Autoria: João Carranca (LEEC)
O Bar Botequim era como que um reino da fantasia, surreal em todos os seus aspetos, completamente desconectado do resto de Lisboa. Por lá passavam todos aqueles que na década de 70 eram alguém em Portugal. Escritores, políticos, pintores ou até militares. Antes da queda de Caetano, era neste pequeno bar que se pensavam os grandes esquemas e se esboçavam revoluções. Depois da revolução, passou a ser um dos grandes centros de poder político. Ministros não resistiam passar por lá noite sim noite não. Melo Antunes, figura importantíssima do pós 25 de abril e membro do Conselho da Revolução, ia ao Botequim finalizar os seus comunicados e pedir correções ortográficas. Francisco Sá Carneiro conheceu lá a sua futura parceira que levou consigo para a morte. Era um local propício às interações mais memoráveis e, acima de tudo, o maior centro cultural de todo o país. A própria Amália Rodrigues era visitante habitual.
No centro de todo este aparato estava a sua fundadora e dona, Natália Correia. Era ela quem atraía todos estas ilustres personagens e motivava gente tão fundamentalmente diferente a conviver despreocupadamente no mesmo espaço. Natália sabia acomodar “as peças do puzzle” pelas mesas e começava a dominar. A partir daí, tudo podia acontecer e materializam-se noites de festa. Por esta altura, Natália era já um dos nomes mais sonantes do meio cultural português. Uma poeta (não gostava que lhe chamassem poetisa) irreverente e provocadora por natureza. A elite intelectual do país sempre lhe teve um carinho especial. Esse carinho vinha, como é óbvio, da admiração que provocava o seu talento para a arte da palavra mas talvez derivasse mais da sua personalidade combativa e capacidade para provocar os maiores escândalos. Escreveu várias obras apreendidas pela PIDE, entre elas O Homúnculo, uma tragédia jocosa com tom de paródia que tinha como grande alvo Salazar e a ditadura. Salazar, quando soube da publicação da obra, ficou furioso. No entanto, quando lhe propuseram a detenção da própria Natália Correia, recusou liminarmente por medo do que esta poderia fazer e dos protestos que poderiam surgir. Em 1966, foi mesmo condenada a 3 anos de prisão com pena suspensa, pela publicação da Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, considerada na altura “ofensiva aos costumes”. Foi na mesma altura processada por responsabilidades editoriais na publicação das Novas Cartas Portuguesas, num processo que ficou conhecido por Três Marias. Tratava-se de um manifesto feminista que o regime imediatamente censurou e que provocou enormes protestos especialmente em França. Existe ainda outro episódio, talvez o mais marcante de todos, que solidificou o lugar de Natália na História. Em 1982, Natália era deputada, eleita pelas listas da coligação AD em 1979 quando Sá Carneiro ainda era vivo. Debatia-se o aborto. João Morgado, um deputado do CDS, advogado, chefe de família, católico e relativamente inexperiente na vida política, fez uma das intervenções mais caricatas da história da Assembleia da República, dizendo que “o ato sexual é para fazer filhos”. Natália Correia não conseguiu conter a sua fúria e foi dilacerante respondendo-lhe com um poema:
Já que o coito – diz Morgado –
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou – parca ração! –
uma vez. E se a função
faz o órgão – diz o ditado –
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.
Foi uma das primeiras grandes ativistas pelo aborto, começando uma luta que só seria ganha em 2007.
Manteve-se no parlamento até ao início da década de 90, quando começou a sentir que o fim se aproximava. Não lidou bem com a perspetiva de finalmente ter de encarar a morte. Os seus amigos mais próximos também não acreditavam verdadeiramente que Natália não duraria para sempre. Os seus últimos anos foram anos de declínio e melancolia. Para além da doença que a atormentava e lhe tirava energia, Natália lida com a perda de rendimentos e com a frustração provocada pela evolução da democracia em Portugal. O Botequim ia também perdendo influência e clientes, tornando-se uma relíquia de tempos antigos.
Na madrugada de 16 de Março de 1993, voltando do Botequim, Natália deita-se pela última vez. Foi o fim de uma vida de inconformismo e produção literária ímpar, que mudaram para sempre Portugal.