Autoria:Renato Mântua (LEAer), Tomás Fonseca (LEIC-A)
Decorreu, nos passados dias 10 a 19 de novembro, mais uma edição do Festival de Cinema de Lisboa, o LEFFEST [1]. Este ano, revisitámos grandes êxitos do cinema em diversas retrospetivas e homenagens, enquanto olhávamos para o presente artístico do cinema.
A cerimónia de abertura da festa, marcada pelas muitas vaias e risos irónicos do público durante o discurso de apresentação do presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), Carlos Moedas, ficou reservada para um dos filmes mais aguardados do ano, aqui apresentado em antestreia: a mais recente obra do cineasta grego Yorgos Lanthimos (realizador de “The Lobster” e de “The Favourite”), “Poor Things”, vencedora do Leão de Ouro em Veneza. A longa-metragem, que chegará aos cinemas portugueses a 25 de janeiro do próximo ano, segue a história de Bella Baxter (Emma Stone), uma jovem vitoriana trazida de volta à vida pelas mãos de Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe), um médico brilhante de métodos e práticas pouco ortodoxas. Isolada do mundo exterior (ao estilo de “Dogtooth”, filme que revelou o realizador ao panorama cinematográfico internacional, onde, tal como Bella, os protagonistas são fechados em casa pelos seus guardiões), a protagonista do filme anseia por conhecer-se e ao mundo, partindo numa jornada de autoconhecimento e libertação sexual. Com uma boa dose de humor negro (que resultou perfeitamente para os espectadores do Teatro Tivoli), Bella, livre dos preconceitos do seu tempo (que são, muito infelizmente, bastante atuais), desconstroi expectativas sociais e atinge a sua independência.
Sendo o cinema uma forma artística que dificilmente se alheia das circunstâncias sociais que o envolvem, as obras tornam-se num conjunto de memórias de tempos passados. No seguimento de diversos esforços de preservar e restaurar obras do passado cuja mestria é inquestionável, o LEFFEST apresentou-nos a secção “A Memória do Cinema”. Nesta, foram selecionadas quatro obras clássicas que foram restauradas. Entre elas, destaca-se “Crepúsculo em Tóquio” (“Tokyo Twilight” ou “Tōkyō boshoku” no japonês original), exibida no primeiro dia do festival no Cinema Nimas. Realizada por Yasujiro Ozu, que celebraria o seu 120.º aniversário este mês, nesta obra, a audiência acompanha a história de duas irmãs, cujo crescimento sem a presença materna acentua os dramas familiares que assombram este filme, desde uma gravidez indesejada a complicações amorosas. Numa angustiante jornada, Ozu demonstra a sua capacidade de conjugar o humor ignorante com a dor que as personagens sentem, mostrando o quão severa a vida é. De sala cheia e uma plateia emocionalmente exausta, a aderência levou a que o Cinema Nimas dedicasse um ciclo especial ao realizador durante este mês, mais concretamente de 30 de Novembro a 27 de Dezembro [2].
No seguimento da memória, este ano foi homenageado o ator e realizador Clint Eastwood. Ganhando notoriedade como protagonista da trilogia spaghetti-western “The Dollar Trilogy”, de Sergio Leone, Eastwood tornou-se rapidamente um nome associado ao género. No entanto, o Festival optou por focar-se na sua carreira enquanto realizador, que desenvolveu as suas origens no neo-western, como em “Cry Macho”, mas também se aventurou por thrillers criminais, “Midnight in the Garden of Good and Evil”, ou até dramas, como “American Sniper”. Para aproximar a audiência do realizador, o filho de Eastwood, Kyle, veio ao festival para falar sobre as obras de seu pai. Enquanto músico, Kyle Eastwood acompanhou desde jovem a carreira do pai, chegando mesmo a colaborar com o mesmo em filmes como “Letters from Iwo Jima” ou “Gran Torino”, ambos realizados por Clint. Numa série de conversas ao longo do festival, o baixista de jazz contou como foi a infância, a personalidade do pai e a sua maneira de realizar os seus projetos. Um dos filmes que acompanhámos foi “Mystic River”, que segue um grupo de três amigos de infância que se reúne quando a filha de um deles, Jimmy (Sean Penn), é assassinada. A ação desenrola-se numa busca pelo culpado, no qual um dos três amigos, Dave (Tim Robbins) se torna o principal suspeito. Embora uma história intrigante, o clímax e desfecho pareceram incongruentes com a história que acompanhámos ao longo do filme.
Para quem aprecia uma maior proximidade com os autores e protagonistas da 7.ª arte ou para os que têm interesse e vontade de aprender mais sobre a produção e realização de filmes, o festival organizou, como parte das suas muitas sessões especiais, diversas masterclasses. Entre as várias personalidades que aceitaram o desafio incluiu-se o realizador japonês Ryusuke Hamaguchi. Hamaguchi, realizador que viu a sua longa-metragem “Drive My Car” vencer o OSCAR de melhor filme estrangeiro em 2022, contou peripécias sobre a produção de filmes anteriores, expôs os seus métodos de direção e abordou a sua relação com os atores e o seu processo de seleção. Numa sessão que durou quase 2 horas, houve ainda tempo para perguntas do público, sempre correspondidas com humor e um sentimento de gratidão para com todos os presentes.
Ainda no mesmo dia, logo após a sessão com o público, Hamaguchi e o seu novo filme, “Evil Does Not Exist”, foram protagonistas de mais uma grande antestreia. O filme japonês que, tal como “Poor Things”, estava nomeado para o prémio Leão de Ouro no Festival de Cinema de Veneza, surgiu inicialmente como uma curta-metragem encomendada pela cantora e compositora Eiko Ishibashi para acompanhar as suas mais recentes músicas, tendo acabado por evoluir e crescer, levando o realizador a desenvolver e escrever um argumento e criar a obra apresentada. A história do filme segue Takumi e a sua filha Hana que vivem numa aldeia pacata nas proximidades de Tokyo. Vivendo de pequenos serviços para a população local, a vida do protagonista é pautada pela calma e paz do campo, que um dia se veem perturbadas pelos planos de construção de um campo de férias num terreno local. Começando uma luta contra os planos destrutivos da grande corporação da capital, a narrativa evolui para uma luta entre o bem e o mal, focando-se muito particularmente na origem do mal. Com data de estreia marcada em Portugal para janeiro de 2024, é certamente um filme a não perder.
Como foi mencionado, o cinema reflete as circunstâncias em que se encontra e o mesmo é verdade para a época contemporânea. Dessa forma, este ano foi apresentado o ciclo temático “A Inteligência Artificial e a Criação Artística – Para onde Vamos?”, cujo objetivo era abrir um espaço para o debate sobre a inteligência artificial no mundo artístico, através de filmes, conversas e até concertos. Entre muitas obras de renome apresentadas, como “2001: Odisseia no Espaço”, “Frankenstein” ou “Matrix”, uma das mais salientes foi o clássico “Metrópolis”, da autoria de Fritz Lang. Um dos pioneiros da ficção científica, este sessão foi apresentada na forma de cine-concerto, na qual um trio composto por saxofone (Rodrigo Amado), bateria (Gabriel Ferrandini) e contra-baixo (Hernâni Faustino) acompanha sonoramente o filme na sua totalidade. A história conta-nos sobre uma sociedade distópica vertiginosamente perto do colapso, onde uma poderosa elite explora incessantemente uma classe operária desprovida de qualquer humanidade. Nesta colisão iminente, surgem duas personagens: Maria, uma operária que promete a vinda de um messias que dará a vida que os explorados merecem, e Freder, o filho do líder da cidade que ganha um interesse súbito em Maria e nos seus ideais. No entanto, Fredersen, pai de Freder, não pretende abdicar da sua magnanimidade e alia-se ao cientista Rotwang para impedir qualquer revolução. Um filme cuja mensagem parece inofensiva “O mediador entre a cabeça e as mãos é o coração” tem análises extremamente polarizantes, desde defender o comunismo até ser uma metáfora a favor do nazismo. Deixando estas interpretações a cargo da audiência, a banda, que tanto optava por um jazz calmo até um frenesi sonoro, acompanhava harmoniosamente todos os instantes do filme, criando momentos de extrema tensão no auge do filme, elevando ainda mais a experiência cinematográfica.
Embora se foque principalmente no cinema, a festa é, no entanto, multidisciplinar, com exposições, concertos ou peças de teatro a marcarem presença na programação. Neste grupo, há a destacar a exposição “Éloge de l’image – Le Livre d’image”, de Jean-Luc Godard. Baseada na sua última longa-metragem homónima e sediada na Trienal de Arquitectura, a exibição contou com imagens do filme, desdobrando-se em ramificações que criam uma verdadeira árvore do cinema, uma “projeção viva” nas palavras do falecido realizador.
Referências:
[2] https://medeiafilmes.com/ciclos/ciclo-yasujir-ozu-120-anos