Futilidade e racionalização

Autoria: Pedro Rodrigues, MEQ

Nascemos sozinhos, inocentes, crus, como blocos de barro a aguardar que alguém molde o nosso futuro “eu”, como telas brancas onde as primeiras pinceladas não passam de traços abstratos que futuramente irão delinear a imagem impressionista que somos “nós”. É um esforço coletivo ser um “eu” único. O barro não se molda sozinho, da tela não nasce espontaneamente cor. Sempre um “nós” e nunca um “eu”. Mas, quando chega a nossa hora de perecer, acabamos por fechar os olhos a sós. Ao aguardarmos pela perpétua escuridão, refletimos sobre os artistas que nos moldaram e deram cor. Terão eles verdadeiramente algum significado? Se cada um nos moldou, se cada um deu o seu cunho, não seremos nós apenas um aglomerado amorfo que não passou de um projeto momentâneo de todos?

Quando somos crianças somos um bloco virgem, acabado de cortar de uma pedra mãe que cedeu parte de si para criar arte. Não temos traços discerníveis, não temos preconceitos entranhados, apenas pureza e ingenuidade. Será talvez por isso que consideramos cada colega ou “amigo” como uma peça integral da nossa percepção do mundo. Não temos resistência, não somos capazes de oferecer tração, o nosso cérebro é maleável e as nossas emoções mimetizam as daqueles que por nós deambulam. 

Ao cruzarmos a fronteira da adolescência já possuímos os primeiros contornos do que será o produto final. Existem linhas mestras que não podem ser mudadas, danos que só podem ser cobertos, mas não retocados. Uma colagem de erros sobrepostos que dão forma a uma imagem concreta. É nesta fase da obra-prima que somos “nós”, que acreditamos ser mais perspicazes, que acreditamos ter a resistência necessária para lidar plenamente com a realidade que nos rodeia. Descobrimos que tudo é efémero, que os artesãos que nos deram forma, que os artistas que pintaram os nossos contornos, eram também eles fruto da sua própria arte. Que o esforço que dedicam ao seu engenho é apenas reflexo da obra que gostariam de ter sido. 

O ciclo finalmente fecha quando chegamos à vida adulta. O barro já cozeu, a tinta já secou. Lacrou-se o destino e só resta esperar pelas primeiras lascas e fissuras na obra imperfeita que é o “nós”. Colocamo-nos em cima de pedestais nas mais diversas galerias, iluminados com um foco que detalha o ângulo que consideramos mais favorável para os apreciadores que nos avaliam ao pormenor em busca de imperfeições que não possam ser ignoradas. Sentimo-nos sujos, cobertos de ranço e da poeira típica de quem aguarda ser levado por alguém digno. E, quando finalmente somos escolhidos, passamos a fazer parte de uma coleção onde existem sempre as joias que recebem toda a atenção e apreço enquanto nós apenas aguardamos pelo esquecimento. 

É isto que é a vida, é este processo de seleção que é a amizade. A ambição fútil de ser o mundo e o tudo de alguém. A auto comensuração pelas nossas imperfeições serem a razão do nosso esquecimento. Somos simultaneamente o artista e a sua arte. Somos o barro e o escultor, o pintor e a sua tela. Somos quem se expõe em busca de comprador e somos quem compra criteriosamente a peça de arte. É um ciclo vicioso que circunscreve a vida de todos nós. 

E levanta-se novamente a questão: porquê? Porque haveremos de nos conformar com a ideia de que a amizade é fulcral para o desenvolvimento humano? Que o estabelecimento de relações duradouras é o pináculo da existência?

A perpetuidade é uma construção social idílica para os que a tentam alcançar, mas vã para os demais que a renegam como sendo antitética com a realidade. 

Estamos em constante metamorfose de modo a emergirmos sempre como a personificação da perfeição única de cada um que nos observa. Regemos as nossas escolhas com base em predicados há muito alicerçados que ditam como deverão os seres humanos relacionar-se, mas, acima de tudo, como se deveriam sentir caso assim não o façam ou não consigam. 

Queremos, desejamos, ambicionamos, mesmo que inconscientemente, ser o mundo e o tudo de alguém. Ter quem seja o nosso confidente e nos permita ser o nosso “eu” mais genuíno. Que aceite o “eu” e não o “nós”, que tenha a capacidade de com o formão ou o diluente retirar as inúmeras camadas que escondem a verdadeira essência da nossa singularidade. Mas existe um limiar, diferente conforme o indivíduo e as suas idiossincrasias, que dita até quando poderemos encontrar este alguém. E, mesmo encontrando, é irrealista acreditar que será algo eterno, pois no mundo nada é eterno senão o próprio universo e mesmo esse há de um dia sucumbir.

Pode ser controverso ou até mesmo um puro contrassenso afirmar que a amizade nada aufere à vida de cada um. A realidade é que aquilo que a mesma contribui é apenas superficial e fútil, uma oferenda que aceitámos enquanto sociedade ser suficiente para justificar o sentimento agridoce que advém da perda. Ninguém deseja ficar só, ninguém deseja ter de viver com a sua amargura e mágoa sem a poder ventilar ou processar segundo uma perspetiva exterior, mas aquilo que desejamos não passa de uma idealização e negação do que é inevitável. A eterna solidão.
Se até os deuses morrem quando o último fiel perde a crença, como poderíamos assumir que os nossos sentimentos ou a nossa ligação com alguém aguentaria a tumultuosa viagem que é a vida. É humano desejar ser desejado, ser aceite por quem somos, ser amado incondicionalmente e eternamente. Mas a amizade é uma jornada, e as jornadas têm fim, um fim que ninguém deseja cruzar, mas que inevitavelmente cruzarão.

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