O Ano em que o Ensino Superior Morreu

Autoria: João Dinis Álvares (LEFT)

Aqui vem à luz uma das discussões mais insólitas do Ensino Superior em Portugal. O ano era 1960 e o Infante D. Henrique fazia 500 anos da sua morte. Por trás das comemorações, as Universidades de Lisboa e Coimbra discutiam e através dessa discussão conta-se a história do Ensino Superior em Portugal. Incluindo o ano em que o Ensino Superior morreu – 1537.

13 anos depois de mudar a residência real do atual Paço das Escolas, em Coimbra, para o Castelo de São Jorge, em Lisboa – lá de cima da colina, D. Afonso III olhava a cidade que ele decidira ser a nova capital de Portugal. A azáfama do dia-a-dia, mensageiros a ir de um lado para o outro, alguns barcos de pesca lá ao fundo no Tejo, o gado que ajudava as lides do povo. Perdido no breve momento de reflexão, é interrompido por um mensageiro, ofegante e atrapalhado por saber que só se deve interromper o rei apenas em caso extremo. D. Afonso pergunta-lhe do que se trata e o mensageiro fala-lhe do libelo lançado contra sua majestade, um documento onde todo o clero o acusava de quarenta e três crimes, desde a obrigação dos clérigos servirem como mão de obra para construção de muralhas, a ameaças de morte ao arcebispo de Braga e bispos de Coimbra e do Porto, ou até à nomeação de judeus para altos cargos. Expectante, passado algum tempo, recebe uma carta do próprio papa Clemente IV, com a declaração oficial de que fora excomungado e que as relações de Portugal com a Santa Igreja cessavam. O ano era 1268.

21 anos depois, o filho de Afonso, D. Dinis, restabeleceu as relações de Portugal com a Igreja, através da Concordata dos 40 artigos, um artigo onde se definiam os direitos dos católicos dentro do país. Os novos laços entre D. Dinis I e o Papa Nicolau IV levariam, passado um ano, ao reconhecimento por parte da Igreja da primeira universidade de Portugal. Assim se inicia a história do ensino superior na ponta ocidental da Europa. O ano era 1290, ano em que toda a população judia fora expulsa de Inglaterra sob as ordens de Edward I e durante o qual Beatrice Portinari, a mulher que guia Dante Alighieri no Paraíso da Divina Comédia, morre.

Nessa universidade ensinar-se-iam Artes, Direito Canónico, Direito Civil e Medicina, em edifícios ao redor do Largo do Carmo, em Lisboa. Porém, como depois o Infante D. Henrique se viria a queixar, o ensino superior estava numa fase ainda frágil, tendo a universidade sofrido várias mudanças que hoje em dia seriam impensáveis. «De 1290 a 1377 por duas vezes a Universidade foi transferida para Coimbra onde esteve primeiro 30 anos e depois 23; outras tantas vezes voltou para Lisboa. […] A partir de 1377 a Universidade permaneceu ininterruptamente em Lisboa até 1537.» Esta última estadia mais prolongada em Lisboa deveu-se a uma «carta de 3 de outubro de 1383», onde o «Mestre de Aviz determinou que a Universidade permanecesse perpètuamente na cidade de Lisboa.»

Todas estas informações aprendi enquanto lia a correspondência entre o Senado de Lisboa e o Senado de Coimbra, aquando das comemorações do 5º centenário da morte do Infante D. Henrique, em 1960. Correspondência talvez seja uma palavra demasiado suave para descrever a agressividade que se via nas cartas que os Senados das Universidades de Lisboa e Coimbra trocaram, todas redigidas em Assembleias Extraordinárias. Muitas das cartas, por parte do Senado da Universidade de Lisboa de então, eram assinadas em primeira pessoa por Marcello Caetano, que se viria a tornar no último Presidente do Conselho do Estado Novo. Ao longo deste ano de 1960, as relações entre ambas as Universidades deterioraram-se, encobertas pelas celebrações simbólicas do Infante D. Henrique, aquele que «à roda de 1418, pela primeira vez teve o título de “Protector da Universidade”». Foi por este mesmo título que as universidades se opuseram: a Universidade de Lisboa decidiu que faria as celebrações do seu “Protector” em Lisboa, ao passo que a Universidade de Coimbra acreditava que a história estava do seu lado, que o Infante D. Henrique era na verdade o seu “Protector”. Cartas chegaram a ser mandadas por parte de Marcello Caetano a António de Oliveira Salazar, onde explicava a situação a este, numa tentativa de preservar a sua boa imagem perante o Ministro.

A inimizade acesa entre dois dos Senados mais conceituados de Portugal teve origem na bondade e visão do Infante D. Henrique. E esta começou aquando do “discurso proferido pelo Prof. Marcello Caetano na abertura solene das aulas no lectivo de 1959-1960”, que este inicia da seguinte forma:

“A Universidade de Lisboa, ao ser restaurada em 1911, recebeu deste modo uma herança espiritual a que tem procurado manter-se fiel e que há-de continuar a honrar e a acrescentar.”

A Voz, 17/X/1959

O Diário da Manhã – 17/X/1959 transcreve outra parte do discurso: “Pertence-nos participar no 5º. Centenário da morte do Infante D. Henrique que o Governo se prepara para comemorar tão solenemente no ano de 1960. E pertence-nos por direito próprio. É que o Infante D. Henrique foi, de 1418 até ao seu falecimento, protector da Universidade de Lisboa.”

O motivo pelo qual o Infante fora nomeado “Protector” tem a ver com um problema que ainda hoje enfrentamos na maior parte do Ensino Superior, nomeadamente no próprio Instituto Superior Técnico, que são instalações de ensino precárias: desde 1418 a 2022, mais de 600 anos passados, e as queixas dos estudantes permanecem as mesmas. «a 12 de Outubro de 1431 o Infante, considerando que a Universidade “não tinha casas próprias em que lessem e fizessem seus actos escolásticos de todas as ciências, antes andava sempre por casas alheias e de aluguer como cousa desabrigada e desalojada”, fez-lhe doação de umas casas que comprou no “bairro dos escolares” e onde mandou que se dessem as sete artes liberais: “scilicet[1], gramática, lógica, retórica, aresmética[2], música, geometria e astrologia”, além da medicina, da teologia, do direito canónico[3], da filosofia natural e moral e do direito civil.» Em troca, a Universidade teria de pagar na moeda que o próprio Infante prescreveu:

«Em cada huum anno por dia de S. Maria da Anunciaçam se ajuntem todos nas ditas casas, e que huum mestre ou doctor, […] faça huuma breue proposiçom em como querem hijr ordenadamente a S. Maria encomendarme a Deos […] e dali se vaão todos em boa hordem ao dito Orago, e digam hi huma missa solepnemente officiada em louuor da Madre de Deos aa qual me encomendem todos devotamente que ella seia sempre rogadora por mim asi na vida, como na morte […] e depois da minha morte se continoe assi cada huum anno para sempre».

Ou seja, no dia 25 de março, uma missa era celebrada na Igreja da Graça em honra à doação do Infante D. Henrique à Universidade que, na altura, se chamava de Lisboa. Nas correspondências entre os Senados, até aqui ambos concordam. Porém, na carta que o senado de Lisboa enviou ao de Coimbra em março de 1960, menciona-se o momento de discórdia, que depois incitou a resposta do Senado de Coimbra em forma de um livro, um documento extenso onde eles explicam a história da universidade que D. Dinis fundou, desde os seus primeiros dias até ao ano de 1960. Este momento de discórdia vem aquando do ano de 1537, ano em que “a Universidade medieval deixou de existir em Lisboa”, o ano em que o ensino superior em Portugal morreu momentaneamente. Há várias cartas do então rei de Portugal, D. João III, em que este menciona que vai fundar uma “nova” universidade em Coimbra, nesse mesmo ano, factos nos quais o Senado de Lisboa se apoiava. Por outro lado, D. João menciona que a nova Universidade «”continua a ser detentora do mesmo selo [que a Universidade de Lisboa]”. O selo universitário, elemento por sobre todos individualizador da corporação, que era de prata e pesava “hũ marco e quatro onças e çinco reis e meo”, veio para Coimbra com a Universidade». O corpo docente foi quase todo substituído, nesta transição, mas o regulamento da Universidade em Coimbra permaneceu o mesmo que se mantinha vigente na Universidade em Lisboa, por ordem do próprio rei. Era nesta “transição” que o Senado de Coimbra se escorava. De um lado, Lisboa apoiava-se na morte temporária da Universidade da qual Infante D. Henrique era protetor e que renasceu em 1911, enquanto que Coimbra apoiava a transição da Universidade de Lisboa para Coimbra, permanecendo esta a mesma, apenas tendo mudado de sítio, tal como acontecera anos antes. Esta nova universidade, que D. João instaurara em Coimbra, foi abençoada pelo Papa Paulo III, na Bula cum attente considerationis.

A correspondência entre os Senados foi trocada ao longo de todo o ano de 1960 e as celebrações do 5º centenário da morte do Infante foram tão extensas que José Caeiro da Mata escreveu uma série de livros sobre isso, na introdução dos quais se lê que quem quisesse “avaliar da grandeza e significado das referidas comemorações ver-se-ia obrigado a um esforço exaustivo, de êxito incerto”. A Universidade de Lisboa, no meio de outros, fez renascer a missa proferida na igreja da Graça. Mais para o final da troca das correspondências entre os Senados, é possível encontrar a última carta que Marcello Caetano enviou a Salazar, como reação ao veto da celebração da missa na igreja da Graça proferido pelo Senado de Coimbra. Aí ele diz:

«A ideia parecia cheia de gentileza e por isso a perfilhei, e por isso a aceitou o Senado Universitário e toda a Universidade. A isto se pretende opor um veto? Que outra significação pode ter essa atitude senão a de um acto de hostilidade, para não dizer de ódio, à Universidade de Lisboa e a quem a representa?»

O assunto nunca chegou a ser resolvido, sendo as últimas correspondências apenas pedidos de um Senado ao outro de que reconsiderasse as suas ações, o final de uma discussão orgulhosa. Isto tudo decorreu entre 22 de fevereiro e 12 de novembro de 1960. 

A perspetiva da história mais aceite nos dias de hoje é a de que a Universidade de Coimbra é, até aos dias de hoje, a Universidade que D. Dinis fundou e que foi transferida, em 1537, de Lisboa para Coimbra, tendo a Universidade de Lisboa nunca propriamente existido até ao início do século XX, em 1911. 

Ainda assim, a história da Universidade de Lisboa continua a prender-se com a Universidade de Coimbra. O produto de vários séculos de monarquia e monopólio do ensino superior por parte do corpo docente de Coimbra despoletaram a famosa Greve Académica de 1907, que se iniciou à volta de vários protestos e boicotes a aulas na própria universidade e que acabaram numa mobilização de cerca de 400 estudantes a Lisboa, ao Parlamento, onde apresentaram as suas queixas. A maior parte destas cingia-se com o problema de o único sítio no país onde os estudantes se podiam formar em Direito era Coimbra, criando um monopólio conservador do poder legislativo de Portugal. Isto traduzia-se, no dia-a-dia estudantil, em injustiças e no menosprezo da opinião dos estudantes pois eles eram obrigados a estudar lá: era a sua única opção. A 27 de março de 1907, no jornal O Século, «a Faculdade de Direito não tem concorrentes. Essa falta de concorrência, associada a privilégios monstruosos, traz a imobilidade da consciência jurídica do País.»

«Contra esta imobilidade secular», lê-se mais à frente no jornal, «só há um remédio: a criação da Universidade de Lisboa – para obrigar os lentes da Faculdade de Direito de Coimbra a andarem, falarem, pensarem, conviverem e ensinarem como […] os lentes das escolas superiores da capital».

Assim, o governo franquista teve mais um motivo para se iniciar a construção de uma universidade na capital.

Em 1911, enquanto a Mona Lisa era roubada do Louvre, a Universidade “Clássica” de Lisboa era criada, tendo como faculdades a de Medicina (anterior Escola Médico-Cirúrgica), a de Ciências (anterior Escola Politécnica) e a de Letras (anterior Curso Superior de Letras). Simultaneamente, o Instituto Industrial e Comercial de Lisboa dividia-se no Instituto Superior do Comércio e no Instituto Superior Técnico, nenhum destes integrando a Universidade de Lisboa.

Apesar do Instituto Superior Técnico ter sido oficialmente criado nesta altura, dirigido por Alfredo Bensaúde, a sua posição atual na Alameda só foi estabelecida durante a presidência de Duarte Pacheco, em 1927, pela mão do arquiteto Porfírio Pardal Monteiro. Em documentos do arquivo, é possível ver a descrição detalhada do empréstimo de cerca de 10 milhões de escudos necessário para esta obra. 

3 anos depois da obra ser proposta, em 1930, fundou-se a Universidade “Técnica” de Lisboa, da qual faziam parte a Escola Superior de Medicina Veterinária, o Instituto Superior de Agronomia, o Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras e o Instituto Superior Técnico. Só em 2013, quase um século depois da fundação da Universidade “Clássica” de Lisboa, é que ocorre a fusão da “Clássica” com a “Técnica”, dando origem à atual composição da Universidade de Lisboa.

Escrevi este artigo com base em vários arquivos que fazem parte do Arquivo Oliveira Salazar, situado na Torre do Tombo, sem saber ao certo com que objetivo o iria escrever. Podemos olhar para ele como a história inicial do Ensino Superior em Portugal, mas o que me suscitou o interesse foi esta discussão entre os dois Senados em torno de algo tão simples quanto qual das universidades é que tinha o direito de dizer que o Infante D. Henrique era o seu protetor, e isso levou a que fosse discutida, de uma maneira escrutinada, a fundação e primeiros estágios da evolução do Ensino Superior português.

E o resultado da história foi praticamente inalterado por causa desta discussão. Há coisas que não valem a pena ser discutidas: muitas vezes podem ser reapreciadas de um ponto de vista diferente e levar ao efeito oposto de uma discussão: à união entre dois senados, duas entidades, duas pessoas. Talvez, se no 5º centenário da morte do Infante D. Henrique, se tivesse concordado que este devesse ser considerado o Protetor do Ensino Superior em Portugal, no geral, a situação ter-se-ia evitado. Mas isso são considerações à parte. Hoje, como estudante do Técnico, após ter vislumbrado um pouco da história que levou à criação desta faculdade, percebo que o Ensino Superior, desde os seus primórdios, sempre teve que lutar pela sua própria sobrevivência. No início, tivemos o Infante D. Henrique; um século depois, a Universidade foi extinta. Passados 400 anos, em 1907, os estudantes uniram-se e mudaram o rumo do país e levaram à criação da Universidade de Lisboa, da qual o Técnico faz parte. Antes quem nos mantinha vivos eram os benfeitores, porque éramos poucos. Há um século, crescemos em número e o poder passou para as nossas mãos. Agora, no meio de uma crise mundial, é mais do que altura de nos fazermos ouvir outra vez. Se não formos nós a levantar a voz, quem o fará pelos estudantes?


Referências:

[1] – Scilicet – latim para “evidentemente, é claro” – era a arte de desconstruir conceitos, explicá-los por termos mais simples.

[2] – Aresmética – versão antiquada de aritmética.

[3] – Direito Canónico – Conjunto de leis adotados pelos líderes da Igreja para o governo da organização cristã.

Bibliografia:

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