A Avareza

“ O estado foi inventado para os supérfluos. (…) O Estado é o lugar onde todos se
intoxicam, bons e maus; onde todos se perdem, bons e maus; onde o lento suicídio de todos se chama “vida”.
Olhai para estes supérfluos! Roubam as obras dos inventores e os tesouros dos sábios; a esta rapina chamam eles sua “cultura”, e neles tudo se transforma em doença e desgraça.
Olhai para estes supérfluos! Estão sempre doentes, a vomitar a sua bílis e chamam a isso jornais. Devoram-se uns aos outros e nem sequer chegam a digerir-se.
Olhai para estes supérfluos! Adquirem riquezas e com elas se tornam apenas mais pobres.
Querem o poder, e primeiro que tudo a alavanca do poder, muito dinheiro- esses
impotentes!
Vede-os trepar, esses ágeis macacos. Trepam uns por cima dos outros e empurram-se mutuamente para o lodo e o abismo.
Todos querem aceder ao trono; é a sua loucura- como se a felicidade estivesse no trono.
Muitas vezes é lama que há no trono, e outras é o trono que está assente na lama”

Friedrich Nietzsche em Assim falava Zaratustra

 

Sempre nos foi intrínseca a necessidade de rotular, de quantificar o que nos rodeia. O que terá começado por algo tão simples quanto inventar o dinheiro de modo a facilitar as transações comerciais evoluiu rapidamente para uma nova forma de rotular o nosso valor enquanto humanos.

Passamos então a medir a nossa importância em prol do materialismo e tudo virou uma questão de posse.

O chamado “amor” passou a ser quantificado em prol da fortaleza da monogamia praticada entre as pessoas, da fidelidade. Nem sequer a derradeira união entre dois humanos conseguiu fugir ao que passarei a chamar “O Postulado da Posse”. Quanto mais fácil não teria sido definir a monogamia como sendo o sentimento de não desejar estar intimamente com mais ninguém a não ser o objecto amado e não em prol de uma palavra tão redutora quanto a “fidelidade”. Isto é apenas um exemplo de um dos diversos campos sobre os quais o Postulado da Posse atua.

Longe se encontra o tempo em que a avareza poderia ter sido apenas definida como a sede pelo dinheiro. Tendo começado por se tratar disso, uma mera questão de ganância e cobiça, pouco a pouco, terá conduzido à idolatria desmesurada do próprio, por outras palavras, o auge do narcisismo associado ao materialismo.

Logo, uma vez que acredito que este narciso-materialismo que nos rege corresponde ao
expoente máximo da perfeição humana, passarei então a anunciar o Postulado da Posse de modo
a que todos os que ainda não façam parte do “sistema” possuam uma lista que os conduza ao seu
aperfeiçoamento:

  • Se estiveres numa relação, faz o teu amor público nas redes sociais senão não se trata de
    amor;
  • Publica com uma certa regularidade selfies, nesta nova sociedade narcisista não irás querer
    que ninguém se esqueça da tua beleza;
  • É sempre bom fazer transparecer que possuis uma vida ativa nas redes sociais, pois quantas
    mais atividades publicares, maior será o teu potencial para o olho alheio;
  • Se estiveres vestido de uma forma particularmente boa, quer seja pela marca, quer seja por
    quão bem ficas assim vestido, partilha-o com o hashtag #ootd (oufit of the day);
  • Não te esqueças que não só interessa o que possuis materialmente, com a nova era virtual
    quantas mais pessoas te louvarem nos teus perfis, maior é o teu valor enquanto humano. Para melhorares este aspecto os seguintes hashtags ajudam #followback, #tagsforlikes,
    #picoftheday, #instamood ou #blessed;
  • Tenta ter sempre o que está no “topo” em termos tecnológicos. Ou seja, quanto mais produtos da Apple possuíres melhor serás.

A lista poderia de facto continuar, no entanto, isto tudo pode ser reduzido a um simples lema:

“Procura transparecer tudo aquilo que aspiras ser, não te preocupes em sê-lo, isso implica muito trabalho e atualmente ninguém tem tempo. Por isso, embarca na vida da futilidade e do materialismo e estarás integrado na sociedade”.

 

Esta crónica faz parte de uma série de 7 Crónicas com o mote Os Sete Pecados Capitais Atualizados, a sair nas próximas edições do Diferencial.


Texto: Maria Sbrancia