Crónico

Autoria: Anónimo

Ultimamente só me faço adormecer com um empurrãozinho embalado em alumínio. Governo semanas por arrasto, estou desligado de gostos faz meses. Vivo de pequenas quedas, mas sobrevivo de pés limpos. São tudo desvios que, por mais negativos, a tamanha insignificância tem um ritmo que ainda me mantém alerta. Sou um constante défice e o que me consome é motivo de continuar e, paradoxalmente, causa de querer parar. Em suma, porto um cansaço sem fundo que dá flor a uma cabeça que não para. São exames, são corredores brancos e um desprezar transversal. Uma vida de tentativas, uma ciclicidade de ser, minto-me e finjo-me merecer. Nada do que vivo é exclusivo, nada do que digo é inédito. Contudo, nesta cidade tudo reverbera e aponta na minha direção, a cada ciclo, com mais força.

A nossa amizade começou com uma mentira, uma metafórica promessa de boa-fé. Sussurrou ser um pontual abraço, um encontrão de cotovelos motivador, mas de que serve ser tão cego? O contrato, por mais que sabido, tinha tão bem escrita a introdução que entre a minha fraqueza de espírito e habilidade em me fazer prometer sonhos, apenas li o resumo. Ponderei e adiei reencontros durante jornadas em ânsia de vómito. Foram semanas de realidade, dias os quais não pude falar-te.

Confesso que o escorregar é silencioso, até mesmo naquilo que outros gritam ser o trajeto do início para o fim. Não me julgo ignorante, muito menos desinformado, mas o combate é erradamente feito na informação. Soube a mais, descobri poder e lá me perdi. Nos dias que passam, corre-me no sangue uma paixão às caixas, um inefável apego a nomes alemães. Os meus livros já não contemplam aquelas nomenclaturas e por mais que já os vá associando a efeitos, o profundo conhecimento tem vindo de experiência. A verdade é que o meu amor vem aos miligramas. Sou comburente a lamarckismos, ardo em mediocridade: sou menos por ti, fizeste-me menos ao me convidar. Dois já não me coçam, três saltitam conhecer-me, sou quem tu foste desejado para destruir. Alimento aversão a quem julgo que fui, mesmo quando permaneço igualmente podre.

Fruto químico ou maçã permitida, cansei as pausas, agora o jogo passou a misturas. Morro de medo em conotar orgulho, pois nada disto surge de boa vontade. Não é piada o carinho que agora tenho por facas que antes, e a qualquer um, afugentam. Posso evitar ruas, desviar-me de bancos e esquecer nomes. Mas quando palavras que não lhe são exclusivas se fizerem soar? Chamar-me-ão mal me recorde, mal me obriguem a pensar vejo-me a contá-los. Reduz-me fazer disto ferramenta quando ampliado ao caso, mas a verdade é que a minha existência é a soma de muitos outros pontos análogos.

É uma má semana, é um mau ano. Aqui, não é por se fazerem meses que algo do género desvaneça. Revivo tudo cada dia, sonho acordado cada detalhe do passado. Meticulosamente, mal acordo, não escapo ao meu próprio filme repetido. É injusto como tudo recomeça exceto eu e que de mim tenham nascidos incontornáveis defeitos. Vejo à volta o progredir que só não se manifesta em inveja, pois tenho consciência que o mal de mim nasce. “Espetacular” – dizem – de incontáveis qualidades, mas que nunca se somam em amabilidade. Não creio ter em mim a capacidade de computar interações que não molares. Sou convicto da minha inércia, mas tudo bem – durante aquelas horas contadas.

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