A Terra é a pobre coitada da Vida. Deus quis que todo o ser humano a habitasse, porque os nossos pais tinham comido do fruto proibido. Não quiseram permanecer na terra gratuita e plena de Luz Divina. Porque os filhos pagam pelos pecados dos pais, ainda hoje estamos condenados a trabalhar para comer e beber do que a Terra nos dá. Afeiçoamo-nos a ela e é para nós o novo Jardim do Éden, mas sem gratuidade, enquanto Cristo não voltar. O Divino ficou no paraíso, mas Adão e Eva escamotearam um pedaço da sua Luz e distribuíram-na pelos seus descendentes, que, por sua vez, a repartiram pelos filhos, e estes, igualmente pelos seus, até que ainda hoje, por muito pouco que reste desta Luz (que agora é luz), continuamos distribuindo a sua graça. Outrora era mais intensa, é certo, agora não passa de uma luzinha frouxa. Porque já não abunda na nossa alma como dantes? Porquê?
Autoria: Samuel Neves, MF (FLUL)
Me lembro muito bem dos nossos ascendentes, que olhavam os ciprestes, os carvalhos, as camélias, as rosas, os campos verdejantes, a chuva que do céu caía, o sol que na alma penetrava, a lua que sussurrava nos seus ouvidos, a fruta que a terra dava, a imensidão do mar… Como respondiam eles a todas as oferendas que a Terra dava? Com um silêncio tão barulhento, esse silêncio que badala na alma no momento em que a contemplamos. Mas o que é contemplar? Só havendo um templo podemos olhar o mistério que ele esconde, esse mistério que requer de nós uma quietude incomodante, uma passividade calada, uma angústia que nos assola por querer saber a razão, o porquê, a Verdade que ele oculta! O templo não é só obra do Homem, é também pertença dos deuses, do Divino. Quem nos dá a água para as nossas colheitas? Quem nos dá o Sol? Quem nos dá a Lua? Quem nos dá a verdura das árvores? Quem nos dá o mar? Quem nos dá a terra para cultivar? Quem nos dá o crepúsculo? Quem nos dá as cores que pairam à nossa volta? Quem nos dá a Vida? Somos nós? Ou serão os deuses? E quem nos acolhe? Quem nos permite contemplar o templo que a Natureza é? Somos nós? Ou será a Terra? Se é Ela a mãe que carrega no ventre as suas criaturas com o amor que lhe é parte, e se é Ela uma bola bem rotunda, refúgio/abrigo das nossas vidas, porque a tratamos como se um berlinde fosse e a enxotamos para longe? E se Ela for um simples plano perdido no meio do universo porque a tratamos como uma simples folha de versos falhados que amarrotamos por não corresponderem ao que esperávamos? Que culpa tem Ela do vazio que nos ecoa na alma, do Caos que grita bem perto dos nossos ouvidos, do rancor que ainda guardamos por termos sido excluídos do mundo celeste e divino, da nossa sede de ordenação, da nossa pressa para alcançar o que não temos, esse impossível que tanto nos atormenta?
Por não suportarmos a agonia de uma contemplação esfíngica, de um olhar cuja essência é mistério, de um pousio da alma que admira as maravilhas em seu redor sem, no entanto, perceber o que elas escondem, enfim, por não resistirmos à dor de jamais alcançar o Ser Sagrado da Natureza, preferimos abraçar o Ter profano na Natureza. Este Ter que nos atrai, que nos impele a agir sobre a Terra, que nos satisfaz, que nos sacia, que nos divorcia do compromisso que temos com a Natureza. Sabemos explicar melhor o que é Ter do que o que é Ser, simplesmente porque a posse é o que está ao nosso alcance, é o que pode ser objetificado, enquanto o Ser não cabe na palma da nossa mão, o que constitui a nossa tragédia íntima. É fácil dizer que eu sou desta forma, que eu sou daquele modo e que eu sou doutra maneira, mas no momento em que se pergunta o que Eu sou, não há melhor resposta que o silêncio… Mas o silêncio serve apenas para ouvir, para escutar o tempo a passar, para sentir o sopro da Vida, o que para nós não serve, pois conduziria a um tédio cruel, ao qual queremos escapar. Ter é, dramaticamente, a melhor solução para colmatar esta lacuna existencial, por nos obrigar a mover o mais depressa possível e a distanciar-nos da contemplação divina.
Onde cantam agora os deuses mortos? Quem os ouve? Onde andam os deuses das boas colheitas, do bom vinho, da boa festa, da guerra, do amor, dos mares e do fogo? Onde andam os deuses que nos ouvem, que escutam as nossas graças às maravilhas que a Terra dá? O que resta da Vida se lhe tirarmos a contemplação, os anjos, os santos e os deuses? O que sobra se ainda lhe tirarmos a Arte como forma de trans-objetivação? Apenas um ser humano moribundo divorciado da Terra que o abraça. Quem pode voltar a dar-lhe vida? Quem pode casar o Homem à Terra? O Espanto… não é ele que nos aparece no momento em que olhamos uma criança brincando? Não é ele que nos penetra na alma quando o Sol se deita? Não é ele que nos adentra quando a misteriosa Lua dança diante dos nossos olhos? Não é ele que soergue em nós quando contemplamos os belos montes e vales? Não é ele que nos eleva ao Divino quando olhamos atentamente um pedaço de pão e percebemos que é uma graça tê-lo na nossa própria mão? E o que são esses momentos, essa presença do Espanto? Não será o instante em que tudo é… não sendo? Não será a experiência de uma totalidade divina em nós contida em tão pouca duração? Não será o Espanto uma possível ascensão efémera ao céu que outrora nos acolheu?
* Há conjugações verbais que, propositadamente, não estão dentro do acordo ortográfico, por cortarem a continuidade que o autor quer dar à fonética da frase. No entanto, não alteram a semântica da locução.