Autoria: Carolina Pereira, LEIC (IST)
O Ser Humano tem por característica a sua curiosidade e a necessidade de entender aquilo que o rodeia. Toda a evolução, seja ela sua ou não, tem por detrás uma aprendizagem essencial para a sobrevivência da espécie. Um Ser aprende sobre o meio em que vive observando os outros, experimentando e experienciando. Existe uma outra aprendizagem mais subtil, aquela que associamos a “capacidades inatas”, aquela que vem no nosso código genético – um presente dos nossos antepassados. Tudo isto se aglomera, construindo o nosso conhecimento. São os tijolos do paradigma em que cada um de nós se encontra.
Os tempos mudam e os padrões também. Claro que não tem de ser assim. Uns resistem mais tempo. Outros, simplesmente, não têm de mudar. Por vezes, pensamos que o paradigma mudou por completo, mas a verdade é que as fundações se mantêm imutáveis. Continuamos no mesmo edifício, apenas com uma decoração diferente, eventualmente ajudada por uma melhoria arquitetónica.
Olhando para o exemplo bastante abrangente dos empregos, damos conta de que muito mudou desde que os humanos eram uma sociedade recoletora. Mas será que somos assim tão diferentes agora? Temos uma sociedade organizada, cada indivíduo inserido num grupo com tarefas atribuídas. Adquirimos as capacidades necessárias para cada ofício ao longo de vários anos de escolaridade e vamos ganhando experiência enquanto trabalhamos. Assim, a sabedoria de cada um é fundamentada por todo o conhecimento básico de sobrevivência adquirido ao longo dos milhares de anos de evolução, em conjunto com o conhecimento específico de cada ofício.
O conhecimento e a tecnologia são temas que surgem de mãos dadas. Atualmente, temos a ideia de que a tecnologia é eletrónica. A evolução da definição de tecnologia torna-se evidente ao perguntar a pessoas de diferentes gerações e ambientes culturais. A geração mais nova tem uma definição que inclui exemplos como sofisticados sistemas de realidade virtual. Em contraste, alguém mais antigo e/ou sem acesso a estas tecnologias mais evoluídas, falará de máquinas de calcular e telefones, ou talvez azenhas. Se pudéssemos continuar esta entrevista numa viagem no tempo, passaríamos por respostas como “o motor”, “a eletricidade”, e, mais atrás ainda, “a roda” e “o fogo”. O que têm em comum estes exemplos? Todos eles são ferramentas que marcaram avanços tecnológicos e que proporcionaram um salto de paradigma e, a partir daí, o conhecimento sobre como as usar foi sendo transmitido. Então, como qualquer pessoa que aprende algo novo, naturalmente, haverá quem questione e tenha a sua própria opinião sobre a utilidade de cada tecnologia. Eventualmente, essa pessoa irá moldar a ideia até que esta se torne mais adequada às suas necessidades.
Hoje, as nossas ferramentas de trabalho são a tecnologia eletrónica e os dispositivos (computadores portáteis, smartphones, tablets), portanto, é normal que estes desempenhem um papel central na discussão e formulação de novo conhecimento. Queremos simplificar o nosso trabalho, encontrar novas formas de lazer e mais sofisticadas estratégias de segurança pública. Decerto que já ouvimos a expressão “todos querem reinventar a roda”. E é esse desejo de reinventar algo que proporciona as diversas iterações, catalisando a evolução. Se não tivéssemos este desejo de tornar o mundo cada vez mais conectado, provavelmente não haveria tantos esforços para desenvolver a Internet e a torná-la cada vez melhor, mais útil e mais presente.
Somos membros de uma sociedade, somos utilizadores da tecnologia. Muitos de nós estamos, inclusive, integrados na comunidade científica. Assim, temos um papel ativo na evolução da tecnologia. Fazemos parte de uma enorme experiência de utilizador. A toda a hora os nossos dados são recolhidos e somos sujeitos a testes, ainda que não nos apercebamos disso. O simples facto de utilizarmos um telemóvel permite que este setor evolua ao estudar o nosso padrão de utilização. Não há forma mais genuína de aprender se não estudando os outros. Então, todos os ciclos de iterações de uma ideia têm por base aquilo que foi a nossa experiência. As nossas opiniões e sugestões de melhoria quase que já não precisam de ser ouvidas, elas são deduzidas pelos nossos tempos de resposta e erros. Desta forma, são introduzidas melhorias ao conceito anterior. Estas voltam a ser testadas, entrando novamente no ciclo.
Na realidade, um telemóvel será sempre um telemóvel. Podemos tornar a interface mais apelativa, melhorar a acessibilidade, aumentar a capacidade de processamento, mas este dispositivo, quando reduzido ao essencial, continuará a satisfazer a necessidade inicial – a comunicação. Quando pensamos num telemóvel, vem uma imagem clara à mente, existe uma conceção ao nível da aparência geral e das suas capacidades. Contudo, isto não é mau. Significa que encontrámos uma solução estável que responde à necessidade inicial e que, com a sua evolução, passou a fazer muito mais do que aquilo que era inicialmente pedido. Tentando fazer o exercício de reinventar a roda, apercebemo-nos do entrave da criatividade quanto ao conceito de um telemóvel. Não é com facilidade que temos uma ideia completamente fora da caixa para um novo dispositivo. Então deixo o desafio: imaginem um telemóvel, sem que este tenha de ser retangular e sem as limitações atuais. Será que o conceito atual é a única solução ergonómica, apelativa e tecnologicamente possível? Pegando num exemplo mais simples, um botão será sempre um botão até que alguém o reinvente. Mas por que o haveriam de reinventar? Estamos perfeitamente confortáveis com a utilização de um botão tal como ele é.
“Porque é que haveria de ser diferente?” Esta é a questão mais típica de um paradigma. Há séculos atrás, as pessoas também faziam essa mesma questão quando colocadas perante a hipótese de a Terra não ser o centro do universo. “A Terra é o centro do Universo. Porque é que haveria de ser diferente?” Podemos imaginar alguém da época dizer. No entanto, houve quem achasse que podia e devia ser diferente e alterou este pedaço de conhecimento. A reação dos restantes não foi a mais bem-vinda. Acontece que, quando rompemos com um paradigma, é normal surgir desconforto e rejeição quanto à nova ideia. Os paradigmas do conhecimento também ocupam espaço na nossa zona de conforto.
Um outro aspeto que pode ser percecionado, especialmente na área da tecnologia e informática, é a lacuna entre a definição de “tecnologia de ponta” para o público em geral versus a mesma definição para órgãos ligados às Forças Armadas ou a entidades governamentais. Desde a tecnologia por detrás de um forno micro-ondas até àquela que deu origem à atual Internet, damos conta da mudança de público-alvo. Primeiro, desenvolvem-se os projetos com vista à segurança nacional, tendo as Forças Armadas como principal cliente. Só depois, quando estas tecnologias deixam de acompanhar as necessidades, é que os produtos são lançados ao público geral. Parece haver sempre uma segunda intenção escondida, uma hierarquia de prioridades. Claro que esta hierarquia pode fazer sentido quando se trata de projetos secretos ou conhecimento associado, por exemplo, à medicina. Outras áreas do conhecimento são simplesmente demasiado sensíveis para estarem ao alcance de todos. Surge aqui uma questão de segurança e moral.
A evolução da tecnologia e da ciência atingiu uma velocidade extraordinária, permitindo a atualização do paradigma praticamente todos os dias. Ao mesmo tempo, cada vez há mais gente a investigar as mais diversas áreas do conhecimento, a dar a sua contribuição para a comunidade, aumentando o fluxo de informação. Diferentes disciplinas trabalham em equipa, havendo agora relações de mutualismo entre setores que à primeira vista parecem não estar relacionados. Ainda assim, existem alguns campos do conhecimento que não conseguem acompanhar toda esta evolução, talvez por estarem enraizados em paradigmas muito resistentes à mudança. À conversa com uma colega de Direito, apercebi-me que o Código Civil não abrange questões sobre crimes tecnológicos nem crimes online. Mundialmente, as leis que dizem respeito ao uso (ou abuso) da tecnologia ainda estão numa fase de desenvolvimento, havendo uma multitude de brechas e situações para as quais não há qualquer legislação forte. Resta-nos usar a moral e a ética para avaliar os nossos atos, o que deixa à responsabilidade de cada um de nós a criação de um ambiente seguro nesta nova realidade. Não é uma tarefa fácil e o laço de confiança já foi quebrado há muito tempo.
Para terminar, relembro o episódio “Quarantine”[1] da série The Twilight Zone (Quinta Dimensão), de 1986, no qual um importante engenheiro, Matthew, é colocado num sono criogénico após o diagnóstico de uma doença, que, no seu tempo, era incurável. Matthew acordou três séculos mais tarde (no ano 2347), num mundo futurista. Mas este mundo não tinha lugar para carros voadores, não existiam futurísticas cidades nem evoluídas tecnologias. Era uma aldeia simples, rural, ligada à natureza e aos poderes da mente. A evolução deu-se ao nível do Humano e da sua mentalidade e capacidade cerebral. Matthew ficou surpreendido, o que via não correspondia à sua conceção de “futuro”. A sua cura consistiu numa intervenção cirúrgica sem qualquer recurso a anestesias nem ferramentas. Não houve dor. Bastaram capacidades psíquicas e um movimento de mãos.
Questiono quanto tempo levará até que regressemos ao início do ciclo. Encontramo-nos numa encruzilhada de possíveis caminhos de evolução. Podemos seguir o sonho da cidade do futuro, enchendo as nossas vidas de robots, assistentes virtuais, inteligência artificial e hologramas. Ou podemos escolher um caminho sustentável, dar um passo atrás e voltar às raízes dos nossos antepassados ligados à natureza. Existem infinitas possibilidades, todas elas válidas e promissoras, desde que mantenhamos os nossos valores bem presentes. Independentemente do rumo que a evolução tome, existirá sempre um elemento em comum nestes futuros paradigmas – a vontade de entender o mundo que nos rodeia. Iremos sempre continuar a descobrir mais, a ir mais longe, a filosofar sobre a mais metafísica das questões. É essa a natureza humana. É essa imagem que, por mais camadas que coloquemos por cima, nunca desaparecerá. Afinal, não mudámos assim tanto. Continuamos curiosos e competitivos tal como na pré-história. Apenas jogámos com as posições e formatos das peças na nossa cadeia de valores.
[1] – “Welcome to Winfield/Quarantine” – The Twilight Zone (IMdB)
Excelente ! muito obrigado !
Muito obrigada, Dona Esperança! 🙂