Autoria: Pedro Lima (MEIC-A)
Com uma audácia que lança a fagulha da discussão, a segunda longa-metragem de Jane Schoenbrun, lançada em maio, envereda por questões de identidade de género, orientação sexual e pertença, num mundo tão complicado como o nosso. Da escrita simbólica à volatilidade da música, I Saw the TV Glow foi uma das surpresas da 28.ª edição do festival de cinema Queer Lisboa, onde esteve em exibição a 27 de setembro.
Um prelúdio que acabou por tornar o festival de cinema no mais antigo da cidade de Lisboa, o Queer Lisboa foi criado em 1997. Desde então, conquistou reconhecimento pelo mundo fora, não só pelo selo de qualidade da sua programação, mas também pelos convidados que tem conseguido atrair. Único em Portugal na exibição de filmes de temática gay, lésbica, bissexual, transgénero, intersexo e outras identidades não-normativas – o conhecido “cinema queer” –, o Queer Lisboa divulga obras cinematográficas com importância expressiva, num contexto de interesse crescente por este género.
Com o intuito de adotar uma perspetiva abrangente relativamente ao conceito “queer”, o festival conjuga as temáticas queer das narrativas com a tentativa de compreender em que consiste a criação de uma estética queer. Este envereda ainda por questões de racismo, xenofobia, migração e exclusão social, e inclui discussões sobre temas como o pós-colonialismo, com a finalidade de entender melhor a complexidade inerente às experiências queer.
Dada a falta de acessibilidade deste tipo de cinema ao público em geral, o festival, que acontece todos os anos em setembro, faz a ponte entre realizadores emergentes e quem procura aprofundar estas temáticas, com bilhetes que custam 4,50€ (ou 3,50€, no caso de menores de 25 anos, maiores de 65 anos, funcionários da Câmara Municipal de Lisboa e membros das Associações LGBT+). No penúltimo dia da edição deste ano, 27 de setembro, foi exibido no Cinema São Jorge o aguardado I Saw the TV Glow, pelo qual a organização do festival teve de lutar para incluir no programa. [1]
“They can’t hurt you if you don’t think about them.” Um mote para a viagem transformativa que permeia o filme, esta é uma das frases que a co-protagonista de Pink Opaque profere, o seu nome Tara, e é através deste programa de televisão que a narrativa monta alicerces. Owen, um rapaz em busca do seu lugar no mundo, é introduzido a Tara e Isabel, a melhor amiga desta, em meia dúzia de confrontos com criaturas sobrenaturais. Para isso, conta com a ajuda de Maddy, uma estudante uns anos mais velha que encontra na escola e que o convida a ver os episódios na casa dela.
Deste ponto em diante, as vidas de Owen e Maddy são postas à prova. Revezar frequentemente o mundo de Pink Opaque por um ambiente familiar cisnormativo – e vice-versa – faz com que as dúvidas de Owen quanto à sua identidade de género se amontoem. Ele conhece, no seu íntimo, parte da verdade, mas há demasiado medo para investigar, um sufocamento que é fatal, e vive por isso em negação. Mesmo quando a mãe é diagnosticada com uma doença terminal, não existe uma voz ou um sinal que lhe diga que é o momento certo, que é seguro falar sobre o que está a sentir.
Após um período de afastamento, Owen e Maddy usam o Pink Opaque como pretexto para desenterrar temas pessoais. Sentada nas arquibancadas, ela diz-lhe que gosta de raparigas e pergunta-lhe sobre quem o atrai. “When I think about that stuff, it feels like someone… took a shovel and dug out all my insides. And I know there’s nothing in there, but I’m still too nervous to open myself up and check”. As palavras de Owen, que lhe parecem sair a ferros, abordam a questão da transsexualidade de uma forma orgânica, além de remeterem para os receios acima referidos. Simples e complexa, é uma das minhas cenas preferidas.
Na sequência de outro episódio, Owen fica a saber que se Maddy não fugir daquela cidade vai morrer. Ele recusa-se a fugir com ela, temendo a reação do pai, e Maddy desaparece, no seu encalço somente uma televisão queimada, aquela onde viam o programa, e o cancelamento de Pink Opaque. Isto sugere, a um nível subliminar, que a televisão era uma forma de escape para ela, que agora está pronta para enfrentar o mundo e viver sem se esconder.
Anos depois, Maddy torna a aparecer na cidade. Ela e Owen encontram-se num concerto, onde Maddy o tenta salvar. Ela explica-lhe que o Pink Opaque é mais do que um programa, que está mais ligado a eles do que pode parecer, e revela, entre visões de Owen num vestido, que vê nele parte da Isabel. Ele rejeita a ideia, que culmina na proposta de ambos se enterrarem vivos, como no episódio final do programa.
Só mais tarde é que Owen, preso num trabalho monótono, sente os efeitos adversos de uma vida construída em torno da negação. O momento é marcado por uma crise existencial, durante uma festa de aniversário, em que ninguém o ouve a implorar por ajuda. Na casa de banho, ele ganha coragem para ver o que está dentro de si. Para sua surpresa, há vida, floresce luz. Uma beleza intrínseca. É como se, naquele momento, ele percebesse que toda a sua vida foi desperdiçada e ganhasse coragem para se aceitar como “Isabel”.
Se tivesse de apontar algum aspeto negativo à narrativa, seria que, em certos momentos, a natureza esotérica do lore acaba por obscurecer a mensagem. A mitologia do Midnight Realm, por exemplo, pode parecer mais central do que o facto de esse reino ser real apenas pela ligação que Owen e Maddy partilham com ele. Contudo, isso já seria uma crítica demasiado exigente da minha parte. A verdade é que o simbolismo enriquece as questões em cima da mesa, elevando o filme ao criar discussões relevantes e provocativas.
No que diz respeito às performances do elenco, não há uma única que se exclua da possibilidade de ser indicada a galardões. Com um trabalho de preparação impecável, os atores demonstram um domínio apurado das microexpressões, das mudanças na cadência e na entoação e não só. Como esperado, Justice Smith e Brigette Lundy-Paine destacam-se nos papéis de Owen e Maddy. Smith altera a dicção dos diálogos, em tudo subtil, de um tom mais monocórdico, típico de alguém que está desconfortável consigo mesmo, para um mais animado, o que revela mais do seu potencial. Um exemplo disso é a cena das arquibancadas, quando ele se ri. Já Brigette Lundy-Paine impressiona pela precisão com que transmite emoções através dos olhos, também particularmente notável na mesma cena.
Com contributos de vários artistas indie, a banda sonora tem uma volatilidade que captura a viagem de autodescoberta das personagens, o que enriquece a experiência enquanto complemento linguístico. Nos cerca de 61 minutos, o repertório sonoro alterna entre o estranho e o familiar, com guitarras e sintetizadores que evocam o som dos anos 90. Starburned and Unkissed, de Caroline Polachek, é um dos pontos altos, graças à produção refinada e ao uso na cena em que Owen está a andar pelos corredores da escola, à procura da sala escura. A feroz Psychic Wound, da King Woman, é também de notar.
Já a cinematografia é, sem dúvida, uma das partes mais arrebatadoras e não pode ficar esquecida. O uso predominante das cores da bandeira trans não só é simbólico, como está também incrivelmente bem conseguido, envolvendo-nos numa atmosfera rica e profundamente significativa. A composição ponderada das cenas enaltece igualmente a experiência.
Quanto à realização, há uma subtileza que escapa às palavras. É evidente que esta carrega em si algo de pessoal, um toque de vivência própria que se torna ainda mais claro ao conhecermos a trajetória de Jane Schoenbrun. O voto criativo dado a cada aspeto da produção garantiu a excelência que está patente e o recurso ao programa de televisão insere uma fascinante camada metalinguística no filme, o que, para mim, foi uma escolha brilhante.
Em suma, esta longa-metragem tem muito a oferecer à comunidade, ao abordar este tipo de questões e promover diálogos relevantes. A curadoria do festival, ao escolhê-lo, foi mais do que adequada. Quanto ao filme em si, recomendo-o com entusiasmo pela força da sua história, pelas atuações marcantes, pela música envolvente, pela cinematografia de tirar o fôlego e pela direção sensível. É uma obra que transcende, em beleza e significado.
Referências:
[1] Queer Lisboa e Queer Porto – Os Festivais [Acedido pela última vez a 03/10/2024]