Portugalidade é um lifestyle. Envolve, pois claro, o fado, o futebol e Fátima, mas também o desenrascanço: o superpoder daqueles de sangue português. Nos bons velhos tempos, o termo “pequeno-almoço” significava café e pastel de nata na bomba de gasolina logo de manhãzinha, até porque se vendia lá tabaco e dava para aproveitar para abastecer um conto, precisamente para não sentir os efeitos do aumento do “preço da gota”. Será a portugalidade ainda isto, em 2021, ou estará a nossa identidade a mudar pouco a pouco?
Autoria: Miguel Cóias, MMA (IST)
Não há nada mais português que um “comes e bebes” como deve ser. Em 1998, aquele louco ano em que parecia haver dinheiro para tudo, aproveitou-se a construção da ponte Vasco da Gama para levar esta doutrina ao próximo nível: a ponte deu palco à maior feijoada do mundo, com cerca de quinze mil pessoas a manjar numa mesa com cerca de cinco quilómetros de extensão que, aliás, ainda hoje mantém um recorde no Guinness World Records. Assim que foi estreada pelos automóveis, tornou-se a pista favorita dos amantes de corridas de automóveis (e provavelmente também do tuning).
Pelo norte da Europa, já havia o consenso de que no sul não se gosta de trabalhar e que estouramos o nosso dinheiro em copos; ora, é natural que uma feijoada desta escala alimente o viés de confirmação de tal hipótese. Às tantas, quem tinha razão era Jeroen Dijsselbloem, um frugal ferrenho que calhou a presidir o Eurogrupo há uma data de anos, quando sugeriu que os países do sul estouram o dinheiro todo não só em copos, como também em mulheres.
Para ser completamente justo, ao virar do milénio não era completamente descabido dizer que íamos voltar a dominar o mundo. Entre as nossas autoestradas, que cresciam tão rápido quanto os caminhos de ferro se desintegravam no interior do país, e eventos de grande escala como a Expo 98 e o Euro 2004, o céu parecia o limite. A ostentação era tanta e tão descarada que pelas partes rurais do país proliferavam os jipes (alegadamente) comprados com subsídios europeus para a agricultura, e por outras partes de Portugal ofereciam-se frigoríficos e batedeiras elétricas a eleitores. Quanto aos negócios da altura, os honestos eram essencialmente restaurantes ou cafés snack bar: locais ideais para uma tardada de caracóis, ver a bola ou começar o dia de trabalho a consumir um café com cheirinho. Evidentemente, o estacionamento era sempre feito com quatro piscas em segunda fila.
O boom económico que deu origem a este “novo-riquismo” começou na década que sucedeu à adesão de Portugal e Espanha à CEE, em 1986. Estando mais ou menos ultrapassada a bancarrota apenas três anos antes, as famílias começavam a dispor de rendimentos substancialmente superiores aos que tinham antes, pelo que concretizar projetos familiares como a compra de um automóvel, umas férias no Algarve ou até a criação de um negócio de família passou a ser possível. Um bacharelato era praticamente uma garantia de emprego, e também o era (e é) a dinâmica de “conhecer as pessoas certas”.
Pouco a pouco, também a típica casa portuguesa deixava de parecer um commie block e adquiria a sua própria identidade, com naperons e móveis de louça que vão até ao teto. Durante este período magnífico, eram moda as detestáveis marquises e os bares de canto, que dotavam o lar de um ambiente primoroso para a degustação de um copo de Porto sem ter de abandonar o seu conforto. Para responder às necessidades do mercado, havia cada vez mais empreiteiros para tornar estes pequenos sonhos realidade, e também para ganhar uns bons trocos com isso – sem fatura nem contribuinte.
Porém, nada disto é mais que uma visão nostálgica e romântica da portugalidade de outros tempos. A identidade do país não só não escapou ilesa à crise da última década, como também as galinhas dos ovos de ouro de hoje em dia são um tanto ou quanto diferentes; algumas, como o turismo, até contribuem para a eventual extinção desta noção de portugalidade enquanto lifestyle. Ainda assim, nada está perdido. Quem há muitos anos emigrou para longe daqui, compreende muito bem as célebres palavras do sr. Camilo de Oliveira: “lá fora tá-se pior, tá-se tá-se… táááá-se”. E, para ser franco, nem tudo do país que tínhamos nos anos 90 era perfeito.
Vamos por partes. A principal galinha de ovos de ouro dos últimos anos foi obviamente o turismo, que naturalmente contribui para a homogeneização da identidade portuguesa com a dos outros países ocidentais. Na prática, os efeitos do turismo em Portugal corresponderam apenas a um acelerar dos processos de globalização já em curso há uma data de anos, pelo que pouco importa se aceitamos o inevitável mais cedo ou mais tarde. De certa (e peculiar) forma, também este Portugal do tempo das vacas gordas vai sendo fonte de inspiração ou alvo de estudo por vários artistas, aqui e ali.
A música ligeira, vulgo pimba, continua a resistir e parece aqui estar para ficar. Em tudo o que é festa, romaria ou arraial em honra de Nossa Senhora de alguma coisa, é a alma da festa – especialmente se houver bailarinas. Apesar do desdém que alguns portugueses por trocadilhos de cariz sexual, na altura dos Santos Populares todos de todas as idades colocam de lado as suas diferenças para aderir à loucura da concertina do Quim Barreiros. Até o Tino, calceteiro man e candidato do povo, entrou na brincadeira.
Também músicos românticos como Toy ou Marante são grandes fontes de inspiração para artistas como David Bruno. Desde que lançou em nome próprio o Último Tango em Mafamude, onde conta histórias de vida da hoje extinta freguesia de Vila Nova de Gaia, a foleirice e o saudosismo duplicam-se a cada registo. Sendo sucinto, fala-se de empreiteiros (alegadamente) caloteiros, inspetores que viraram celebridades de televisão, festas da espuma; tudo isto ao som das “guitarradas de lamber quilhão” do Marquito. A cereja no topo do bolo? Todos os álbuns saem acompanhados por um vídeo álbum de péssima qualidade técnica.
Admito que possa ser confuso para alguns que histórias de um país tão banal como o Portugal do tempo das vacas gordas tenham algo de especial. De certa forma, o humor que embebe estas histórias ajuda-nos a refletir sobre tempos mais simples sem perceber que o estamos a fazer, e é também interessante imaginar que aspetos da cultura popular da contemporaneidade vão ser simultaneamente apreciados e ridicularizados daqui a umas décadas. No fundo, para que futuro segue o país? Que forma terá daqui a dez, vinte ou cinquenta anos? Que aspetos culturais da portugalidade de hoje vale a pena preservar?
Muitas das referências culturais supramencionadas já se encontram numa trajetória de decadência. Quem nasceu depois de 2000 não faz a menor ideia que “laranja de manhã é ouro, à tarde, prata, e à noite mata”, ou que para ir ao banho na praia nem um raio de uma bolacha se pode comer a menos de três horas de ir ao mar. Caso contrário, uma paragem de digestão (ou pior) era garantida, segundo todas as mães portuguesas. Por outro lado, outras referências culturais vão ganhando raízes na mente dos portugueses – o sr. Fernando Mendes é, em boa medida, responsável por isto.
No fundo, só os livros de história do futuro terão respostas para qualquer uma das questões que coloco. Felizmente, a larga maioria de nós terá o privilégio de assistir em direto e moldar a evolução da sociedade. Não voltar a cometer os erros do passado é, com certeza, essencial num momento em que o mundo enfrenta alguns dos desafios mais intrincados de sempre. Porém, diz-se que tempos difíceis criam homens (e mulheres) fortes – veremos se esta tese resistirá ao teste do tempo. Independentemente do que venha a acontecer, garantido é que o refogado, ou estrugido, continuará a ser a base da gastronomia portuguesa por muitos anos.