temíveis do que quando se vêem entre três paredes e um inimigo.
O pequeno rapaz torna-se vaidoso adolescente. Gasta o dinheiro que ganha a trabalhar na Sibéria em casacos de pele e botas de marca. Veste-se impecavelmente. Aos 20 anos já tem carro. Será talvez o único estudante com carro de toda a Leningrad. Comprou-o com o dinheiro ganho pelos pais na lotaria.
De adolescente vaidoso passa a adulto medíocre. Sempre sonhou com os serviços secretos. Seu pai era um conhecido informador. Os serviços secretos eram o prestígio, a elite do país. É recusado, uma, duas vezes. À terceira entra. Aprende a arte da espionagem. Como prémio é enviado para Dresden, uma cidade média do leste da Alemanha, pouquíssimo relevante no mundo da espionagem internacional. Lá aprende a inveja e a frustração. Vive num pequeno e pouco mobilado apartamento com apenas o básico. De onde ele vinha, uma máquina de lavar roupa era um luxo, quase inexistente nos bairros urbanos. Ali era um bem comum, tal como os telefones de casa. O seu salário era medíocre. Gasta-o todo em bebida. Em pouco tempo, perdeu o físico pujante que havia adquirido no seu período de treino para agente.
Encarregado de “intercetar informação sensível militar do bloco ocidental”, limita-se a falar com alunos universitários com contactos em Berlim, cidade onde a guerra de espionagem verdadeiramente ganhava vida. Em 5 anos, não consegue mais que um banal manual técnico militar desclassificado.
Em casa, tudo começava a mudar. Sentia-se que era o princípio do fim. Na Alemanha de leste, em Dresden também, protestava-se. Os jovens saíam à rua aos milhares, enchiam avenidas agarrando em cartazes, colavam pósteres nas paredes. Aterrorizavam-no. Aquelas hordas de gente recordavam-lhe o rato. Voltava, de repente, a ser o rapazito baixo e redondo, gritando e correndo pelos corredores da sua casa em Leningrad. Um dia cercaram a sua sede enquanto trabalhava. Ligou para casa, queria ordens. Recebeu silêncio. Não hesitou. Queimou tudo. O que não queimou guardou consigo.
De volta a casa, já não havia Alemanha de leste e ele já não era dos serviços secretos. Estava agora desempregado, mais frustrado que nunca. Um dia, encontrou um antigo professor do seu tempo na universidade de Leningrad, o futuro presidente da câmara. Em breve seria vice-presidente da câmara de São Petesburgo, nome que ressurgiria após a queda do regime. Ao longo dos seus anos na câmara veio a ganhar a reputação de homem leal. Encobriu corrupção e encomendou um documentário sobre si mesmo. Marca de que transitou de adolescente vaidoso para a fase adulta. Chega ao poder por conveniência dos que lá estavam. Valeu-lhe a reputação de lealdade e a necessidade de Yeltsin de desaparecer sem deixar rasto. Isso e o mais brutal ataque terrorista da história da Rússia. Durante uma manhã de Setembro, um conjunto de apartamentos é destruído por explosivos com os seus moradores ainda a dormir. De praticamente desconhecido, passa a celebridade nacional, homem patriota de políticas fortes e decisivas, pronto para defender o seu país a todo o custo. Daqui lança uma campanha imparável a caminho do mais alto cargo da nação.
O adulto medíocre sonha agora com a grandeza da história e da eternidade. Sonha também com o respeito do mundo. Mas o mundo havia mudado muito desde os tempos dos serviços secretos. Não havia mais blocos nem bipolaridade. O líder do mundo livre não pretendia mais dar satisfações a ninguém. Ele não gostava deste novo mundo. Todos aqueles anos de frustração tinham-lhe dado uma sede enorme por poder. Passou muito tempo a estudar a História, a idolatrar os seus mais famosos antepassados. Pedro, o grande. Catarina, a grande. Conquistadores de serviço à Mãe Rússia. Ele também queria morrer grande. As ações do mundo livre opunham-se ao seu desejo. Foi criando ódio ao mundo livre. Um dia, decidiu escrever o seu nome na História, conquistador como os seus ídolos. Grande também como eles. Mas o mundo livre respondeu. Encurralou-o.
“A imprevisibilidade do desespero”. As criaturas vivas não gostam de se sentir encurraladas. Nunca são mais temíveis do que quando se vêem entre três paredes e um inimigo. O rato salta e morde ferozmente a mão do rapaz.