A dada altura da vida, é-nos ensinado que os seres humanos são, para todos os efeitos, também animais. É uma novidade desconcertante e, possivelmente, foram muitos os anos em que crianças se fizeram adultas sem nunca apaziguarem o incómodo de tamanha noção. Até que Aristóteles sugeriu que os humanos não são um qualquer animal, mas sim animais racionais.
Séculos volvidos, as consternações intelectuais sobre o tema não desapareceram. O que significa ser isso de racional, que tanto nos distingue dos demais seres? Uma resposta que tente equilibrar simplicidade e exatidão diria, porventura, que ser racional é ter critério. E os critérios multiplicam-se. Grande parte da economia mais-ou-menos moderna sugere que a regra universal que nos move enquanto pessoas é a da maximização dos ganhos. Outra economia, utilitarista, resguarda-se em definições mais ambíguas: o critério que nos move é a maximização do prazer e minimização do sofrimento. Sendo prazer e sofrimento traços pessoais, subjectivos, o problema do critério permanece: cada pessoa racional vive, qual máquina de cálculo diferencial, a maximizar a função das próprias preferências. Há depois outra economia, a comportamental, que nos mostra o quão estranhos podem ser os nossos critérios e, consequentemente, a nossa racionalidade. Vamos a três exemplos.
Tversky e Kahneman repararam que a forma como as questões são enunciadas pode alterar significativamente a tomada de decisão. A linguagem faz-nos perder o critério, portanto. Chamaram-lhe framming effect. Nas suas experiências, colocaram pessoas no papel de decisores políticos, face à escolha do melhor programa para combater o surto de uma doença que irá causar 600 vítimas. Criaram dois grupos. Ao primeiro, pediram para escolher entre a alternativa que a) permite salvar 200 pessoas ou b) permite salvar as 600 pessoas com 1/3 de probabilidade. 72% dos participantes deste primeiro grupo optaram pela opção a). Ao segundo grupo, as alternativas dividiram-se entre o programa que a) tem como resultado 400 vítimas mortais ou b) 2/3 de probabilidade das 600 pessoas morrerem. Desta feita, 78% escolheram a opção b). Matematicamente, as opções são equivalentes, mudando tão só a forma como são expressas. Mas os animais racionais de Aristóteles são incapazes de manter um critério coerente. Somos adversos ao risco quando se trata de problemas formulados positivamente e arriscamos quando o mesmo problema é colocado pela negativa. Curiosamente, em experiências recentes mostrou-se que o mesmo efeito acontece na tomada de decisão levada a cabo por primatas.
Num outro estudo, Huber, Payne e Puto mostraram que as escolhas não são independentes das alternativas consideradas. Imaginemos que alguém está indeciso entre ir a uma restaurante chinês, caro e saboroso, ou ir a um restaurante italiano, também caro, também saboroso. A decisão revela-se complicada. No entanto, se uma terceira opção for introduzida, a escolha entre as duas opções originais pode, estranhamente, ficar simplificada. As experiências mostram que se for adicionado um restaurante italiano, caro e de qualidade duvidosa, as pessoas tenderão a ir jantar ao restaurante italiano caro e saboroso, preterindo o chinês. Chamam-lhe o decoy effect. Novamente, somos incapazes de manter um critério coerente, independente das alternativas que deveriam ser irrelevantes. E novamente, um estudo mostra que o mesmo desvio comportamental existe em, estranhamente, em fungos.
Foi também demonstrado que valorizamos objectos de forma acrescida quando os temos em nossa posse. Tal denomina-se endowment effect. Kahneman, Knetsch e Thaler criaram uma experiência em que ofereceram objectos (canecas) a alguns participantes, perguntando o valor pelo qual estariam dispostos a vender o artigo. Aos restantes, pediram o valor pelo qual estariam dispostos a comprar o mesmo objecto. Em média, quem detinha o artigo atribuiu um valor duas vezes superior em relação ao proposto pelos participantes desprovidos do objecto. O valor que atribuímos não segue um critério coerente, sendo dependente do contexto. E novamente, foi demonstrado que chimpanzés, primatas e orangotangos se comportam da forma semelhante com objectos que possuem: tendem a sobrevalorizá-los.
A lista de fenómenos que demonstram a inconsistência dos critérios que utilizamos nas nossas decisões é extensa. Cada exemplo contraria a idealização da pessoa como ser puramente racional. Os estudos que revelam a presença dos mesmos traços comportamentais noutras espécies animais sugerem que, possivelmente, existe uma origem comum para a irracionalidade. O assunto suscita dúvidas a pessoas das mais variadas áreas: economia, biologia, matemática, psicologia, inteligência artificial. Sugere desafios estimulantes: Como se podem modelar, matematicamente, as várias falhas na racionalidade humana? Como se podem incorporar essas falhas em modelos de previsão? E depois, a pergunta fundamental, presa ao nosso passado evolutivo e a um porquê do tamanho do mundo: quais são, afinal, as explicações para nos comportarmos de forma irracional?
*Este texto não segue o novo acordo ortográfico
Referências:
Tversky, Amos, and Daniel Kahneman. “The framing of decisions and the psychology of choice.” Science 211.4481 (1981): 453-458.
Huber, Joel, John W. Payne, and Christopher Puto. “Adding asymmetrically dominated alternatives: Violations of regularity and the similarity hypothesis.” Journal of consumer research (1982): 90-98.
Kahneman, Daniel, Jack L. Knetsch, and Richard H. Thaler. “Anomalies: The endowment effect, loss aversion, and status quo bias.” The journal of economic perspectives (1991): 193-206.
Latty, Tanya, and Madeleine Beekman. “Irrational decision-making in an amoeboid organism: transitivity and context-dependent preferences.” Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences 278.1703 (2011): 307-312.
Chen, M. Keith, Venkat Lakshminarayanan, and Laurie R. Santos. “How basic are behavioral biases? Evidence from capuchin monkey trading behavior.” Journal of Political Economy 114.3 (2006): 517-537.
Flemming, T. M., Jones, O. D., Mayo, L., Stoinski, T., & Brosnan, S. F. “The endowment effect in orangutans.” International Journal of Comparative Psychology (2012), 25, 285-298
Texto: Fernando Pedro