Kotodama (言霊): a alma da linguagem

A ideia que a linguagem tem um poder quase mágico de alterar a realidade física

Autoria: Constança Fernandes (LeBiol)

Notas diferenças quando falas português em comparação à tua segunda língua? A nossa língua mãe é um pilar fundamental do nosso ser e do nosso desenvolvimento. A nossa perceção do mundo, a nossa forma de raciocinar e até a nossa capacidade de orientação geográfica, talvez mais do que tu pensas.

Ao longo dos anos, descobriu-se que, desde que nascemos, os nossos corpos estão constantemente a aprender e a evoluir para se adaptar ao nosso ambiente. 

Os bebés, quando nascem, têm a capacidade de ouvir e de diferenciar todo o tipo de sons. Sempre que alguém fala, produz determinadas vibrações e emite palavras com determinadas entonações e pausas. Essas vibrações chegam ao cérebro do bebé e, com o passar do tempo, ele começa a distinguir fonemas – a unidade mínima do sistema fonológico característico de cada língua (qualquer som elementar). Por exemplo, a língua japonesa não tem o fonema “f”, por isso, os japoneses têm alguma dificuldade em pronunciar estrangeirismos como “refrigerator” (diz-se “ri-hu-ri-ge-ra-to-”). 

A partir dos primeiros meses de idade, os bebés retêm os fonemas que são falados ao seu redor, procurando padrões e, eventualmente, com 1 ano de idade, começam a formar palavras na sua língua nativa. 

A minha sobrinha recentemente celebrou o seu primeiro aniversário. Desde que ela nasceu, sempre me questionei “mas que raio de língua é que ela vai falar?”. Acontece que a minha sobrinha vive em Espanha, porém, é filha de um pai português e de uma mãe inglesa e, por não falarem nenhuma língua onde sejam ambos fluentes, eles comunicam entre si numa misturada de inglês, portunhol, espanhol e portugês – um cocktail da línguas que, confesso, sempre que os ouço a falar um com o outro, fico admirada. 

Tenho a certeza que quando a minha sobrinha crescer vai ter todos os benefícios de ter um cérebro trilíngue, mas esta exposição fez também com que eu tenha começado a colocar a questão “se da mesma forma que o ambiente onde crescemos pode moldar as estruturas físicas dos nossos cérebros, será que a linguagem que aprendemos também altera de alguma forma a nossa perceção da realidade física?” 

Após alguma pesquisa, eis o que descobri:

Existem mais de 7 mil línguas faladas que podem ser distinguidas em dois principais aspetos: a sintaxe – o que rege a ordem dos constituintes da frase – e a morfologia – a forma e os processos de formação de palavras. À partida, estas diferenças parecem bastante insignificantes, quando falamos no funcionamento do cérebro, contudo, estudos mais recentes comprovam o contrário. Analisemos alguns exemplos.

Caloiro perdido 


Se estiveres a entrar no Pavilhão de Civil e um caloiro te perguntar onde é que é o Pavilhão de Física tu respondes, se fores simpático, que é para a esquerda. No entanto, nem todas as línguas usam palavras como  “esquerda” e “direita”. Lera Boroditsky, cientista cognitiva e professora da Universidade da Califórnia em San Diego, estudou um povo de Pormpurawa, Austrália, que se orienta através de coordenadas cardeais (norte, sul, este, oeste). Consequentemente, esta população adquire um sentido de orientação muito superior à maioria dos portugueses, por exemplo [1]. 

Bem, pensando melhor, talvez até te safasses em responder ao caloiro em coordenadas cardeais, porque sabes que é quase para o mesmo sentido da Torre Sul. Talvez este não tenha sido o melhor exemplo… Porém, na maioria das situações, tenho quase a certeza que não sabes para onde é que fica su-sodoeste sem teres que pensar muito no assunto. 

Cor   

De que cor é o pôr do Sol? Maioritariamente laranja, certo? Ora, para algumas línguas como bassa, utilizada na Libéria e Serra Leoa, esta descreveria a cor laranja como “ziza” (quente). Esta língua tem apenas dois termos para se referir as cores: escuro/frias (azul, verde, roxo…) ou claras/quente (laranja, vermelho, amarelo…).

Por outro lado, línguas como o grego usam dois termos completamente distintos para descrever azul claro (“ghalazio”) e azul escuro (“ble”). Por conseguinte, pessoas que falam grego são muito mais rápidas a distinguir cores e tonalidades que outros indivíduos que não têm tantos termos básicos para cores. 

Outro exemplo interessante é o dos esquimós, que conseguem distinguir com bastante facilidade dezenas de tons de branco diferentes. Afinal, esta distinção é fundamental para a sua sobrevivência, pois o tom de branco pode determinar se o gelo se vai partir ou não.

Asiáticos Matemáticos

Nos últimos 30 anos,o primeiro lugar das Olimpíadas da Matemática foi alcançado 23 vezes por asiáticos, sendo que 20 se referem a estudantes provenientes da China[2]. Qual será a razão? Porque é que os habitantes de países asiáticos são tão bons a matemática, em particular, os chineses?

Muitos investigadores acreditam que a própria língua chinesa torna a matemática mais fácil de apreender e de memorizar. 

Exemplifiquemos com o número 33. Na contagem chinesa, o número 33 (trinta e três) diz-se  三十三 (traduz-se para três, dez, três (3*10+3)). Ou seja, das crianças que conhecem os números até ao 10, as portuguesas só conseguem contar até 10, enquanto que as chinesas conseguem contar até 99! Esta forma descritiva de escrever os números facilita imenso todo o tipo de cálculos, pois é como se as contas já tivessem “descritas”. Por exemplo, 23+42 (vinte e três mais quarenta e dois) escreve-se  二十三 + 四十二 (2*10+3 + 4*10+2). 

Acidentes

Imaginemos que cais e partes a perna. Quando te perguntarem o que aconteceu, vais responder “Parti a perna”. Contudo, em espanhol, como se trata de um acidente, dir se-ia “la pierna se rompió” (a perna partiu-se), isto, claro, a não ser que sejas um lunático masoquista e partas a perna de propósito ou que tenhas exame de cálculo na meia hora seguinte, o que te legitima a precipitares a tua perna contra uma parede sólida. Nesse caso, é totalmente válido.

A questão é que as pessoas que falam línguas diferentes prestam atenção a coisas diferentes e lembrar-se-ão de eventos de forma diferente. Neste caso, os portugueses são mais propensos a lembrarem-se de quem partiu a perna, enquanto que os espanhóis têm mais tendência a lembrarem-se do acontecimento. 

São estes alguns dos exemplos de como a linguagem pode moldar profundamente os pensamentos, alterar o nosso sentido de orientação, alterar a nossa perceção do mundo visual, o nosso raciocínio e a nossa memória, o que revela o engenho e a flexibilidade do cérebro humano. A língua não é só algo que nos permite transmitir as nossas ideias e pensamentos para outras pessoas. É um universo cognitivo, algo vivo que se modifica e evolui consoante as nossas necessidades. 

Referências:

[1] How Language Shapes the Way We Think 

[2] “Results: Cumulative Results by Country”. Imo-official.org. Retrieved 14 July 2022.

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