Este texto é uma paródia d’”Os Lusíadas” que escrevi há uns anos, inicialmente de acordo com o prompt “faqueiro que cheira a manga”, sadicamente sugerido por um amigo, ainda que depois se tenha tornado num elogio da comida portuguesa. Mais recentemente, submeti-o ao concurso de poesia da AEIST, ficando colocado em segundo lugar. Segue-se aqui o poema, juntamente com o texto original de Camões. É um shitpost do mais alto calibre.
Autoria: João Cardoso (LEIC)
As fragrâncias e os aromas frutados
Que da traidora faca romana,[1]
Por dilaceros e movimentos efeminados;
Se enlevaram da maçã, da pêra, e da banana
Mas os odores aqui mais primados
Foram da nobre manga Indiana,
E de entre as fissuras do faqueiro emanaram
O cheiro das mangas que liquidificaram.
E também as misturas melosas
Do eletrodoméstico que foi triturando
A fruta, o leite, coberturas pastosas
Da dispensa e gaveta, tudo dilacerando
E os aparelhos, as máquinas engenhosas
Como a Bimby, sempre maquinando
Em falsete, cantarei daqui a Marte
Pode até ser que faça uma tarte.
Calem-se com o Francês e o Italiano
As sobremesas que esses sonsos fizeram,
Nem piem do Alexandre Herculano
Do néctar que suas vinhas deram
Que eu canto o tecolameco alentejano
Por quem até Vénus e Cronos esperam
Já disse para se calarem, a conversa é tanta
Habilitam-se a levar uma sulipampa.
E vós, caro Goucha, pois inebriado,
Me tendes como que com água-ardente,
Por vossa careca de brilho refinado
Que eu fito pois venerantemente.
Dai-me agora tempero equilibrado
Um jalapeño muy caliente
Que nos ponha a gritar como sirene,
Ou como Cristina, vossa companheira perene
Dai-me culinária ilustre e grandiosa,
Não de agreste aveia ou fruta tesuda
Mas de pimenta preta polvorosa
Que o peito arrebenta e a cor ao gesto muda
Dai-me uma touca bem fermosa
Como a do, ou lá o que é, o Buda[2]
Que se acenda o gosto dos mais aversos
Com pratos de travos assaz diversos
E vós, servido nobre em faiança,
O pudim que de Priscos é Abade,
E não menos dilatador da pança
Promotor nacional da obesidade.
Vós, ó confeção de textura mansa,
Vosso toucinho sim é da celeste herdade
Dado ao mundo pelo porco, de sua perna grande,
Para este sacrifício, Deus o comande
Vós, tenro e gomoso pudim pendente
De üa banha, de Orwell a mais nevada,
Que nenhüa comida na terrestre frente
De tradição ou de fusão confecionada
(Vede no vosso lustre, que reluzente,
Vos amostra a nhanha jamais superada
No qual vos deu, quando vos criou
A nobreza que postumamente ganhou).
Vós, portentoso doce, a quem o falanstério
Do corpo, que pré-deglutição tem o cheiro
Na comuna um gostoso irradio de Meitnério
E pois quando desce o dito cujo traseiro
Vós, que minguamos gemas a sério
Do atulhado aviador galinheiro
Do pobre animal, que nem com o cio
Mitiga o poderoso e tenaz fastio.
Abaixai vosso pedúnculo de dulcidade
Que lambendo as beiças vos contemplo,
Que se me afigura já firme integridade,
Quando descendo ireis ao estomacal êmbolo;
Os olhos de vítrea gelatinosidade
Ponde no coração: em mi vede exemplo
De amor de nossos confeitos bem gostosos
Em satíricos versos pastichosos.
Vereis um dente doce, não surgido
De glutonia, mas de amor culinar e terno;
Que não é por doce se ter comido
Que vai um gajo parar ao inferno.
Ouvi: vereis o nome enaltecido
De quem enche o bandulho externo,
E julgareis qual feito mais imponente,
Se ser pudim clerical, se deles regente.
Ouvi, que não é com artimanhas,
Com quaisquer confeções de Knorr caldosas,
Louvar os vossos, ao tirar umas senhas
De refeições de take-away ranhosas:
São tão genuínas as naturais lenhas
Que excedem as instantâneas, não-vagarosas,
Que excedem o que congelado é por pesqueiro
Ainda que seja pota à lagareiro.
Por estes vos darei um ló Ibero,
Sem menção do qual seria remisso,
Um rancho e feijoada, que de austero
Tem só o chorrilho, que não é maciço;
Dar-vos por Michelin enchouriçado espero
O que de verde é caldo e o seu chouriço;
Dou-vos também aquela ilustre chama;
Que para si de Leite crema uma cama.
Pois se por quem dança a samba dança,
Quereis igual à confeção de chicória,
Vede Bulhão Pato, cuja pujança
Trouxe amêijoa aos anais da história;
E Gomes de Sá, cuja grande herança
Adornou a tal iguaria piscatória;
Outro gajo, que não sendo cozinheiro,
Se lembrou de por alho no traseiro[2]
Nem olvidarei os doces guarnecidos,
Um bom bolo, por mirtilo ou amora:
De comer e deixar pratos lambidos,
O que é vosso e que o palato adora:
Um ovo mole, que é de ovos batidos,
Camelídeas babas – gustação canora,
Fava real, portadora da sorte
E outros que deliciam feio e forte.
E, enquanto estes tempero – e outros desosso
Não me atrevo a tocar vosso real manto –
Comandai pois o tradicional nosso:
Darás recheio a um épico santo.
Comecem sentindo o peso colosso
(Que com o queixo torne o chão quebranto)
De notáveis regueifas e folares,
Sacrossantos êxtases paladares.
De vós recheio inveja o semifrio,
Em quem vê o creme insuperado;
Só de enxergar vosso fluído rio
Se dirige pr’ó lixo, descartado;
Padeira tem para vós celeste brio,
Não junto do lote decapitado,
Que no jardim onde filho é genro
Se tenha edénico pudim tenro.
Em vós constam, da culinária honrada,
De duas correntes almas saborosas;
Uma, na banha grudenta salgada,
Outra, pelas dulcidades deleitosas.
Em vós se vê revitalizada
Herdade sua de gustações proveitosas;
E lá na derradeira longevidade,
Ides ao panteão da obesidade.
Mas, enquanto o vosso ser pardacento
Apraza os povos, que vos almejam,
Dai valor a este empreendimento,
Perfilhai estes versos que vos beijam,
E vereis nossa salsa, nosso pimento,
Pelo mundo aromas que sobejam,
O que é nosso pelo mundo espalhado,
Homem unido, por banha pegado.
As armas e os Barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mi um novo engenho ardente,
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mi vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloco e corrente,
Por que de vossas águas Febo ordene
Que não tenham enveja às de Hipocrene.
Dai-me üa fúria grande e sonorosa,
E não de agreste avena ou frauta ruda,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;
Que se espalhe e se cante no universo,
Se tão sublime preço cabe em verso.
E, vós, ó bem nascida segurança
Da Lusitana antiga liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade;
Vós, ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
Pera do mundo a Deus dar parte grande;
Vós, tenro e novo ramo florecente
De üa árvore, de Cristo mais amada
Que nenhüa nascida no Ocidente,
Cesárea ou Cristianíssima chamada
(Vede-o no vosso escudo, que presente
Vos amostra a vitória já passada,
Na qual vos deu por armas e deixou
As que Ele pera si na Cruz tomou);
Vós, poderoso Rei, cujo alto Império
O Sol, logo em nascendo, vê primeiro,
Vê-o também no meio do Hemisfério,
E quando dece o deixa derradeiro;
Vós, que esperamos jugo e vitupério
Do torpe Ismaelita cavaleiro,
Do Turco Oriental e do Gentio
Que inda bebe o licor do santo Rio:
Inclinei por um pouco a majestade
Que nesse tenro gesto vos contemplo,
Que já se mostra qual na inteira idade,
Quando subindo ireis ao eterno templo;
Os olhos da real benignidade
Ponde no chão: vereis um novo exemplo
De amor dos pátrios feitos valerosos,
Em versos divulgado numerosos.
Vereis amor da pátria, não movido
De prémio vil, mas alto e quási eterno;
Que não é prémio vil ser conhecido
Por um pregão do ninho meu paterno.
Ouvi: vereis o nome engrandecido
Daqueles de quem sois senhor superno,
E julgareis qual é mais excelente,
Se ser do mundo Rei, se de tal gente.
Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,
Fantásticas, fingidas, mentirosas,
Louvar os vossos, como nas estranhas
Musas, de engrandecer-se desejosas:
As verdadeiras vossas são tamanhas
Que excedem as sonhadas, fabulosas,
Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro
E Orlando, inda que fora verdadeiro.
Por estes vos darei um Nuno fero,
Que fez ao Rei e ao Reino tal serviço,
Um Egas e um Dom Fuas, que de Homero
A cítara par’eles só cobiço;
Pois polos Doze Pares dar-vos quero
Os Doze de Inglaterra e o seu Magriço;
Dou-vos também aquele ilustre Gama,
Que para si de Eneias toma a fama.
Pois se a troco de (Carlos, Rei de França,
Ou de César, quereis igual memória,
Vede o primeiro Afonso, cuja lança
Escura faz qualquer estranha glória;
E aquele que a seu Reino a segurança
Deixou, com a grande e próspera vitória;
Outro Joane, invicto cavaleiro;
O quarto e quinto Afonsos e o terceiro.
Nem deixarão meus versos esquecidos
Aqueles que nos Reinos lá da Aurora
Se fizeram por armas tão subidos,
Vossa bandeira sempre vencedora:
Um Pacheco fortíssimo e os temidos
Almeidas, por quem sempre o Tejo chora,
Albuquerque terríbil, Castro forte,
E outros em quem poder não teve a morte.
E, enquanto eu estes canto – e a vós não posso,
Sublime Rei, que não me atrevo a tanto – ,
Tomai as rédeas vós do Reino vosso:
Dareis matéria a nunca ouvido canto.
Comecem a sentir o peso grosso
(Que polo mundo todo faça espanto)
De exércitos e feitos singulares,
De África as terras e do Oriente os mares.
Em vós os olhos tem o Mouro frio,
Em quem vê seu exício afigurado;
Só com vos ver, o bárbaro Gentio
Mostra o pescoço ao jugo já inclinado;
Tétis todo o cerúleo senhorio
Tem pera vós por dote aparelhado,
Que, afeiçoada ao gesto belo e tenro,
Deseja de comprar-vos pera genro.
Em vós se vêm, da Olímpica morada,
Dos dous avós as almas cá famosas;
üa, na paz angélica dourada,
Outra, pelas batalhas sanguinosas.
Em vós esperam ver-se renovada
Sua memória e obras valerosas;
E lá vos têm lugar, no fim da idade,
No templo da suprema Eternidade.
Mas, enquanto este tempo passa lento
De regerdes os povos, que o desejam,
Dai vós favor ao novo atrevimento,
Pera que estes meus versos vossos sejam,
E vereis ir cortando o salso argento
Os vossos Argonautas, por que vejam
Que são vistos de vós no mar irado,
E costumai-vos já a ser invocado.
Referências:
Mesmo com Camões, tive dificuldade em contar alguns decassílabos.
http://www.infopedia.pt/apoio/artigos/$verso-heroico
http://www.infoescola.com/linguistica/silaba/
Temos hoje alguma ferramenta informática que nos extraia a “matemática poética”?