O dia em que a Alameda virou do avesso

Autoria: João Dinis Álvares (MEFT)

Como hei de começar a contar o que vi no outro dia? É difícil pôr em palavras, mas juro que o vi com os meus próprios olhos. Foi um espetáculo incrível, o arco íris que rasgava o céu brilhava e piscava como se quisesse dizer que, sim, o momento chegara, mas só quem o olhasse com atenção percebia; o Sol e a Lua revolviam-se, andavam um em volta do outro como se dum casal se tratasse, a luz do céu a variar e, de alguma forma, os que estavam à minha volta não o viam e olhavam para mim como se estivesse louco. Apontei para o céu e disse, Olhem, algo está prestes a vir, não vêem, e ninguém me ouviu e voltei a dizer o que dissera, mas continuaram a falar entre si, OLHEM, gritei, e eles continuaram a andar, mais depressa, ou talvez tenha sido eu que comecei a perder as forças, por mais que a força do que via me estivesse a alimentar a alma.

Do edifício Central, no campus da Alameda, vi todo o Conselho Pedagógico a sair de uma reunião e a entrar nos seus Lamborghinis prateados, com as jantes a deitar fogo por todo o lado, tendo a Presidente, no seu Lamborghini, um enorme sistema de som com uma coluna gigante que soltava a Marselhesa aos altos berros, o cheiro a borracha queimada espalhava-se pelo campus, uns em Civil achavam que era desta que o edifício ia abaixo, outros em Matemática e Física a pensar que a cantina estava a chegar ao seu pior até àquele momento, algo que consideravam incrível e quase impossível, na Secção de Folhas diziam que a direção da Associação de Estudantes tinha finalmente começado a pensar. Só depois é que percebi o porquê dos supercarros, aquilo era uma perseguição. Um aluno estava a fugir num coche, que depois se veio a saber roubado do Museu dos Coches, em Belém, que, em vez de cavalos, tinha a equipa de Rugby a puxá-lo, vestidos com a bandeira da Palestina a cobrir o tronco e nada mais, os seus pés em sangue por estarem a fazer tanta força no alcatrão. E, para além disso, o aluno levava na mão uma tocha e gritava, “Chegou a hora, juntem-se, colegas, chegou a hora!”, rebentou as barras da saída de Eletro com o coche, enquanto a equipa de Segurança se tentava organizar, mas a equipa que lava os seus uniformes enganou-se e queimou-os, “Oh, que pena”, murmuravam vários alunos que, pelo meio dos rumores, ouviam esta história. Os seguranças estavam, portanto, vestidos à paisana, mas de uma forma forçada, uns vestidos de camisa branca, outros com uma t-shirt a dizer “Iron Beast”, outros com uma marca qualquer americana que desconheciam, só a usavam porque foi a primeira que lhes apareceu à frente naquele dia quando acordaram radiantes por estarem uma vez mais encarregues de controlar as massas estudantis do Instituto Superior Técnico.

Mas isto foi apenas o início, o pior veio depois, quando do meio das torres se começaram a destruir os vidros, como que tomados por vontade própria, e de lá do meio vários raios de metal saíram, havia alunos que eram atirados por entre os vidros partidos, puxados pela massa metálica que logo depois deixou claro o que se estava a passar: as torres estavam ligadas e por baixo desta nova ponte estavam estudantes e professores a aplaudir, enquanto as ambulâncias chegavam para tratar dos alunos que tinham sido atirados do quinto andar, uns já sem esperança, outros dificilmente a conseguir respirar, mas que lá no fundo pensavam, Pelo menos já não vou ter de fazer aquele exame, e riam-se, por entre os vários pulsos de sangue que jorravam das suas gargantas.

Em cima da ponte, surgiu um ecrã gigante com a figura do Presidente da Câmara Municipal que, mal soube das mortes, decidiu fazer um comunicado, mas foi tão rápido que logo as bocas e as línguas se espalharam e muito se concordou que provavelmente fora planeado, era impossível ser tão rápido, foram segundos, minutos, pouco menos de meia hora e já os lábios do presidente deixavam transparecer o vazio que tanto agradava as massas, não se preocupem, vai ficar tudo bem, as equipas dos médicos do Serviço Nacional de Saúde já estão a tratar das vítimas, mas pelo menos temos uma nova residência mesmo aqui em frente, e os estudantes soltaram confetis por todo o lado, houve camiões de cerveja a entrar por Química e por Eletro, colunas gigantes a passar funk brasileiro, um mar de espuma cobriu, por momentos, a calçada da Alameda, as capas negras de estudantes absorveram a cerveja num ato de solidariedade para com a equipa de limpeza que depois teria de extrair a cerveja da vegetação que populava os interstícios do paralelo. Os estudantes abraçavam-se, riam-se, Viva a vida do estudante, enquanto no espaço de churrascos se levantavam bandeiras dos vários países em guerra e dos edifícios de Mecânica começava a sair um desfile dos protótipos de engenharia todos, mas em cima dos protótipos vinham as caras dos professores que mais traumatizaram os alunos, com uma cruz em cima pintada a vermelho. No ecrã em cima da nova ponte metálica, o Presidente da Câmara calava-se e agora falava o Presidente do Técnico, O que é que se está a passar, e de repente a cerveja parou de jorrar, as roulottes de comida que se apinhavam pelo Campus fecharam-se, os alunos vestiram as suas camisas brancas e as suas calças bejes, lamberam o cabelo e puseram os seus óculos pretos de massa pendurados entre a orelha e a cana do nariz, fizeram a continência enquanto tentavam aguentar-se de pé, já meios tontos do álcool que acabavam de beber.

Enquanto o segundo discurso terminava, ouviu-se a sirene de tsunamis ao fundo e o pânico instalou-se, O que se passa, o que é isto, mas logo todos se acalmaram quando alguém gritou num megafone gigante, Hoje vão testar a sirene, não se preocupem, e todos se acalmaram, mas o céu por trás da Fonte Luminosa não era promissor, as nuvens pela primeira vez pareciam negras em vez de cinzentas, Venha a cerveja uma vez mais, gritou o megafone e a música voltou a ribombar, tão alto que os vidros do Central se partiram e todos os telhados dentro do campus ficaram com mais rachas do que aquelas que se vinham a acumular há décadas.

Só então se viu o fatídico sinal do fim, algures na Almirante Reis, por cima dos edifícios, via-se o mesmo aluno que fugira há pouco no coche, perseguido pelo Conselho Pedagógico, e no campus os estudantes regozijaram, finalmente iam poder tomar banho, dêem-se as vivas ao movimento estudantil; o estudante fugitivo, porém, trocara o seu coche por golfinhos grafitados com o símbolo da Ocupa de ambos os lados do corpo, ele trazia um tridente na mão e ouvia-se o seu riso; por cima da ponte metálica falava agora o Presidente do Conselho de Escola, Pedimos desculpa pelos incómodos, o Fénix está a experienciar alguns problemas, mas já serão tratados, não se esqueçam de pagar as propinas, adoro-vos, beijos e divirtam-se, viva o Técnico, e lá debaixo os estudantes, bêbados, responderam de volta, alto e bom som, viva o Técnico, viva o Técnico, viva o Técnico, enquanto a onda gigante,  o tsunami que afinal não era só um exercício da sirene, chegava aos portões da Alameda e engolia, um a um, os estudantes, o riso do fugitivo, por cima, reverberando pelo campus que logo depois ficou vazio, os corpos arrastados para fora da Alameda pela água.

Na sala para rezar, em Civil, se esquecêssemos por momentos o que se passava à frente do Central, ouvir-se-ia uma senhora da equipa da limpeza, “Obrigada, Senhor, por teres enviado uma onda gigante, pois assim não terei de limpar a cerveja toda.”

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