Ao longo dos séculos várias foram as motivações que despoletaram e catalisaram o desenvolvimento das ligações interculturais que se foram estabelecendo em todo o mundo. Ainda que este tão jovem empreendimento humano tenha dotado a nossa espécie de inegáveis poderes, também adornou este nosso último ano de inolvidáveis prejuízos. Seria de gargantuesca dificuldade uma tentativa de prefigurar os exatos contornos do meio socioeconómico no futuro próximo, face às ameaças da atual pandemia; mas a História, enquanto conjunto dos acontecimentos que acompanharam a espécie humana, tem atributos cíclicos, e, por essa mesma razão, vale a pena relembrá-la.
Autoria: Tomás Oliveira, LMAC (IST)
A maioria das pessoas tem possivelmente encarado a mais recente crise pandémica como algo novo e com dimensões sem precedentes. Afinal, se todos os dias somos bombardeados com notícias e augúrios de tão infausta natureza, o que pensar senão isso? Num mundo nunca antes tão globalizado, é uma verdade quase indiscutível que igualmente nunca terá sido tão fácil um problema desta índole rapidamente fugir do nosso controlo. Claro que a ciência, engenharia e tecnologia que agora temos são sempre fiéis auxiliares na resolução de uma crise causada por um vírus, nomeadamente no que à procura por uma vacina diz respeito. Mas foi a mesma ciência, engenharia e tecnologia que, ao nos permitir alcançar um mundo verdadeiramente globalizado, também nos traíram. É assim justo dizer que o início da pandemia foi, de certa forma, a fonte de grandes e catastróficas mudanças que conduziram a sociedade a uma quebra do status quo.
Não se tratará, no entanto, de um problema novo: ao longo dos 200 milhares de anos em que a nossa espécie deambulou por este planeta, a natureza constantemente incutiu desafios à Humanidade. O ser humano passou por crises epidémicas, bélicas, e, especialmente, de escassez de alimentos. É a prosperidade que é a novidade, não a catástrofe. Mesmo desde a Revolução do Neolítico há 12.000 anos, ou, considerando tempos ainda mais recentes, como desde a invenção da roda na Suméria, aproximadamente em 3500 a.C., ambos momentos fulcrais que pressagiariam o início da civilização, a Humanidade enfrentou desastres diversificados. A título de exemplo, vale a pena referir o surto epidémico da Peste Negra, cujo início no século XIV no continente Asiático terá facilmente dado ímpeto a um diferente paradigma na Europa apenas alguns anos depois. Para não falar ainda do vírus da varíola e da bem mais recente gripe espanhola, apesar de deixada no esquecimento por muitos.
Globalização, tal como é definida no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, é o “fenómeno ou processo mundial de integração ou partilha de informações, de culturas e de mercados”. Atente-se, nesta clarificação do conceito, ao uso do termo “mercados”. Este último é um conceito-chave na história da globalização, enquanto grande motivador geral.
Foi nos seus livros “Teoria dos Sentimentos Morais”, de 1759, e “A Riqueza das Nações”, de 1776, que o filósofo e economista escocês Adam Smith introduziu o conceito de “mão invisível”, termo que descreve a forma como as ações de uma pessoa motivada apenas por interesse próprio acaba por incutir impactos benéficos sobre a sociedade. Esta mão metafórica é a força de mercado que cria uma correspondência “mágica” entre procura e oferta, e, como tal, encontra-se intrinsecamente relacionada com o comércio em geral, podendo até dizer-se que foi nela que se baseou grande parte do caminho elaborado até agora, no que à globalização diz respeito.
As trocas comerciais em grande escala começaram com a criação, no século I a.C., das rotas da seda, um conjunto de vias de comércio que pela primeira vez tornaram possível a compra de seda pela Europa ao Extremo Oriente. A par das rotas da seda, as rotas das especiarias, criadas aproximadamente oito séculos depois, aprimoraram as conexões comerciais entre a Europa e a Ásia, já previamente definidas, ao criar vias adicionais para comércio de várias especiarias.
Já no soçobrar destas vias de comércio, em 1453, Constantinopla, que atualmente toma o nome de Istambul, passou do domínio do Império Bizantino para o controlo do Império Otomano. Foi com a conquista desta cidade que as rotas já referidas, estabelecidas vários séculos antes, deixariam de abastecer os Europeus. Não será, então, de surpreender que a conquista de Constantinopla, aliada à Revolução Científica que se começou a verificar nesta altura, tornando a navegação marítima mais eficaz e eficiente, tenha conduzido a Europa à Era dos Descobrimentos. Face a este novo entrave e dotados da mão invisível e do conhecimento e tecnologia necessários, os europeus deram assim asas à sua imaginação e descobriram uma maneira de explorar terras que outrora lhes eram desconhecidas após a imposição do Império Otomano.
Porém, a globalização propriamente dita só se iniciou no século XIX, com a Primeira Revolução Industrial e a associada invenção da máquina a vapor a propiciar as condições para um crescimento económico nunca antes visto. Considera-se que este foi o verdadeiro nascimento da definição mais usual de globalização, dado que só a partir deste momento as exportações passaram a constituir uma percentagem relevante do produto mundial. Pouco tempo depois iniciou-se a Segunda Revolução Industrial, já nos finais do século XIX, que impulsionou ainda mais o setor industrial com o uso da eletricidade e do gás, produzindo no seu final o automóvel e até o avião. Este crescimento repentino na produção de bens e na globalização teve, contudo, alguns obstáculos, nomeadamente as duas Grandes Guerras Mundiais, que, ao provocarem dezenas de milhões de vítimas mortais e outros incalculáveis danos imateriais e materiais, inexoravelmente acabariam por estancar o crescimento do grau de abertura do mundo.
Apesar desta regressão no estado do mundo, a Terceira Revolução Industrial, que fortaleceu de modo diferente a conexão entre todo o mundo através do computador e da Internet, e aquela que é considerada por alguns a Quarta Revolução Industrial, já neste século, que por sua vez nos trouxe a Inteligência Artificial e a robótica, transformaram, finalmente, o nosso mundo numa sociedade verdadeiramente interligada. Foi esta última grande revolução paradigmática que metamorfoseou por completo os dias de hoje, conduzindo o mundo ao apogeu do intercâmbio de culturas e ideias. Conhecer alguém deixou de estar obrigatoriamente associado a algo presencial, assim como conhecer uma determinada cultura deixou de estar necessariamente associado a uma viagem de avião. As novas tecnologias não só permitiram uma maior comodidade na forma como vivemos, como também vieram a permitir uma maior segurança em situações ameaçadoras, tal como no meio de uma pandemia.
E depois de todos estes séculos de evolução no demoroso processo de mundialização chegamos a 2020. A mais recente pandemia alterou de imediato a forma como trabalhamos, comercializamos, convivemos, viajamos e, em suma, vivemos. Não só indiretamente, por motivos financeiros e económicos, mas também e principalmente porque grande parte destas conexões interculturais arraigadas no mundo moderno enfraqueceram, como corolário da pandemia. Mas, como vimos, há uma importante lição a ser retirada da história da globalização: o mundo, de uma forma ou de outra, adapta-se. Tal como os Europeus encetaram os descobrimentos, e em particular, tal como os Portugueses descobriram o caminho marítimo para a Índia, face aos entraves provocados pela conquista de Constantinopla, a sociedade deverá ter eventualmente a oportunidade de encontrar novas formas de expandir a troca comercial e cultural.
O desafio que temos em mãos não será fácil de superar, mas não é algo essencialmente novo. A pandemia poderá ser um atentado à globalização, mas com as novas tecnologias esse efeito é mitigado. E, como sempre, dispomos de uma mão invisível, ou, em tempos de pandemia, de um cotovelo invisível, que nos encaminhará para um futuro melhor.