A História do Instituto Superior Prisional: O Banquete do Salão Nobre (3/5)

Autoria: Ângela Rodrigues (LEFT) e João Dinis Álvares (MEFT)

O tempo começou a mudar, a guerra que se instaurara no Pavilhão Central ia-se desfazendo, os TA’s montados nos monstros feitos de galinhas ligadas por arame voltavam para a cave, o chão voltava ao seu estado normal, os macacos ao seu estado natalício, os homens desapareciam. Decidi rodar a mão direita um pouco mais até que a voz que me acompanhava disse, “São 19h40, vira-te, as palavras sabes quais são”, ao que fiquei confusa, não sabia que palavras dizer. Agora, ouço música alta por trás de imponentes portas de metal, com a inscrição “GA2” em cima, sinto as portas tremendo à medida que me aproximo, uma pequena escotilha abre-se e de lá vem uma voz sussurrante, “Convite e palavras chave”.

“No bolso”, diz-me a voz, levo a mão aos bolsos e retiro o folheto que o Ticket me deu, Só pode ser isto, penso. Entrego o papel à mão que sai da escotilha e perguntam-me novamente as palavras chave; na minha memória, soam as palavras dos oráculos da Torre do Tombo enquanto atravessava a porta que me levou a este local, “O sentido é dado pela regra da mão direita e após a jogada de uma carta +2 é possível jogar uma +4”, decido tentar. As portas abrem-se e a voz que me tem guiado ao longo da jornada avisa, “Cuidado, por aí não”, paro, hesito, a curiosidade vence e decido entrar, “Aqui dentro estás por tua conta”. O cenário com que me deparo não podia ser mais surreal, estudantes e figuras da alta sociedade vestidas completamente de preto, com pulseiras de couro e correntes, num palco improvisado está uma banda, que assumo que seja do agrado dos participantes deste encontro pelos gritos eufóricos que oiço, “Faz-me um filho”, berra o dono de uma empresa com atividades em Portugal e na Polónia. 

Desci as escadas e fiquei parada enquanto observava o cenário, o ar denso, as beatas espalhadas pelo chão, a humidade dos corpos suados, os olhos esbugalhados dos que lá estavam, as cabeças que abanavam ao som da bateria. Algo dentro de mim ficou contagiado pela energia que emanava da sala. No palco, a banda terminava mais uma música e o vocalista, de barba longa e bem cuidada, dirigiu-se ao público: “Gostaríamos de agradecer à Fidelidade e à Jerónimo Martins, que estão cá connosco hoje” apontando para duas pessoas no meio da plateia, o público rugiu em resposta, elevaram-nos, seguros por um amontoado de mãos, como se fossem deuses. “A próxima música, acho que vocês conhecem”, continuou e mal o primeiro acorde se fez ouvir, abriu-se um círculo no meio da sala, fui comprimida por vários vultos escuros, quase sem conseguir respirar, mas sentia a energia irracional que se fazia sentir, quando o momento chegou, todos nos lançámos para o meio, braços e pernas por todo o lado, cerveja ou fosse que líquido fosse a derramar pela plateia, o pulsar da multidão, os encontrões, os cotovelos que quase me atingiam, era tarde demais. O que é que estou a fazer, pensei.

Apesar de parecer uma loucura, sinto um estranho sentimento de pertença, sinto-me bem aqui, esta energia desperta algo em mim; decido prestar atenção aos responsáveis pela azáfama que vejo e pela que sinto. Observo com atenção a banda e todos têm um ar espectral, antigo, mas familiar, São figuras históricas, concluo, e, se o meu conhecimento das aulas de história não se tiver perdido, quase que posso jurar que o vocalista é o Infante D. Henrique, que se apresentou no final como “protetor do bom gosto musical da Universidade de Lisboa”, na bateria, D. Dinis com baquetas “diretamente do Pinhal de Leiria”, D. Afonso Henriques com a sua guitarra em forma de espada e a baixista é, nem mais nem menos, a Padeira de Aljubarrota. Pelo menos, já há uma explicação para a massa de pão que decora alguns dos convidados. Compreendendo que aqui a realidade se mistura com a ficção, provavelmente, o jornalista nunca atravessou a porta. “Para os principiantes, nós somos os Saúde Mental, estamos aqui todas as terças. Peço uma salva de palmas para os nossos convidados que possibilitaram mais uma grande metalada”, pede D. Afonso Henriques, antes de passarem para o tema seguinte, anunciaram que na semana seguinte iriam contar com a presença dos mui ilustres Presidente da República e do seu quase padrinho, conhecido pelas aberturas do ano letivo durante o Estado Novo, também ele de nome Marcelo. Sou assolada por uma súbita necessidade de saber mais sobre este sítio, sobre estes eventos. Tento convencer-me que é pela minha investigação, que isto tem de estar associado ao início do fim do Instituto Superior Técnico, porém no fundo sei que me estou a enganar e que só quero satisfazer a minha curiosidade.

No final do concerto, abriu-se uma porta à esquerda do palco, por onde todos começaram a entrar, não houve ordens, pareciam atraídos por algo, “És nova cá, não és”, perguntou um vulto alto, na sua cara uma borboleta pintada de preto e branco, respondi-lhe que sim e ele empurrou-me na direção da porta, “Anda, tens cara de quem se vai dar bem cá” e fui, não podia dizer que não ao Sr. Borboleta. Passei a porta, ficou tudo escuro e só havia uma luz ao fundo do túnel, as várias cabeças que se mexiam à medida que prosseguiam pelo corredor, os meus ouvidos ficaram baralhados com as conversas que ressoavam pelas paredes, Como é que aguentam isto, pensei, “Hás de te habituar”, disse um vulto ao meu lado, cuja cara não discerni, mas nas mãos brilhavam-lhe anéis, um em cada mão, Pingo numa delas e Doce na outra; o dedo que faltava tinha um anel verde, mais parecia uma lanterna. Não percebi como é que ele soube o que estava a pensar, mas não houve tempo para perguntas, estávamos a chegar ao final do túnel e perguntei-lhe, “O que é que há ali”, “O Repasto dos Primitivos”, disse-me, soltando um riso tão alto que os tímpanos quase rebentavam. Ao aproximarmo-nos do final, um cheiro a carne assada inundou o ar, vi um salão gigante, uma mesa que se esticava de lés a lés, centenas de pessoas sentadas, candelabros que se distribuíam a cada quatro vultos, Onde é que me hei de sentar, pensei, e mais uma vez, o vulto com os dez anéis apareceu ao meu lado e indicou-me que me sentasse a seu lado, e assim fiz.

Quando já todos os presentes se encontravam sentados nos respetivos lugares, o dez anéis e o Sr. Borboleta levantaram-se e entoaram um cântico que não consegui compreender, como se fosse numa língua antiga há muito perdida, os restantes responderam em uníssono “Grandiosas sejam as parcerias, que nos dão alento nos momentos mais difíceis, um bem haja à humidade das paredes a que todas as terças chamamos casa e bem dita seja a Líder Laranja. Amém”. De uma porta lateral, começam a entrar o que assumo serem estudantes, todos vestidos de igual, transportando crânios para os convidados; quando terminam de trazer os crânios, que descubro conterem sangue, sentam-se no chão, à volta da grandiosa mesa, “Eles ainda não são dignos”, diz-me o vulto com os dez anéis, ao ver-me a observar aquela cena. O ambiente da sala muda, no ar sente-se um cheiro a gás, surge um fumo alaranjado que vai dispersando até ser visível uma mulher a descer do céu, suspensa nuns cabos presos ao grande candeeiro que se encontra acima da mesa, no seu pescoço está um colar com quatro letras, GALP, leio.

O cheiro a gás deixa-me zonza e enjoada, sinto que vou novamente desmaiar. Será isto parte de um ritual de iniciação?

Leave a Reply