O que é que têm “Os Lusíadas”, o Fado, e um chá quentinho em comum? Duas coisas: são formidáveis expressões da língua portuguesa, e são manifestações da nossa ”Portugalidade”. Mas existirá uma relação mais profunda e, crucialmente, mais elucidativa entre a nossa linguagem e a nossa identidade nacional?
Autoria: João Cardoso, LEIC (IST)
Tal como o ar que respiramos, a linguagem é algo a que prestamos pouca atenção, mas que tem uma importância inegável. Se o primeiro nos permite viver de todo, a segunda permite que essa vida tenha uma complexidade considerável, mais do que a de qualquer outro animal. Com efeito, é essa mesma linguagem que nos distingue dos outros animais: tanto quanto sabemos, só nós humanos é que temos esta capacidade.
Para além de nos diferenciar e identificar enquanto seres humanos, a linguagem é também o alicerce do nosso conceito de identidade em geral. Embora tenhamos tendência a associar a identidade a algum conjunto de características inerentes àquilo que queremos definir, a verdade é que, como apontava Bertrand Russell na sua crítica ao essencialismo platónico, é da linguagem que surgem essas categorias, e não das coisas em si. Para compreendermos o mundo, há que categorizá-lo, que impor uma estrutura interpretativa, e fazemo-lo por intermédio da associação de conceitos a experiências, da conceção de generalidades que deem sentido ao particular. As coisas que categorizamos, por sua vez, são entrópicas e permeadas pela diferença: não há duas pétalas ou duas gotas de água que sejam iguais, há sempre diferenças, por mais pequenas que sejam, mas ainda assim as categorizamos.
Acontece que a linguagem é um agente diferencial. Para o filósofo Ferdinand de Saussure, apenas através de uma rede semântica de oposições entre conceitos é que lhes poderíamos dar sentido. Por exemplo, imaginemos que temos de ensinar a alguém que não fale português a palavra “árvore”. O ato de apontar para uma árvore e dizer a palavra correspondente não bastaria, já que o aprendiz não saberia se nos referíamos à árvore, às suas folhas, a um bosque, ao conceito de Natureza, etc. Sendo assim, teríamos de mostrar também o que não era uma árvore, percorrendo os casos que pudessem levantar confusão.
Todavia, a floresta ou a Natureza representam algo diferente para cada cultura. Aliás, a própria palavra “Natureza” surge da palavra latina natura, que significa “disposição inata” ou “qualidade essencial”, mas que, nos dias de hoje, também tem um significado mais abrangente, referente à vida e ao mundo em geral, significado este que apenas pode ser compreendido à luz do surgimento da ciência e dos ideais humanistas, que deram lugar a uma conceção mais ampla do saber.
O facto de a linguagem surgir dentro de certos paradigmas culturais também implica que venha a ser uma marca da nossa proveniência enquanto falantes. No caso do Português, o facto de ser falado em tantos sítios e de tantas formas certamente contribui para a riqueza da língua. A musicalidade de um sotaque do Brasil é inconfundível, e a prosódia ritmada de um falante angolano é inteiramente diferente da de um professor de matemática que recorre liberalmente à elisão para conseguir terminar de ensinar a sua matéria de topologia.
Curiosamente, parece que a topologia de uma região também tem efeito na sonoridade de um sotaque. No documentário “How the Edwardians spoke”[1], da BBC, a dialect coach Joan Washington conjetura que a topologia dos sítios em que as pessoas vivem afeta a sonoridade dos seus sotaques. Embora ainda não haja evidências científicas que corroborem este juízo, não parece de todo descabido estabelecer um paralelo entre o sotaque mais monótono do Alentejo e as planícies abundantes que lá se encontram. Analogamente, é no Norte de Portugal, região montanhosa, que as cadências da fala têm mais amplitude e movimento, quer seja pela pronúncia ditongada do “ou”, que no Sul se foi perdendo, quer seja pela ênfase e pela musicalidade dos sotaques do Norte.
A musicalidade é precisamente outra componente importante da identidade nacional. A música portuguesa é um espelho das nossas vivências, dos desafios enfrentados, quer nos refiramos tanto ao zeitgeist do 25 de abril e à relevância de Zeca Afonso, como ao sentimentalismo de Jorge Palma. E a relação entre a música e a língua é também muito próxima, já que esta última frequentemente é explorada e manipulada de modo a se obter a maior expressividade possível (como alguém que já tentou traduzir uma canção de uma língua para outra certamente terá constatado). Todavia, alguns cientistas, como Aniruddh Patel [2], afirmam que a simbiose entre a música e a linguagem se manifesta também ao nível da melodia, harmonia e ritmo da música em si: as frases melífluas de Debussy contrastam com a imponência de Wagner, do mesmo modo que a sinuosidade da prosódia francesa é distinta do rigor quase militarístico do alemão. Consequentemente, não é só quando Amália canta sobre a saudade que a música adquire algo de unicamente português.
A palavra “saudade” é um ponto de orgulho para os falantes do português por ser supostamente intraduzível. A verdade é que há traduções mais ou menos diretas de “saudade”, a título de exemplo, o inglês “longing”. Ainda assim, o que é intraduzível não é o significado estático da palavra – o conceito de sentir falta de alguém –, é sim uma dor particular, que dificilmente se define. Apenas se compreende através da experienciação da cultura portuguesa: ao ler Fernando Pessoa, ao ouvir o Fado, entre outros. E, de facto, é possível encontrar mais palavras assim, traduzíveis no sentido estrito do termo, mas cuja expressividade se encontra ausente nas outras línguas. O humorista Ricardo Araújo Pereira refere [3] o exemplo da palavra “quentinho”, que significa um tipo de calor muito particular: um chá quente magoa; um chá quentinho aconchega. Um Inglês ou Francês só conhece um destes termos, e por esse motivo ignora o sentido particular que nós lhe damos, o travo de carinho que a palavra traz consigo.
Constatamos, assim, que as dinâmicas da língua, a sua singularidade e expressividade, constituem motivos de orgulho para os falantes da língua portuguesa, mas sobretudo para nós, portugueses, por ter esta originado cá. Contudo, é importante salientar que nem todos os aspetos da língua, e mais geralmente da faculdade humana da linguagem, corroboram esta noção de identidade. Assim como os conceitos descritos pelas palavras, a ideia de uma identidade nacional coesa não é tão inabalável quanto poderá parecer. A verdade é que, por um lado, as diferenças que nos singularizam não se ficam pelas fronteiras nacionais; por outro, as semelhanças com as outras línguas são mais numerosas do que aparentam.
Há uns anos, apercebi-me de que os meus pais pronunciavam a letra “R” em palavras com “carro” de maneira diferente da minha. Achando isto estranho, decidi averiguar o porquê desta divergência, acabando por descobrir que há uma tendência para as crianças adotarem o sotaque dos seus coevos, e não dos pais. Por este motivo, a evolução da língua é fruto da criatividade das gerações mais novas, que organicamente inventam novas palavras. As diferenças geracionais assinaladas por esta evolução são um exemplo de como o fator diferencial da linguagem não se cinge ao plano nacional. Adicionalmente, parece que a própria ideia de uma linguagem nacional é um conceito algo recente. Como o linguista Noam Chomsky aponta[4], havia em países como a França, a certa altura, dezenas de línguas, e era possível que dialetos de aldeias vizinhas fossem mutuamente ininteligíveis. Como se não bastasse, não há uma demarcação clara entre a língua de um país e de outro: antigamente (e, até certo ponto, ainda hoje) os sotaques setentrionais em Portugal eram consideravelmente mais próximos do galego do que os do Sul, pelo que um viajante que percorresse Portugal de Sul a Norte encontraria cada vez mais parecenças com o galego nos dialetos que fosse ouvindo. Foi só com a consolidação dos órgãos de poder e a expansão do papel do Estado, especialmente através da educação, que começou a surgir esta noção de linguagem nacional.
Mas Chomsky é mais conhecido por assinalar a universalidade do substrato da linguagem[5]. Argumenta que a rapidez com que uma criança adquire uma língua é indicativa de alguma estrutura “pré-programada”, já que, de outro modo, seria impossível que aprendesse uma língua com tão pouco esforço e tão rapidamente. Com efeito, a linguística parece sugerir que as diferenças entre línguas são sobretudo superficiais: cingem-se à associação de sons com palavras e à ordenação de partículas gramaticais. Mas as estruturas geradoras e interpretativas da linguagem são essencialmente as mesmas para todos os humanos. Pode haver entre um português e um japonês imensas diferenças culturais e uma grande barreira linguística, mas, de certo modo, os processos conceptuais que ocorrem nos respetivos cérebros são equivalentes.
Por último, há que ter em mente que a nossa língua nunca teria a globalidade que tem sem as tendências expansionistas e coloniais dos nossos antepassados. Tanto no Brasil, como nas colónias de África, a adoção do português como lingua franca deveu-se à subjugação de populações indígenas e subsequente subversão das suas práticas culturais e linguísticas. E ainda hoje esta dinâmica se verifica. Com a globalização e o surgimento da internet, a ênfase na literacia e na constante conexão fez com que muitas pessoas se tenham visto forçadas a aprender línguas como o português e inglês, por não existir alfabeto para a sua língua mãe[6]. Esta realidade, aliada à categorização linguística imposta por académicos ocidentais, por vezes alheados da cultura dos falantes, leva a que, muitas vezes, não haja o devido reconhecimento da expressão cultural de inúmeros falantes.
A consciência deste legado imperialista português é uma marca da portugalidade no século XXI e, embora haja ainda lugar para o orgulho nacional, este certamente não se pode dar ao luxo de ser tão incontroverso como era na altura em que Fernando Pessoa escreveu “Mensagem”. Embora a língua portuguesa seja rica e bela, também pode ser encarada como uma cicatriz deixada pelo colonialismo no mundo.
Verificamos, portanto, uma dualidade e incerteza acerca da nossa identidade, e da influência que a linguagem tem nela. É inegável que há motivos para ter orgulho da nossa herança linguística, e para apreciar a beleza da língua e as virtudes dos seus falantes. Não obstante, com uma análise da língua, ao verificar que as fronteiras entre as categorias que concebemos são mais difusas do que aparentam, há que adotar uma visão mais subtil e complexa da nossa identidade nacional. Não é irracional ter orgulho do nosso país, mas é-o quando este é excessivo e imponderado. Temos de encontrar o equilíbrio, e talvez ao prestar atenção ao papel da linguagem como agente diferencial o possamos atingir mais fácil e naturalmente.
[1] How the Edwardians Spoke [signed].
[2] Aniruddh D. Patel (2008). Music, language, and the brain Oxford: Oxford University Press.
[3] Ricardo Araújo Pereira, Cuidado com a língua
[4] The Concept of Language (Noam Chomsky)
[6] Identifying Yourself Through Language | Robyn Giffen | TEDxUBCOkanagan