Demagogia a caminho da Casa Branca?
Quem ainda não ouviu falar de Donald Trump, o bilionário do sector imobiliário e celebridade da televisão que se prepara para ser provavelmente o candidato republicano às presidenciais nos EUA? Trump é, sobretudo, um entertainer, um homem que sabe o que tem de fazer para cativar a atenção da audiência.
Acontece que, neste caso,a plateia que o vê é o eleitorado norte-americano e o objectivo do espectáculo é a sua eleição. Ele é um produto da degradação da política norte-americana e, mais especificamente, da radicalização de um partido republicano que já não controla as suas bases. Criam uma representação distópica da realidade, incutindo medo e desconfiança, mas são incapazes de apresentar soluções para as mesmas, sendo por isso reféns do seu próprio radicalismo.
É nesse tipo de ambiente, à saída de uma crise económica e com uns media totalmente subjugados à força das redes sociais, que se geram as condições necessárias para o aparecimento de uma criatura política como Trump. É a antítese do establishment de Washington.
É o político que não é político, vem do mundo empresarial e tem uma língua afiada. Trump é um fenómeno alavancado pela Internet e pelas redes sociais.
O seu nome está quase sempre presente nas pesquisas relacionadas com a política e as presidenciais norte-americanas e uma rápida análise no Google Trends revela que o interesse em Trump apresenta uma tendência sempre crescente nos últimos anos e muito mais acentuada do que em qualquer outro candidato.
Quando se olha para as pesquisas relacionadas, enquanto para os outros candidatos grande parte das pesquisas envolvem os adversários e o partido pelo qual concorrem, Trump destaca-se com pesquisas associadas à sua riqueza, património, Twitter e esposa. A classe média que sofreu com a crise económica, mas sobretudo os trabalhadores brancos mais pobres que se vêem em trabalhos precários, vêem-no como um self-made man, alguém que está em total controlo da sua vida e idolatram-no por isso. Quando surge num comício, ele está a vender um produto, a marca Trump.
Investigar o tipo de retórica usado permite perceber por que razão o que diz pode ser tão apelativo. É narcisista, mas transmite presunção com uma autenticidade tal que persuade as pessoas que o ouvem a pensar nessa vaidade como algo fundamental na recuperação da grandeza da América (daí o slogan de campanha “Make America great again”). Mas vamos por partes:
- “Don’t” – é um dos verbos mais empregues. O uso de frases negativas é recorrente e está quase sempre associado a dois sujeitos: ‘’We” e “They”. O primeiro refere-se ao país e serve para destacar o suposto estado de fragilidade em que se encontra face a um mundo exterior mais feroz e competitivo. Serve para contrapor com a grandiosidade dos EUA dos anos 80 e 90, quando o país vivia um crescimento económico galopante e saboreava o pós-2ª Guerra Mundial e o colapsar da União Soviética.É vulgar encontrar frases que dão uma imagem de subjugação do país perante outras entidades, sejam elas países como a China, que desvaloriza a moeda para fazer concorrência desleal, como a Rússia, que tem como líder Vladimir Putin, uma figura forte que governa com mão de aço, obtendo sempre o que quer, em oposição à lassidão de Obama, ou como o Irão, que negoceia acordos nucleares e nas costas explora a credulidade do Ocidente para continuar a desenvolver armas nucleares; sejam elas movimentos ou fenómenos como a imigração e a incapacidade de controlar as fronteiras, e o terrorismo.Todas estas questões são legítimas na sua génese e não devem ser por isso desconsideradas, mas Trump pega nelas e exagera certos aspectos para gerar indignação, receio e desconfiança. “We don’t know”, “We don’t have” são elementos que repete até à exaustão. Toda esta vulnerabilidade não existe por acaso e é preciso usar o segundo sujeito como o agente do mal. “They” refere-se não só aos democratas, mas a Washington (incluindo os seus adversários republicanos nas presidenciais) que se tornou um ícone da corrupção, incompetência e inércia da política norte-americana. Trump aproveita-se da imagem já presente para cavalgar a maré de descontentamento que o povo americano sente relativamente aos seus representantes.São “eles” os culpados, os senadores e deputados que prometem mundos e fundos, mas mal chegados a Washington parecem apanhados pela apatia e amarrados aos interesses de lobbys. Trump apresenta-se como alguém livre dessas correntes. O argumento do “sou rico, sou independente e por isso não preciso de tomar acções moralmente reprováveis” cai muito bem entre as pessoas que estão fartas do clientelismo de Washington.
- “Very, very” e “great” – A adjectivação para Trump baseia-se no abuso do superlativo absoluto analítico. “Very simple,hard,proud,sad,weak,upset…” são exemplos do que povoa os seus textos. Faz uso sempre de adjectivos simples, muitas vezes monossilábicos e quase sempre acompanhados de um ou mais “very” que acentuam o adjectivo. Um dos adjectivos mais usados é “great”, o qual costuma estar ligado à sua pessoa.
3. A linguagem do povo – Trump não tem um discurso adornado com palavras caras. Comunica as suas ideias em frases normalmente simples e curtas. Por vezes nem chega a terminar um determinado raciocínio. É capaz de interromper aquilo que está a dizer para fazer um comentário depreciativo sobre alguém, ou congratular-se pelo seu próprio sucesso.
Este ziguezague constante passa uma imagem de uma certa proximidade. Há até coreografias com o público. “Quem vai construir aquele muro?” grita Trump e respondem-lhe de volta “México!” ou quando Trump se vira para os jornalistas a cobrir o evento e os insulta, sendo acompanhado por vaias do público, são exemplos da comunhão que Trump e os seus apoiantes fervorosos partilham.
Conhecem todos os soundbites e repetem-nos, sendo sempre acompanhados pelo sorriso e encorajamento de Trump, que alimenta esta posição de intolerância.
4. “I’m” e “success” – Já apresentou a vítima, os americanos, e o culpado, os políticos, e descreveu o cenário distópico em que vivem. O que falta? O salvador que vai criar empregos para todos, acabar com a imigração e o terrorismo, resolver os problemas do Médio Oriente, e colocar China e Rússia no seu devido lugar.
As duas palavras andam entrelaçadas ao longo de todas as suas intervenções a tal ponto que se torna impossível dissociá-las. Trump é um nome forte e que se junta bem à forma agressiva como fala. Mesmo que lhe apontem falhas no raciocínio, nunca vacila e torna-se mais hostil. Se alguém tenta contrariá-lo, foge ao assunto e rapidamente ostraciza o indivíduo.
Ele consegue sobreviver à sua ignorância, porque logo no instante a seguir ataca quem lhe fez a acusação. Depois disso, a imagem que fica é a incapacidade de quem o acusou de lhe responder de volta. Isto, porque raros são os jornalistas ou personalidades que estão dispostos ou sequer habituados a descer ao mesmo registo dele.
5. “Ad-e tudo” – Exemplos de ad hominem não faltam: seja um jornalista como uma deficiência motora que escreveu um artigo sobre o 11 de setembro e negou que houvesse muçulmanos a festejarem nos terraços dos prédios em Nova Jérsia, seja um rival republicano como Jeb Bush, que acusou de ser um miúdo mimado e estúpido.
Invariavelmente, o plano é este: se criticam as suas posições, furta-se ao confronto de ideias e passa para o insulto, adjectivando o seu opositor de marioneta, aborrecido, fraco ou, em último caso, acusa-o de deturpar as suas palavras, mandando-o reler/ouvir o que dissera.
Ad populum é também frequente. Quando quer dar força às suas ideias, inventa ou refere sondagens em que supostamente a maioria das pessoas concorda com ele. Se a maioria concorda, então só pode ser verdade. O que, reduzido ao extremo, se torna simplesmente em “votem em mim, porque eu sou popular. Porque sou popular? Porque defendo coisas populares”.
Trump sabe aquilo que as pessoas querem ouvir e depois, com a sua aptidão de vendedor, coloca um laço por cima e apresenta-lhes isso mesmo. Sem explicações, sem planos. O produto é apenas a promessa.
Ad baculum é também uma das suas favoritas. Qualquer discussão que não se resolva por ad hominem acaba com Trump a ameaçar através de coerção (física ou, por exemplo, através de processos em tribunal) o seu opositor. Dá uma oportunidade para projectar a sua força e parecer dominante num confronto que era inicialmente ideológico.
Ad verecundiam, por último, é parte integrante da forma de estar de Trump. Fala como se fosse uma autoridade inquestionável no mundo dos negócios e isso lhe desse capacidade para falar sobre tudo. Estamos a falar de alguém ao nível de um deus na terra. Os argumentos de autoridade surgem frequentemente e facilitam-lhe muito o trabalho.
Se ele for bem sucedido em apresentar uma imagem de sucesso e infalibilidade, então basta-lhe depois fazer afirmações sem qualquer necessidade de as sustentar. “Acreditem em mim”, “Eu digo-vos isto”, são exemplos da estrutura base que usa para este tipo de falácia.
Quando Trump diz que será “o melhor presidente criador de empregos que Deus já criou. Eu digo-vos isto” e depois é interrompido por aplausos entusiásticos, todo o trabalho que empregou na criação da marca apresenta os seus resultados. Se isto fosse dito por outro rival republicano teria o mesmo impacto? Muito provavelmente não, seria visto como uma fraca tentativa de conseguir votos.
Trump é uma personagem dos tempos e não é algo exclusivo do outro lado do Atlântico. É um sintoma da incapacidade dos políticos e da própria democracia em responder às necessidades dos seus cidadãos e ao mesmo tempo adaptar-se a um mundo globalizado que é muito diferente daquele em que as nações ocidentais se formaram. A ascensão surpresa de Trump diz-nos também quão incapazes somos de prever o futuro e, ainda mais, de reagir às mudanças, sendo prontamente engolidos pela avalanche de acontecimentos. Muito provavelmente Trump não será o próximo presidente dos EUA, mas ficará para a história como um “palhaço” do circo televisivo foi capaz de, por alguns momentos, acreditar que era possível sentar-se numa das cadeiras mais importantes do mundo.
Texto: Miguel Martinho