A insónia

Autoria: Francisco Raposo (MEFT)

Por alguns segundos, sustenho a respiração e escuto o silêncio que, no exterior da janela encerrada, se estica até ao limiar das suas costuras, quase até ceder. Lá fora, apenas a luz dos candeeiros assedia a barriga da noite, esta que parece prolongar-se da calçada molhada da cidade à mais distante estrela, num astral abraço. Sem vicissitude, sem inquietação, sempre serena, sustém um suspiro em comunhão comigo, aprecia a minha companhia. Dentro do quarto, entre tudo o que é meu, aguardo o sono, deitado e arrebatado pela inutilidade do tempo perdido. Finalmente expiro.

Enquanto lá fora a noite repousa, solene, o desassossego dentro de mim multiplica-se e eu próprio, parte inteiramente desperta, me desdobro nas sombras de um homem deambulando pelas ruas da sua própria memória, abandonado. A incandescência das luzes sobre a pele espalha contornos de corpos pelas paredes do meu quarto encerrado. Nos traços apagados e indiscerníveis desses fantasmas cabem mil outros passados, sobre os quais, aos poucos, me repenso – recordo-me distinto. Desfaço e refaço conquistas, aventuras, vitórias e amores que nunca vivi. Aquele ali pincelado a cores cinzentas já não serei eu, porventura: tornou-se aquele que poderia ter sido. Fosse eu outro, melhor, mais feliz, mais valente, mais apaixonado, mais determinado ou combativo, tivesse eu a plena paixão de viver! Ainda que o contentamento por um segundo me aquiete e a harmonia da ilusão por pouco a alma alente, dessa vida reimaginada sempre retorno quebrado pelo transtorno de ser, nesta vida que é só minha, apenas eu próprio. O corpo em si, que ocupo, compõe as fronteiras da minha restauração, e a idade é um vão transponível num sentido apenas: aquele que me leva de encontro à minha inevitável miséria.

Por isso, não, não adormeço e tampouco o desejo. Nutro essa psicose que é querer esticar a insónia pela ânsia de fugir ao sono, pelo terror desta hora perdida longe de onde quero estar. Onde? Sei lá eu. Já perdi a conta do que tinha ontem, na semana passada, ou quando ainda era criança e alheio ao meu próprio tormento. Mas sei que perdi. Onde?

Um homem deambula pelas ruas da sua própria memória, devagar, devagarinho, observa os escombros de casas ruídas, em algumas delas o olhar se prolonga, à deriva. É que ele procura uma, ao menos uma, que lhe recorde uma existência feliz, satisfeita em si mesma. Mas nos destroços de outrora ele reconhece os sinais da dúvida, que lhe arrebatou os pilares daquelas que eram certamente as suas mais seguras alegrias. A dúvida (talvez a culpa de se sentir tão pouco, diga-se), à qual a sua fraca alma sempre franqueia a entrada, esgueira-se pela mais ténue fissura para comê-lo por dentro, como uma térmita. Em contrapartida, recorda, entre as ruínas daqueles que foram os tormentos da sua juventude, mesmo entre as desilusões, os desencontros, os amores incompletos e as saudades ressentidas, mesmo entre os cacos de corações partidos que lhe destroçam os pés despidos; recorda como se deixava aconchegar pela melancolia, inverter pela dor. Havia ainda a possibilidade, um mero acerto do acaso, de escapar desta terra maior do que ela o encontrou em criança. Chance agora perdida para a eternidade.

O homem deambula pelas ruas da sua própria memória e encontra desoladas as alegrias de outrora. Reconhece a melancolia dos antigos tormentos e percebe que nunca poderá ser feliz. Debalde sonhou que a amargura fosse passageira, transeunte no longo caminho que por certo enfrentaria, todavia devagar ela se tornou a sua mais leal companheira. E mesmo indesejada, no seu mais profundo ser, abraça-a pois aos poucos se lhe tornou familiar. A angústia tem o seu apelo estético e o seu apego. Mesmo no mais recorrente e enganoso queixume descortina-se um prazer culpado pelo suplício a que o espírito se verga. Dentro de si, um mártir masoquista esfola a sua pele pelo calor amargo da ferida aberta. O homem deambula e a nostalgia agridoce persegue-lhe os passos. Portanto, é aqui que queria estar, decerto. Saltitando incerto entre quem já foi outrora, à espera de se encontrar. Mas o paradoxo parece-lhe possante demais, o passado demasiado pesado, a felicidade impossível. Quer fugir de si. Onde quer estar é onde já esteve sem saber.

Por isso, ele, o meu amigo, corre, e eu com ele. Dentro de mim corro desaforado. Corro tanto que, mesmo imóvel, o meu peito cansa-se, as pernas tremem-me, o coração estala. Os olhos cobrem-se de lágrimas que, de exaustas, são já só sal ardente, e o sofrimento sublinha-se-me por todo o corpo insone, dos pés à cabeça zonza. Sozinho, como sempre só, choro. Sozinho nesta noite perdida, desespero. Sozinho rio gargalhadas desenfreadas pelo sentido cómico da minha insignificante tragédia. Os contornos sombrios nas paredes do meu quarto são uma súplica ao passado, para que volte, para que seja outro, ou igual mas sendo eu distinto. Não posso ficar aqui para sempre, em parte incerta, até que todas as portas do mundo se fechem. Devo ser diferente. Mas se puder por um minuto fugir ao meu destino, serei um homem novo. Se puder atravessar apenas mais uma hora acordado, sem o arrependimento de ponderar o desperdício que é fazer o que faço, de ser o que sou, serei imortal. Serei capaz de inverter o pecado, a culpa de estar impercetivelmente vivo. Serei capaz de ultrapassar mais uma noite com a bagagem de quem afronta de peito cheio o seu esquecimento e escapa com vida. Quero ser aqui eternamente. Minto: quero retornar. Quero voltar a viver, ter a certeza de que fui a indefesa presa da circunstância, vítima de um sádico demónio, salivando pelo meu tropeço. Ter a certeza que o que ainda não foi feito será sempre possível fazer.

Penso em levantar-me da cama, andar pelas ruas, conhecer gente distinta de mim próprio, agora, hoje e já. Penso em ler mais um livro e outro e outro – ler todos os livros que comprei e nunca abri. Penso ser Antero, Camus ou Saramago, escrever obras que trespassem o meu semelhante como balas de canhão, que o desconfigurem por dentro. Todas as minhas palavras, leves como penas, contidas para dentro, mentem pela sua falta de energia, mentem pela sua desonestidade sinceramente reveladora – são eufemismos de gritos ofegantes que o pudor esconde. Penso em apaixonar-me novamente, agora, hoje e já, por alguém que seja a encarnação das minhas paixões ocultas. Por alguém que desvende, num silêncio cúmplice, o mesmo tormento pelo desconcerto da Humanidade e do mundo.

Penso em ser e não sou, e porquê? A manhã aproxima-se, a vida real espreita pela janela, já os primeiros pardais tagarelam o seu frenético chilro. Não posso ficar aqui para sempre, em parte incerta, até que todas as portas do mundo se fechem. Devo fugir do tédio. Mas quem serei eu amanhã senão igual ao que sou aqui e agora?

Serei já hoje o homem condenado a fazer do seu único ofício a repetição esquizofrénica do seu passado, na esperança que, por força do arrependimento, volte a viver o que nunca viu? Aquele que, com uma vida tão curta (ainda), mesmo assim já soma demasiadas saudades pelo impossível retorno àquele que poderia ter sido, ou àquele que podia ser? Sem vida e sem repouso, continuo em frente, à espera que o sono me acalme. Pois a manhã aproxima-se e a noite repousa.

Leave a Reply