A Ferro e Fogo

Autoria: Manuel Seatra (FLUL) – texto; Sofia Menino (Ar.Co) – imagem

Abria e fechava a mão sob o comando da enfermeira.

Respiração pesada.

– âncora viva a remediar os nervos sem nunca olhar diretamente para a seringa, por vezes um ou outro soslaio em frações de segundo que pareciam dias inteiros.

Não se ouvia um piu vindo lá de fora naquela cápsula de brilhos fluorescentes, um planeta frio vestido a batas e toucas, alimentado a jejuns e frascos esterilizados.

Por esta altura já se canta missão cumprida ao sabor do penso rápido e do aliviado

“Pronto, já está!”

com a ajuda da enfermeira no árduo processo de desdobrar a manga da camisola sem tocar no penso. Colheita de uma amostra de sangue no braço da roleta nos matraquilhos

– é trocar o hemisfério à mesa e seguir em frente.

[jogar com o que se tem, sem pequeno-almoço antes das dez e meia, aguardar a vulgarização da Glicose e as pazes com o Ferro. Puxar atrás a novela das costas voltadas dos gémeos Colesterol Bom e Colesterol Mau e a prima Cobalamina que luta por uma herança choruda e afia silêncios com os olhos inundados de falsas esperanças, vilania e desastres rodoviários.]

Compreendo se o sangue não disser nada. Se o sangue desaparecer e se recusar a revelações com um não potente ou com um silêncio de mordaça. A sério que compreendo. Todos temos os nossos segredos e há lugares onde os laboratórios não hão de chegar, há amostras que se vão perdendo nos bailados do tempo, evaporam entre as conversões à escala da falsa pureza dos desinfetantes e a vigia das etiquetas nos frascos.

Tudo é possível.

Um híbrido entre o estatuto mecânico dos manípulos dos matraquilhos e os reflexos ágeis do guarda-redes. Uma laranjada e uma sandes mista no Velha Europa. Uns valentes murros na mesa do lado, cabelos grisalhos e pontas de inveja.

De dia, as lâmpadas sem luz são as tochas por acender do agora, todas ao mesmo tempo, em sentido, à espera de uma faísca que sobre ao sol. O elevador da porta de correr já não é bilhete de identidade urbano. As pessoas engolidas para debaixo da terra pelas escadas rolantes já não querem voltar

– está fresco, a bica está barata, há tendas de livros em segunda mão, saldos todo o ano, lojas de telemóveis, velocidade…

A cidade está cheia de símbolos e enigmas. Não conheço a mística toda, imagino que ninguém conheça

– uma mística que se conheça por inteiro peca ao nível do mistério. O mistério dilui-se, transforma-se de boca em boca e espalha-se para que se lhe possam recolher migalhas com o passar do tempo. O mistério não morre se está nas entranhas da cidade em teia e vai escorrendo aos ouvidos de quem passa com tempo de escutar.

O autor policia-se, a tela não fica completa sem uns suspiros agastados, uns disfarces de cor salpicados ao longo do passeio. Policia-se na esquina das novidades e na esplanada das espreguiçadeiras junto ao rio. Vigia as mãos nos bolsos, as costas direitas, o penteado certo. Um pé à frente do outro, um pé a seguir ao anterior, um pé, depois o outro.

Pausa para respirar.

Última dentada na sandes e ainda há laranjada de sobra. Dois goles distraídos com os pardais ao longe;

lutam por uma metade velha de bolo, desfigurada na calçada.

Resolve-se o mistério da tela com pegadas de pássaro. Uma pegada pode fazer-se com três traços perfeitos ligados por um único vértice. Não esquecer a pinta grossa que antecede o vértice

– diria calcanhar de apoio.

Abrir e fechar a mão para bombear sangue. Abrir e fechar a mão como ato de resistência à entrada da tribuna. Uma festa

– todos se levantam, todos se vão abraçando num fervor harmonioso, uma rambóia tão espontânea que parece ensaiada.

Abrir e fechar a mão aos brasões das famílias importantes, às mortalhas dos falecidos anónimos que descansam sob o mesmo solo. Abrir e fechar o silêncio, com uma boca enorme sem dizer nada, com uma pressa de maratonista.

[quarenta e dois quilómetros e cento e noventa e cinco metros;

golfadas de ar vagarosas, pernas firmes, peito feito, nariz na linha da frente a ganhar espessuras milimétricas de vantagem;

o pó ascende, os braços balançam em sincronia, arranca um e foge o outro, uma dança paralela de desencontros unidos numa caixa que leva mais caixas dentro]

Raciocínio,

ra-ci-o-cí-ni-o.

As rotinas imaculadas de comprar o jornal ao sábado, abrir a caixa do correio três vezes ao dia (para o caso de haver surpresas), procurar simetrias nos rostos de quem passa. Maus hábitos de roer as unhas, de beber demasiado café, endereçar o fio condutor esfarelado pelas dentadas do tempo.

A magia da contemplação é uma dádiva tão acessível. Brinca-se com as componentes do motor da tela, imagem em movimento, notícias de fora, terra à vista de dentro, a embalar o trapézio num sopro

– nervosismo;

cerrar os dentes e tapar a vista.

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