Nostalgia da Luz – Um lugar eternamente ocupado

Durante quase duas décadas de ditadura militar, o regime do general Augusto Pinochet foi responsável por milhares de mortes no Chile. Num cruzamento entre astronomia, política e arqueologia, Nostalgia da Luz conta-nos a história das famílias de algumas destas vítimas, muitas delas desaparecidas até à data. Disponível na plataforma de cinema online Filmin.

Autoria: Matilde Almeida, MEBio (IST)

Legenda fotografia: Paula Allen. Violeta and other relatives, marching to the mass grave on the first anniversary of the executions after the remains were found. 1990. Livro Flowers in the Desert.

Uma estrela pode demorar milénios a anunciar a sua morte. Sabendo que a velocidade da luz ronda os mil milhões de quilómetros por hora, não é difícil perceber que, no momento em que vemos a luz de uma estrela, ela pode já ter deixado de existir. Quando penso nisto, imagino esta última radiação como uma marca momentânea de que aquele lugar já esteve ocupado e que, enquanto a luz não desaparecer, ocupado continuará para nós, observadores.

Gostava de pensar que é esta a realidade de Vicky Saavedra, Violeta Berrios e de todas as outras mulheres da comuna de Calama que diariamente percorrem o deserto de Atacama, no Chile, à procura dos corpos dos seus maridos, irmãos e filhos, prisioneiros políticos assassinados às mãos do regime de Pinochet. Gostava de acreditar que, tal como as estrelas, estas vítimas tinham deixado uma marca do lugar por elas ocupado depois de os seus restos mortais terem sido desenterrados pelo regime e atirados ao mar.

É em Nostalgia da Luz, documentário da autoria de Patricio Guzmán, que nos são dadas a conhecer estas duas realidades que coexistem na imensidão do deserto de Atacama: a daqueles que vivem de olhos postos no céu, em busca da origem da Terra e da Humanidade, e a dos que os mantêm presos ao solo, na expectativa de reconstituir, esclarecer e exigir justiça pelos crimes cometidos ao longo de quase duas décadas de ditadura militar. Num tom crítico e inconformado que o aproxima de filmes como O Silêncio dos Outros, o documentário de Patricio Guzmán reúne os testemunhos do astrónomo Gaspar Galaz, do arqueólogo Lautaro Núñez, do arquiteto e ex-preso político Miguel Lawner e de Victoria Saavedra e Violeta Berrios, duas das mulheres que revolvem o deserto há mais de trinta anos.

Um mês depois do golpe de Estado que o colocou no poder, em 1973, Pinochet ordenou uma operação militar, conhecida por Caravana da Morte, que percorreu cinco terras desde o sul até ao norte do Chile, torturando e assassinando cerca de 75 presos políticos, mais tarde dados como desaparecidos. Calama foi uma dessas terras. Anos depois, descobriu-se que os corpos se encontravam numa vala comum no deserto de Atacama, mas que haviam sido desenterrados e alguns, eventualmente, atirados ao mar, restando em terra apenas fragmentos de ossos.

A procura deste grupo de mulheres começou clandestinamente durante a ditadura, tendo apenas vindo a público em 1985. Muitas das vítimas continuam, até ao presente, desaparecidas. Ainda hoje as mulheres de Calama revolvem não apenas terra, mas também o passado chileno, numa tentativa de com ele confrontar o país.

Pensando melhor, a marca que as vítimas não puderam cravar terá de ser deixada por elas. Para estas mulheres, a “luz” não desaparece. E, enquanto não desaparecer, o lugar continuará para sempre ocupado.

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