Como alunos de uma prestigiada instituição de engenharia, os nossos cérebros estão automaticamente associados a uma vertente mais “racional”. Mas o que é o racional e o criativo? Um opõe-se ao outro? Ou conseguem os dois existir em perfeita harmonia e equilíbrio?
Autoria: Rita Fontes, MEBiom (IST)
Provavelmente, quando éramos mais novos, todos fomos confrontados com aquela ideia de que o hemisfério esquerdo do cérebro, que controla o lado direito do nosso corpo, está associado à lógica, racionalidade e à aptidão para a matemática. Ao mesmo tempo, o hemisfério direito, controlador do lado esquerdo do nosso corpo, seria o sítio onde reina a criatividade, a emoção e o talento para desenhar. Consoante o lado do cérebro que nos dominasse teríamos umas características ou outras e tudo seria muito “preto no branco”.
Alguns livros já foram mesmo escritos sobre como adotar um “Programa de Cérebro Direito” poderá melhorar significativamente alguns aspetos da nossa vida, desde perder peso a ter mais sucesso nos negócios, conseguindo melhorar a nossa vida sexual pelo meio [1]. Mas qual é a origem desta dualidade de hemisférios?
Esta teoria surgiu no mundo da Psicologia, tendo sido consolidada principalmente pelas experiências de Roger W. Sperry (vencedor de um Prémio Nobel da Medicina em 1981 exatamente por isto), ao estudar o funcionamento cerebral em pacientes epiléticos cujo corpus callosum, a estrutura que liga os dois hemisférios cerebrais permitindo a sua comunicação, havia sido removido [2]. As experiências consistiam no seguinte: em primeiro lugar era mostrada uma palavra a cada olho individualmente, tapando-se o outro, tendo-se constatado que os pacientes só se lembravam da palavra quando a viam com o olho direito (controlado pelo lado esquerdo do cérebro). Posteriormente, mostraram-se dois objetos aos pacientes, cada um por um olho diferente, pedindo-se para depois desenhar o que tinham visto. Os pacientes desenharam o que viram com o olho esquerdo, tendo apenas descrito o que haviam observado com o direito. Foi concluído que o hemisfério esquerdo consegue reconhecer e analisar discurso, ao contrário do direito, e não há comunicação entre os dois lados, funcionando cada hemisfério de forma independente. Surgiu daqui a base para acreditar que todos somos dominados por um lado [3].
Esta dicotomia predominou no mundo da Psicologia durante muitos anos. No entanto, não tem qualquer base de neurociência que a suporte. Pelo contrário, é verdade, sim, que as funções se encontram lateralizadas e que existem pessoas mais lógicas enquanto outras são mais intuitivas. Contudo, não existe um lado predominante: estudos recentes de atividade cerebral revelam que os dois lados apresentam o mesmo nível de atividade e as conexões que se ativam para a maioria das tarefas encontram-se bem distribuídas. Os dois lados do nosso cérebro estão especializados, sendo o esquerdo de facto mais analítico, racional e verbal, enquanto o direito é mais intuitivo, imaginativo e emocional. No entanto, ambos se encontram em constante colaboração no nosso dia a dia [2].
Por exemplo, na questão da linguagem que tinha sido tão crucial nas experiências de Sperry ocorre a seguinte cooperação: o hemisfério esquerdo escolhe os sons que formam as palavras e trabalha na sintaxe da frase. No entanto, não podemos considerar que tem o monopólio da linguagem, pois é o hemisfério direito que tem a parte emocional do nosso discurso, nomeadamente a entoação. De forma geral, podemos considerar que, apesar de ser o hemisfério esquerdo quem fica com a parte dura do processo de comunicar, é o direito que faz de nós mais humanos e menos “robots”. E estas conexões estão presentes em quase tudo o que fazemos na nossa vida.
Tendo esclarecido muito brevemente o funcionamento desse ser complexo que é o nosso cérebro, podemos seguir para a questão que me levou a ter tanto interesse neste tema: porque é que eu sinto que qualquer criatividade que pudesse possuir no passado se desvaneceu desde que estou no Técnico? E em conversa com outras pessoas já percebi ser um mal comum. Qualquer talento para escrever/pintar/compor que possa ter existido é difícil de alcançar agora.
Será que o hemisfério esquerdo do cérebro “sugou” o direito devido a tanto pensamento racional que precisamos de ter no dia-a-dia? Já percebemos que não é assim que funciona, não há um lado dominante, portanto vamos tentar perceber como funciona a criatividade.
De acordo com Ned Hermann, que passou 20 anos a desenvolver modelos de atividade cerebral e a sua relação com o processo criativo, a criatividade é um processo de “cérebro inteiro”. Num processo de pensamento criativo, por exemplo, se uma ideia intuitiva nos surge na mente, é primeiro experimentada, visualizada, integrada com outras ideias e desenvolvida, sendo estas maioritariamente tarefas do hemisfério direito. Essa ideia eventualmente terá de ser classificada como uma solução eficiente para o problema real, sendo essa já uma tarefa do hemisfério esquerdo. De certa forma, no processo criativo, o hemisfério esquerdo faz com que o hemisfério direito se mantenha com os “pés assentes na terra”[4].
Mais concretamente, o autor defende a seguinte classificação do processo criativo em 5 passos: interesse (hemisférios esquerdo e direito); preparação, isto é, fase em que o problema é investigado em todas as direções (esquerdo); incubação, a fase em que não estamos a pensar conscientemente no problema (direito); iluminação, aquele momento em que nos surge a ideia de génio (direito); verificação (esquerdo) e aplicação (esquerdo e direito)[5].
Como podemos ver, tal como em todas as restantes tarefas, aqui faz-se uso de conexões cerebrais distribuídas uniformemente, portanto a explicação para o nosso bloqueio criativo constante não poderá estar no atrofio de uma parte do cérebro face à estimulação de outra. A explicação mais plausível estará talvez no aumento dos nossos níveis de stress.
A chave para explicar este problema poderá então ser o modo luta-ou-fuga em que entramos quando estamos perante uma grande carga de trabalho. Sim, parece um bocado exagerado, mas esta reação que há 500 gerações atrás servia para fugir de predadores também é ativada quando entramos neste tipo de stress de secretária nos dias de hoje. O modo luta ou fuga naturalmente afeta a maneira como pensamos, fazendo com que nos foquemos apenas no que está à nossa frente, bloqueando a forma como nos expressamos e o pensamento “fora da caixa”[6][7].
Portanto, se tens um teste e três entregas para a semana, é perfeitamente razoável que o teu cérebro tenha mais que fazer, mesmo que tenhas definido que é a hora da pausa, e não lhe apeteça muito sentar-se, pegar numa caneta, e escrever um poema incrível de como a vida é bela. No entanto, isso não significa que a tua capacidade intrínseca para o fazer tenha sido estrangulada pelas cadeiras de Cálculo.
Gostava genuinamente de acabar este artigo a dar conselhos práticos de como se reconectarem com a vossa espontaneidade interior, mas se alguém tiver dicas de como o meu corpo não achar que estou a ser perseguida por uma alcateia durante o semestre como há 10 000 anos atrás, avise por favor!
[2] https://www.verywellmind.com/left-brain-vs-right-brain-2795005
[3] https://embryo.asu.edu/pages/roger-sperrys-split-brain-experiments-1959-1968
[4]https://www.scientificamerican.com/article/is-it-true-that-creativit/
[6]http://openforideas.org/blog/2018/03/23/stress-kills-creativity-and-employees/
[7]https://www.treehousesociety.org/blog/how-stress-can-affect-creativity