Autoria: Pedro Lima
Os braços dão-se ao vento citadino
Num toque simbiótico de arco e violino
E entre os prédios desponta um brilho
Que os olhos cega por um momento.
É este o teu efeito retroativo?
Pela eufonia da noite fico hipnotizado,
O motor a rugir, o corpo deitado,
E antevendo o sexo transgressivo
Com o condutor deste velho carro,
Atiro um olhar ao túnel onde me acho.
É este o teu efeito retroativo?
O velocímetro marca cento e oitenta,
Nas narinas o fumo da combustão,
A mente perdida, se um tanto lenta.
Ao som de uma música eletrónica,
Coloco sob o volante a cabeça.
É este o teu efeito retroativo?
Agarrando a faca que nos prende,
Regresso ao meu antigo lugar
E contemplo a esclerótica da lua,
O rosto tão melancólico e sentido
Que não consigo sequer explicar.
É este o teu efeito retroativo?
Parto o vidro desta janela
E empoleiro-me no resto dela,
As lágrimas turvando a visão.
O sangue jorra de uma e outra mão
E para a noite profunda grito então.
É este o teu efeito retroativo?
Ouvi uma vez alguém dizer,
Que a calma antes da tempestade
Era este amargo crer e descrer.
E sei agora que essa é a verdade.
É este o teu efeito retroativo?
Pelo caos do trânsito correndo,
As memórias vão aparecendo:
No calor desnudado um do outro,
Ríamos como se fosse a primeira vez.
Os cigarros ainda ardiam nos lábios,
Lançando centelhas ao ar forasteiro.
Os cabelos adejavam na maresia
E os pés calcavam a areia que aquecia.
As margens rabiscadas do meu livro
Eram os segredos de cada dia.
É este o teu efeito retroativo?
Os faróis tiram-me o chão,
A velocidade de metal atinge-me
E tudo escurece como o alcatrão.
É uma pausa para refletir,
Um momento para recuperar a noção.
É este o teu efeito retroativo?
Estou numa praia de traços surdos,
E lá ao fundo, há ondas lavando
O caminho que nunca será esquecido.
Um chorrilho de perguntas pressiona
A amolada faca que nos aprisiona:
Será que o que sinto é único?
Que a dor é nova por aqui?
Que criámos outra emoção?
A água dos olhos diz que não
E a lâmina delineia o trilho lavado.
Talvez seja este o teu efeito retroativo.
