Será possível ter “comboios a cada 3 minutos” após obras na linha entre Roma Areeiro e Braço de Prata, diz o Secretário de Estado das Infraestruturas

Autoria: João Carranca (LEEC)

O PFN (Plano Ferroviário Nacional) é o documento de referência estratégica do governo que agora cessa funções para o futuro da ferrovia nas próximas décadas. O Diferencial sentou-se com Frederico Francisco, Secretário de Estado das Infraestruturas e Adjunto do Primeiro-Ministro e alumnus do IST, que coordenou a elaboração do PFN quando ainda era adjunto no gabinete de Pedro Nuno Santos, para discutir os detalhes deste documento e o futuro da ferrovia em Portugal e na Europa.

Para além dos grandes projetos conhecidos do público, como a linha de alta velocidade entre Lisboa e Porto, o PFN contém também longas páginas dedicadas à expansão e remodelação das linhas suburbanas da AML(Área Metropolitana de Lisboa), usadas diariamente por muitos estudantes do IST e de toda a Universidade de Lisboa, e a uma nova travessia ferroviária sobre o Tejo, com grande impacto nos tempos de viagem para todo o sul do país [1]. Nesta entrevista, esclarecemos os detalhes de todos estes projetos e outras questões relevantes.

Alta Velocidade Lisboa – Porto: Custos, Comparticipação Europeia e operação da linha

O custo total do projeto tem sido apontado como próximo dos 4,5 mil milhões de euros, valor que o Secretário de Estado confirma, com uma comparticipação de fundos europeus a rondar os 20%. Frederico Francisco destaca, no entanto, que essa percentagem é “Para já.”

Aquilo que se fez agora foi uma primeira candidatura ao Connecting Europe Facility. Na verdade, já fizemos duas. Uma para 730 milhões de euros e outra para cerca de 140 milhões de euros. Os primeiros 730 fazem parte do pacote Coesão, que está atribuído exclusivamente a Portugal. Mas todos os anos abrem as chamadas para candidaturas e Portugal, todos os anos, pode tentar, numa base competitiva, obter mais financiamento. Portanto, estes 730 milhões de euros para a primeira fase são aquilo com que nós contamos como estando garantido.”

Considera ainda, numa nota otimista, que, com base na “grande qualidade e grande pertinência” do projeto, a probabilidade de ser conseguido mais algum financiamento é elevada, mas releva que alguns níveis de comparticipação que já foram sugeridos na ordem “de 70% a 80%”, dificilmente serão atingidos. 

Uma questão que surge perante isto é como será financiada a restante porção do projeto: “Como isto vai ser feito em regime de concessão, o que não vier dos fundos europeus virá do empréstimo do Banco Europeu de Investimento, com o qual também já houve diálogo, e depois haverá financiamento do concessionário privado, obtido junto da banca privada.” Quando a linha estiver operacional, será cobrada uma taxa de infraestrutura aos operadores de linha, que “gerará uma receita significativa e que permitirá cobrir uma percentagem não desprezável” do investimento base. O Secretário de Estado deixa, no entanto, nota de que  “não há nenhum sítio do mundo onde uma infraestrutura deste tipo seja lucrativa, onde as receitas geradas pelo serviço paguem o investimento na própria infraestrutura. A análise que se faz é que isto gera um conjunto de benefícios económicos para a sociedade como um todo que largamente ultrapassam o investimento.” 

Sobre as futuras operadoras da linha, com a entrada em vigor do quarto pacote ferroviário europeu [2], a partir do momento que a linha esteja aberta, “qualquer operador pode fazer um pedido para operar na linha”, não havendo lugar a concurso. Admite ainda que “é provável que apareçam outros operadores interessados em fazer comboios na linha Lisboa – Porto, porque é um mercado que é muito atrativo, mas isso é algo que encaramos com naturalidade, sendo certo que o operador português, a CP, à partida será sempre o operador de referência”.

Garante que não haverá entraves à concorrência e lança previsões em relação ao preço de bilhetes: “A concorrência está aberta, ela pode existir. E em matéria de preços, podem existir sempre vários segmentos de mercado, sendo certo que, pelas análises e pelos estudos que se fez, um operador conseguirá ser rentável com preços de bilhetes equivalentes ou mesmo inferiores àqueles que se praticam atualmente no Alfa, da CP.”

Uma das grandes esperanças que há para este projeto é que consiga retirar quota de mercado ao automóvel, que atualmente é o meio de transporte mais utilizado para fazer o percurso Lisboa – Porto por larga margem. Frederico Francisco já tem previsões quanto à potencial transferência de quota modal mas avisa que não se trata de nenhuma solução milagrosa que possa retirar o “trono” ao carro. 

“Aquilo que os estudos de procura indicam é a transferência de cerca de 10 milhões de viagens por ano da rodovia para a ferrovia. Agora, 10 milhões de viagens por ano parece-se muito, mas na verdade é uma gota no oceano. Estamos a falar de, quanto muito, transferir cerca de 10% do tráfego rodoviário no percurso Lisboa – Porto para a ferrovia”

Alta Velocidade Lisboa – Madrid nas “Três grandes prioridades”

A ligação Lisboa – Madrid também tem sido tema de discussão nos últimos meses, com uma parte significativa da oposição, em particular figuras do PSD como Carlos Moedas, Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, a defender que assegurar uma linha de alta velocidade direta entre as duas capitais é até mais importante que a ligação Lisboa – Porto. A posição do responsável pelas infraestruturas é, neste sentido, totalmente contrária, tendo já afirmado várias vezes que, até pelas previsões de volume de tráfego (quase 10 vezes maiores nos estudos do governo sobre a linha Lisboa – Porto), não tem lógica colocar Lisboa – Madrid no topo das prioridades. Admite no entanto que, na sua opinião, “a ligação a Madrid é mais prioritária do que, por exemplo, reabrir a linha do Douro até Barca d’Alva” e que está “nas três mais prioritárias” entre todos os projetos ferroviários nacionais. Nega também que nada esteja a ser feito em relação à ligação.

“Está em construção um troço de linha nova entre Évora e Elvas, que faz parte da futura ligação Lisboa – Madrid. E, na verdade, depois de construída essa ligação, uma nova travessia do Tejo passa a ser a única peça importante em falta do lado português para que essa ligação se possa fazer porque, com esta nova linha entre Évora e Elvas e uma nova travessia do Tejo, o tempo de viagem entre Lisboa e a fronteira passa a ser inferior a uma hora e meia. Depois, o que é necessário é que se complete a linha do lado espanhol para que seja possível viajar entre Lisboa e Madrid em menos de quatro horas”

Nova Travessia Ferroviária sobre o Tejo reduziria em 30 minutos ligações a todo o Sul

Um dos pontos menos discutidos do PFN mas que mais alterações estruturais traz ao sistema ferroviário nacional como um todo é a proposta de uma nova travessia ferroviária sobre o Tejo. Trata-se de um projeto que, em teoria, muda substancialmente os tempos de viagem entre Lisboa e todo o sul do país, com especial impacto nos tempos de viagem em todas as ligações à margem Sul, que ficariam 30 minutos mais curtas

“Uma nova travessia do Tejo em Lisboa é uma coisa que pode ter uma grande importância a nível dos suburbanos de Lisboa, porque reduz muito o tempo de viagem entre a margem norte e algumas zonas da margem sul, em particular Setúbal, a Moita e o Barreiro, que neste momento não tem nenhuma ligação ferroviária direta para Lisboa, e que são municípios, especialmente o Barreiro, que têm uma densidade populacional muito significativa.” 

Para além disso, de acordo com o Secretário de Estado, o projeto contribui para diminuir em cerca de meia hora o tempo de ligação de Lisboa ao Alentejo e ao Algarve. Não existe, no entanto, nenhuma previsão de custos e, neste momento, “não está tomada nenhuma decisão sobre a construção dessa ponte”.

“Quando isso se vier a decidir, é preciso decidir se ela é só ferroviária ou só é também rodoviária. Sendo ferroviária, quantas vias é que tem? E isso implica uma ponte diferente, com custos diferentes e um projeto diferente.”

Bitola ibérica e migração para a bitola europeia

A bitola (distância entre carris)  ibérica é regularmente retratada como um dos principais entraves à harmonização das ligações ferroviárias com o resto da Europa, por ser incompatível com a bitola europeia. A utilização da chamada travessa polivalente permitirá uma transição relativamente suave entre as duas bitolas mas, apesar disto, a posição do governo é que a transição de bitola ibérica para europeia nunca acontecerá na totalidade e não é uma preocupação significativa. 

A migração parcial, ou, se quisermos, a entrada da existência de linhas de bitola europeia em Portugal, é uma coisa que pode vir a acontecer para o final da próxima década, início da década de 2040, tendo em conta os planos que existem atualmente em Espanha. Não faz sentido construir linhas de bitola europeia em Portugal que não estejam ligadas a outras linhas de bitola europeia do outro lado da fronteira. Esse é sempre o princípio, o princípio da continuidade das redes.”

Frederico Francisco explica, no entanto, um pouco como seria o processo de transição da bitola.

Aquilo que se estima é um custo de cerca de 2% do custo do projeto da construção inicial da linha. Em termos de como é que se operacionaliza essa migração, obviamente, imagine-se, numa linha de via dupla, é necessário interromper uma das vias de cada vez, os comboios passam a circular só por uma das vias, e depois poder-se-ia fazer a migração na outra via. Portanto, sem entrar em muito detalhe, é preciso planear cuidadosamente como é que isto se faz. Em termos quer de custos, quer de prazos, estamos a falar de valores muito baixos, face ao  custo de construção da linha. Para além disso, com poucas dezenas de operários e ferramentas relativamente simples, consegue-se rendimentos de vários quilómetros de linha migrada por dia.”

Área Metropolitana de Lisboa: novas ligações e modernização das atuais

Visão para a ferrovia na AML. Fonte: Plano Ferroviário Nacional

O projeto de modernização da ferrovia na AML tem por detrás um conceito de rede que é diferente do que temos atualmente. Aquilo que existe em Lisboa são linhas ferroviárias a convergir e a terminar em Lisboa. De acordo com o governante, nós devemos evoluir “para aquilo que existe em outras cidades da Europa que são linhas de atravessamento. São linhas que ligam pontas distantes da área metropolitana atravessando o centro, que é Lisboa. E que permitem não só ligar Setúbal a Lisboa, ou Cascais a Lisboa, ou Sintra a Lisboa, ou Vila Franca a Lisboa, ou Torres Vedras a Lisboa, mas permite ligar Cascais a Vila Franca, permite ligar Torres Vedras a Setúbal, permite ligar Sintra ao Barreiro, permite fazer um conjunto de ligações de atravessamento passando em Lisboa, que é onde está o centro mais denso, que é onde está o grande volume de procura. Em vez de termos uma estrutura radial, passamos a ter uma estrutura diametral.”

Torres Vedras – Setúbal

O propósito desta ligação é resolver o “problema do acesso da linha do oeste a Lisboa”. O Secretário de Estado das Infraestruturas refere que o facto de a ligação da Linha do Oeste a Lisboa implicar fazer um grande desvio até ao Cacém, na Linha de Sintra, “é a razão pela qual os tempos de viagem de comboio a partir de Mafra, Torres Vedras ou das Caldas da Rainha para Lisboa não conseguem ser competitivos com o automóvel.”  E, portanto, ter uma ligação mais direta a Lisboa, que permitisse reduzir os tempos de viagem em cerca de 20 minutos ou meia hora, é a única forma de tornar a linha do Oeste verdadeiramente atrativa e competitiva com o automóvel. 

Em todo o caso, a ideia de base que está por trás desta ligação é encurtar as distâncias e os tempos de viagem desde a zona Oeste e desde a zona Norte da área metropolitana, até Lisboa e depois, com as travessias ferroviárias sobre Tejo, tanto a nova como a atual, ligar também à margem Sul da área metropolitana de Lisboa.”

Quanto à passagem por Loures, a justificação prende-se com o facto de ser um centro urbano de grande densidade populacional, que atualmente não tem nenhum serviço de transporte de grande capacidade. A ideia não é, no entanto, inteiramente consensual. 

“Não é óbvio que a melhor forma de entrar em Lisboa seja por Loures. Há quem defenda que ela deve ir em direção à Gare do Oriente, por exemplo. Podem existir outras hipóteses. E, portanto, isto são coisas que ainda estão um pouco em aberto. Temos que aguardar pelo final da avaliação ambiental estratégica do Plano Ferroviário Nacional para ver também o que é que ela diz sobre isto.”

Cascais – Azambuja

Este projeto pretende ligar a atual Linha de Cascais à Linha de Cintura (Sete Rios, Entrecampos, etc) até à Azambuja, passando por todas as estações de comboio chave do centro de Lisboa, resolvendo uma das atuais grandes limitações da Linha de Cascais: parar no Cais do Sodré. Sobre como é que isto se processa, Frederico Francisco diz que a ideia mais óbvia é fazer a conexão entre as duas linhas em Alcântara. Até já existiu um projeto para isso, desnivelando a linha em Alcântara e fazendo uma ligação direta da linha de Cascais à linha de Cintura, para permitir que os comboios que venham de Cascais e de Oeiras possam continuar a terminar no Cais de Sodré, alguns deles, mas outros a ir para Entrecampos, depois até à Gare do Oriente e, porventura, seguir mais para Norte, se for caso disso.” Sobre as dificuldades técnicas de um projeto desta envergadura em Alcântara, diz que é “uma coisa que se faz. Já existiu o projeto, já teve declaração de impacto ambiental. Não é uma obra barata, mas é uma coisa que se faz.”

Sintra – Setúbal

A única peça de infraestrutura nova necessária à concretização desta ligação é mesmo a nova travessia ferroviária sobre o Tejo, de resto “é só uma questão de organização dos horários e de organização operacional”. Em conjunto com a ligação Torres Vedras – Setúbal, seria o eixo de ligação entre os grandes subúrbios da margem Norte e da margem Sul, passando sempre pelas estações-chave do centro Lisboa, enfatizando novamente a ideia de ligações estilo “arco de circunferência”.

Quadruplicação da linha entre Roma Areeiro e Braço de Prata

As limitações do atual troço de linha entre estas duas estações são descritas pelo Secretário de Estado como um dos grandes estrangulamentos ao atravessamento de Lisboa de comboio, porque naquela componente só há duas vias e, quer a Montante, quer a Jusante, existem quatro vias. Para além disso, ali há uma grande densidade e uma grande diversidade de tráfego. Há várias dezenas de comboios suburbanos por hora, há comboios de longo curso a passar ali, há comboios de mercadorias”. Por essa razão, a quadruplicação da linha, traz novas possibilidades a nível de frequência de comboios, em particular os suburbanos.

“Só tendo em conta a limitação da infraestrutura, facilmente conseguíamos passar a ter ali comboios a cada três minutos.” 

É feita, no entanto, uma ressalva: “Se tivéssemos comboios para isso”.

Modernização da Linha de Cascais

Existem planos para trazer novo material circulante para a Linha de Cascais, que, do ponto de vista de muitos, precisa há já várias décadas de alguma forma de modernização. Este novo material circulante permitirá aumentar as frequências e a diversidade de opções nas viagens. 

 Tendo em conta as quantidades de material circulante que estão encomendadas, facilmente se pode evoluir para algo próximo de comboios de 6 em 6 ou de 5 em 5 minutos na linha de Cascais. Não necessariamente em toda, pode ter 12 comboios por hora até Oeiras e depois 6 até Cascais, algo desse estilo.”

Crescimento da procura por ferrovia: perspectivas de futuro

Frederico Francisco refere que o pico da procura por serviços ferroviários ocorreu há cerca de 35 anos ali perto de 1989, 1990, onde nós tínhamos quase o dobro do número de passageiros que temos atualmente”.A principal razão que aponta para a redução da procura é o aumento do acesso ao carro que se deu desde essa altura: “As pessoas não andavam de comboio na altura porque o serviço fosse melhor ou porque houvesse mais frequência. É porque não tinham alternativa. Muita gente não tinha carro.”

No entanto, é otimista em relação a um aumento de procura nos próximos anos: “Nos últimos anos, com exceção da quebra que houve em 2021 por causa da COVID, estivemos numa trajetória de crescimento da utilização do comboio. Se continuarmos a seguir a tendência atual é provável que dentro de cerca de uma década nós voltemos a atingir níveis próximos daqueles que existiam antes.”

Sobre de onde vem esse crescimento, diz ocorrer “claramente em linhas suburbanas” especialmente na AML.

O futuro da ferrovia na Europa

Apesar da entrada de novas empresas, independentes dos operadores tradicionais que dominam a Europa, no mercado ferroviário, o Secretário de Estado das infraestruturas acredita que estes últimos continuarão a ser, de uma forma ou de outra, as forças dominantes ao longo das próximas décadas, algo que “obviamente não impede que haja espaço para outros operadores e para haver até uma sobreposição de operadores”.

Demonstra-se confiante em relação à capacidade dos projetos de alta velocidade na Europa de retirarem quota de mercado às companhias aéreas.

“É algo que tem acontecido sempre que há uma ligação de alta velocidade que consegue fazer as viagens em menos de 3 horas, as ligações aéreas, sejam low-cost ou tradicionais, praticamente desaparecem. Há uma exceção a isso, que foi Espanha, mas que também tem a ver com uma política de preços muito elevados que a Renfe sempre praticou. Porque se formos ver outros eixos, Paris – Londres, Paris – Bruxelas, Bruxelas – Amsterdão, Paris – Lyon, Roma – Milão, os voos praticamente desapareceram. Continuam a haver de forma residual e nem sequer foi preciso proibir, eles praticamente desapareceram.”

Referências

[1] Plano Ferroviário Nacional

[2] Conselho Europeu

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