Sobre crises existenciais

Ao contrário daquilo que a comunicação social nos tem feito crer nas últimas semanas, não estamos a atravessar uma crise existencial, mas sim duas: a nova pandemia, cuja ameaça é imediata e evidente, e a velha crise climática, mais oculta mas também devastadora. 

Autoria: João Gonçalves


Dos poucos aspetos positivos em relação à quarentena destaca-se a quantidade acrescida de tempo útil de que muitos de nós agora dispomos. Mesmo para aqueles que continuam a trabalhar ou a ter aulas, o ambiente caseiro pode tornar-se convidativo para desenvolver atividades mais criativas ou simplesmente parar para pensar. No meu caso, sinto exatamente isso: esta quarentena tem-me dado tempo para pensar.

E entre tantas outras coisas, tenho-me questionado bastante sobre os efeitos que a crise que atualmente vivemos poderá vir a ter no futuro das sociedades humanas, bem como sobre aquilo que ela nos pode ensinar. A verdade é que esta é a primeira vez que eu e muitos outros presenciamos um evento histórico verdadeiramente significativo e é impossível não ponderar sobre ele, sobre a maneira como estamos a enfrentá-lo e sobre a sua capacidade para mudar paradigmas. Quando a pandemia em si terminar, haverá certamente uma recessão económica que afetará todo o mundo durante um longo período de tempo, mas quero acreditar que o final desta crise trará também mudanças positivas ao nível de costumes e de mentalidades, e que nos deixará mais aptos enquanto espécie para enfrentar as crises que certamente se seguirão.

Até aqui, acreditava que a crise existencial mais premente e impossível de ignorar era a crise climática, mas a Natureza gosta de nos surpreender. As alterações climáticas continuam a ser um problema, mas passaram temporariamente para segundo plano. Mesmo assim, a pandemia do COVID-19 trouxe-nos a oportunidade de testemunhar em primeira mão a capacidade do ser humano para se adaptar e resolver problemas, capacidade essa de que o ambiente também está fortemente necessitado. O número de casos de COVID-19 continua a aumentar mas milhões de pessoas já se mobilizaram (ou, neste caso, imobilizaram) nas suas casas para tentar aplainar a curva. Ainda não sabemos ao certo que efeito esta ação está a ter na redução do número diário de casos, mas é notável a maneira como uma quantidade tão grande de pessoas se predispôs a tomar medidas tão drásticas e a pôr de lado a sua própria satisfação e qualidade de vida pelo bem comum.

De certo modo, esta reação não é surpreendente. Por algum motivo esta nova doença é apelidada de uma “crise existencial”: ela ameaça a nossa existência enquanto espécie neste planeta. O que dizer, então, das alterações climáticas? Não se qualificariam elas também pelo mesmo critério como uma “crise existencial”? Sim, e no entanto nunca vimos uma tentativa tão dinâmica de as combater como vemos atualmente em relação ao COVID-19. Isto acontece porque, embora ambas sejam problemas de grande dimensão, estas crises têm características muito diferentes: uma pandemia tem uma origem, um crescimento no número de casos e um fim bastante bem definidos, que se seguem de maneira mais ou menos direta. Já houve várias pandemias ao longo da História da Humanidade e a sua evolução foi sempre semelhante, embora algumas possam ter sido  particularmente mortíferas ou duradouras. Isso dá-nos algum conforto. Esta pandemia, por mais gente que mate e mais tempo que dure, dificilmente levará à nossa extinção enquanto espécie e até os analistas mais pessimistas concordarão que há de passar eventualmente. Resta-nos então apenas tomar medidas para garantir que isso aconteça com o menor custo possível em vidas humanas, o que não é pedir muito.

As pessoas sabem que o isolamento social atualmente em vigor é temporário, mesmo que não conheçam ainda a sua duração exata. Numa situação destas é compreensível que elas colaborem e se disponham a ser submetidas ao regime de quarentena, motivadas pelo conhecimento de que este período de relativo sofrimento não será duradouro e pela ideia de que será recompensado mais tarde com um regresso à normalidade sem qualquer perda de qualidade de vida. No que toca à crise climática, no entanto, já não será bem assim. Essa ameaça existencial só poderá ser verdadeiramente encarada se estivermos dispostos a aceitar o compromisso de alterar os nossos hábitos de vida de maneira definitiva. Não poderemos encarar as eventuais mudanças de estilo de vida que a crise climática nos force a fazer motivados pela perspetiva de um futuro melhor em que possamos voltar aos hábitos relaxados que praticávamos antes da crise começar, pois são precisamente esses hábitos que estão na sua génese. Levar as pessoas a aceitar esta ideia é incomparavelmente mais difícil.

Mais do que isso, convém não esquecer que a crise climática já começou, por mais que a crise pandémica se lhe tenha sobreposto em urgência imediata. Enquanto o COVID-19 parece ter surgido de um momento para o outro, passando de uma epidemia numa única povoação da China para uma pandemia mundial no espaço de meses, as alterações climáticas já têm vindo a intensificar-se há décadas. Infelizmente, este aspeto joga em desfavor da crise climática no que toca à importância que adquire aos olhos do público, pois o facto de ser um problema que já se discute há mais tempo pode levar a que seja interpretado como menos grave, o que não se verifica. Muito pelo contrário: precisamente por ser o acumular de décadas de maus hábitos é que as alterações climáticas serão um problema incomparavelmente mais difícil de resolver. Quando se apresentarem indubitavelmente como uma crise iminente, talvez já seja tarde demais para atuar.

Mas lá está, apesar de tudo, há aspetos positivos a retirar de toda esta situação. O COVID-19 mostrou e continua a mostrar que grandes mudanças podem ser alcançadas quando todos contribuímos para elas e isso é algo de que não nos podemos esquecer, mesmo quando o problema for ultrapassado. A batalha contra a crise climática está ainda no início e nada está perdido, mas há duas coisas que temos de ter em mente desde já: que uma ameaça não é menos grave por não ser imediata e que a solução para problemas profundos passa por vezes por mudanças também elas profundas e definitivas. Esperemos que essas lições venham a ser compreendidas por todos nós, nestes meses que se avizinham.

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