Desde assistentes virtuais a personagens de videojogos, o mundo virtual parece falar com um timbre feminino. Será que a mulher encontrou um lugar no mundo viril da tecnologia? Ou terá a voz feminina caído na armadilha da objetificação e da sexualização?
Autoria: Carolina Pereira, LEIC (IST)
Num mundo em que a inteligência artificial, a realidade virtual e as casas inteligentes se têm vindo a tornar cada vez mais populares, ao tirar um momento para apreciar estas novas tecnologias deparamo-nos com um padrão – a presença da voz feminina.
O exemplo mais óbvio são as assistentes virtuais como a Siri, a Alexa, a Cortana e a Assistente Google. A interação com a assistente é feita através de comandos de voz, sendo que recebemos uma resposta ao nosso pedido, por defeito, na forma de uma voz feminina. É importante frisar que mesmo antes da Siri e das suas primas, já existiam assistentes virtuais, tal como a sintetização de texto para voz no suporte telefónico ao cliente a listar as diferentes opções. A primeira impressão com que ficamos de uma assistente é a voz. É essa a interface de comunicação. Então, porque não uma voz masculina?
Olhemos primeiro para o próprio conceito de “assistente”. Quando pensamos na palavra, provavelmente imaginamos uma mulher fiável, simpática, pronta a ajudar e a responder a qualquer pedido de forma clara e eficaz. É essa a expectativa que os desenvolvedores destas assistentes virtuais visam corresponder, com base na experiência. O processo de escolher uma voz para o produto passa por uma fase de testes com utilizadores que avaliam cada opção. Segundo os resultados partilhados pelas várias companhias, tipicamente as vozes femininas conseguem uma melhor pontuação em comparação com as masculinas. Há quem defenda que as mulheres têm uma dicção muito mais clara e a melhor articulação das vogais leva a uma maior clareza na voz, um ponto importante a ter em conta quando se desenvolve uma tecnologia cujo objetivo principal é a comunicação de informações. Outra justificação para estes resultados prende-se com a confiança que a voz de uma mulher nos transmite, algo que se enraizou nas pessoas logo no útero das suas mães. Imaginemos um cenário em que alguém está sozinho em casa e, de repente, ouve a assistente virtual falar. Por mais estereotipada que seja esta visão, ainda é uma realidade que uma voz masculina causaria muito mais alarme, por estar conectada à ideia de um intruso em casa.
No entanto, a decisão de configurar uma voz feminina como predefinição para estes equipamentos não parte apenas da opinião de beta testers. Na verdade, este processo de feedback surge numa fase final do projeto. Do ponto de vista dos desenvolvedores, a criação de um sintetizador de texto para voz começa com o treino de um agente inteligente com um conjunto de dados referentes a vocabulário, entoação e todas as características humanas de um discurso. Quanto mais treinado estiver esse agente, melhor será o resultado final, o que está ligado ao tempo despendido nesse mesmo treino. Acontece que ao longo da história da língua natural aplicada à inteligência artificial a investigação focou-se num conjunto de dados de fala feminina e, consequentemente, os agentes com melhor desempenho são vozes de mulheres. Na urgência de lançar um produto, é natural que se escolha incorporar a voz com melhor desempenho e, mais tarde, focar então no treino de vozes masculinas. Ainda assim, não escapa à vista a forma como o papel da mulher é ilustrado nesta voz virtual, desde a origem da investigação, até ao tom submisso e até sedutor destas assistentes.
Com a crescente luta pela igualdade de género em conjunto com toda a busca pela própria identidade de género, parece ter surgido uma solução que permite aos desenvolvedores de assistentes virtuais “lavar as mãos” desta descarada estereotipização e objetificação da mulher: a grande maioria das assistentes virtuais são femininas na voz, mas neutras em género. Por forma a investigar este assunto, decidi pôr-me à conversa com a Assistente Google no meu telemóvel, configurada com a voz feminina para o idioma português do Brasil. Quando perguntei “Qual é o teu género?”, a assistente respondeu “Sou neutral.”. Decidi refazer a questão de forma mais específica, perguntando “És uma mulher?”, recebendo como resposta “Sou tudo e todos” seguido de um emoji sorridente. Por mais voltas que desse à questão, a Assistente Google respondeu sempre no mesmo registo neutro e simpático. É este tipo de resposta que estas vozes dão, tentando fugir a qualquer construção de género. Já no caso da Cortana, a posição difere, havendo uma forte defesa da identificação da assistente virtual com o género feminino. Afinal, a Cortana é uma personagem com inteligência artificial no jogo Halo, cuja figura se trata de uma mulher nua. Existem, portanto, duas visões: a rejeição de conceitos humanos de género para a inteligência artificial e, por outro lado, o abraçar da imagem de uma mulher que desempenha esse papel de assistente. Apesar desta última visão estar muito mais propensa a críticas sobre a objetificação da mulher, a visão mais neutra de género não se livra da sexualização inevitável da voz feminina.
Atribuir um género a objetos e entidades aos quais, à partida, não deveria ser sequer colocada essa questão, é algo bastante comum. Mesmo sem darmos conta disso, acabamos por fazê-lo. Uma pesquisa rápida ou uma passagem pelo subreddit r/pointlesslygendered permite-nos dar conta de casos ridículos de atribuição de género e de sexualização. A mente humana tem esta tendência e as mulheres são o alvo mais comum de fantasias. Pode-se atribuir a culpa à fantasia masculina, ao marketing direcionado ao público masculino e prontamente dizer-se que qualquer representação sexualizada de algo é criação de um homem. Mas até que ponto não é isto também uma estereotipização? Enfim, a realidade é que temos a liberdade de imaginar o corpo de uma assistente virtual ou equivalente como quisermos. Ninguém nos impede de criar essa imagem, seja ela ética ou não. O problema é quando essa fantasia passa para o exterior. Basta pesquisar arte inspirada nestas assistentes virtuais e logo damos conta que uma grande fatia dos resultados são ilustrações de “mulheres ideais”, sensuais, provocadoras e até mesmo eróticas. São muitos os Youtubers que dedicam os seus vídeos a assediar assistentes virtuais, colocando-lhes questões provocadoras e recebendo respostas perturbadoramente amistosas, ou tão inocentes que chegam a causar desconforto à audiência. O facto de saber que por trás daquela voz não existe uma pessoa, um ser humano, dá confiança e poder no que toca a ter esse tipo de comportamentos. É com mais facilidade que fazemos um comentário provocatório à Siri, por exemplo, do que a uma rapariga que passe por nós. Não há limites definidos na interação com uma personagem do mundo virtual, a não ser os que impomos a nós próprios com base nos nossos valores.
Tendo em vista esta tendência para criar fantasias em torno de entidades virtuais, há ainda empresas que tiram partido disso mesmo para aumentar o lucro, criando produtos específicos já com um corpo holográfico como é o caso da Gatebox e as suas “companheiras virtuais” que permitem uma amizade com a personagem. Casos como o de Akihiko Kondo que abraçou a digissexualidade e casou com o holograma da personagem japonesa popular de Vocaloid, a Hatsune Miku. Parece que estamos cada vez mais perto de uma realidade como a retratada no filme Ex_Machina em que um génio da tecnologia tem um harém de robôs com inteligência artificial e corpos femininos “perfeitos” que podem ser programados para se despirem como resposta a qualquer pedido. Já temos grandes avanços na inteligência artificial, já temos bonecas sexuais com alto nível de realismo, basta juntar os dois, algo que já está em produção e a causar furor e muita discussão ao nível ético.
Não havendo facilidade em adquirir esse tipo de tecnologia, existem sempre os videojogos que permitem manipular uma personagem à nossa vontade. Cada vez existem mais gamers masculinos que preferem jogar com personagens femininas. Muitos defendem que estes jogos cuja personagem principal é feminina são mais interessantes, outros defendem que a renderização destas personagens é mais realista em relação às masculinas. Todas estas justificações aparentam ter o mesmo tom que as razões para a voz predefinida das assistentes virtuais ser feminina, ou seja, um tom em que a empatia e a inserção da mulher no mundo tecnológico mascara uma realidade onde a objetificação e a sexualização reinam. Por exemplo, a Lara Croft, personagem da série de jogos Tomb Raider, atingiu um elevadíssimo grau de realismo tanto nas texturas como nos movimentos, assim como convergiu para uma imagem estereotipada daquela que é uma mulher branca atraente. Ao contrário do que aconteceu com a síntese de texto para voz, duvido que o aperfeiçoamento desta personagem se justifique por haver mais dados sobre a movimentação de corpos femininos do que de masculinos. Se ainda restarem dúvidas sobre a objetificação da mulher nos videojogos, deixo ainda o exemplo de ângulos de câmara que favorecem a sexualização das personagens em jogos como Mass Effect Legendary Edition ou o alto nível de personalização (explícita) da personagem permitido em Cyberpunk 2077. No lado oposto do espetro, encontramos jogos como Sky: Children of the Light onde as personagens não têm género e o jogador é encorajado a pensar na questão da demonstração da identidade de género fora do plano do físico da personagem. Continua aqui a haver os dois partidos: aqueles que têm orgulho na “sensualidade” dos seus produtos e aqueles que procuram o equilíbrio e a neutralidade.
Levantadas todas estas questões, não se pode ignorar que têm havido esforços para dissipar antigas fronteiras rígidas do papel de género, desenvolvendo diferentes vozes e aleatorizando a voz padrão para assistentes virtuais, bem como têm sido criadas alternativas neutras no mundo dos videojogos. A conclusão, infelizmente, é que ainda há um longo caminho a percorrer. Haverá sempre clientes para as opções altamente sexualizadas e submissas e a perturbadora Rule 34 da Internet perdurará. Esta é uma questão em aberto cuja discussão não deverá ser esquecida.
Para ler mais sobre o assunto:
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