O modelo de ensino do Técnico e como estragar uma boa escola

Autoria: Tomás Vieira (LEMec)

Imaginemos: é dia 10 de setembro e aquela falsa esperança de que é precisamente este o semestre em que vou mudar sobrepõe-se a qualquer outro pensamento, decidi que vou tirar 19 valores a tudo. No vasculhar do que os próximos tempos me reservam, vou consultar a bibliografia das minhas futuras cadeiras (que felizmente já estão no portal Fénix) e compro um livro de Eletromagnetismo. É só no final do dia, cansado e já deitado, que me apercebo que só terei aquelas próximas sete semanas para o compreender. Ler 573 páginas em sete semanas não é missão impossível, com um bom enredo até sugiro reduzir para seis. A questão é que o domínio sobre a sucessão de eventos do último romance exageradamente longo que li em tão curto espaço de tempo nunca é testado. Numa boa analogia que ouvi de um professor, se eu assistir a três filmes de duas horas por semana, lembrar-me-ei do minuto 67 do quarto filme passado três semanas? Ou melhor: apresentado com um quizz extensivo dos seus detalhes, sairei sem chorar? Transpondo isto para a nossa instituição, pouco se revela diferente.

Confrontados com esta realidade, os alunos do Instituto Superior Técnico (IST) vivem, desde 2021, um modelo de ensino cada vez menos implementado na esfera académica global e sem precedentes em Portugal: semestres fragmentados em dois períodos letivos de sete semanas com avaliação contínua e quatro épocas de exames por ano. Apresentados erradamente como quarters, pelo que este termo refere ao mais comum modelo de períodos de dez semanas, dados externos acerca da eficácia deste modelo inovador não existem. Assumidamente, nenhuma das faculdades de referência nos documentos da Comissão de Análise ao Modelo de Ensino e Práticas Pedagógicas do IST (CAMEPP-IST) tem um sistema tão curto, nem mesmo foi testado previamente a uma escala menor [3]. Somado a isto, a tendência para a diminuição da adoção do sistema periódico está bastante documentada nos EUA: 30% em 1970 para 13% em 1991 para 5% em 2010

A avaliação das Unidades Curriculares (UC) é agora obrigatoriamente aferida, pelo menos, 50% em “componentes contínuas” assumindo, na generalidade, a forma de Monitorizações de Aprendizagem (MAP). A não confundir com exames ou testes, os MAP, por serem durante a época letiva, que dura apenas sete semanas, e terem duração máxima de quarenta e cinco minutos, criam, naturalmente, semanas de múltiplas e/ou seguidas avaliações, agregando ainda no meio disto projetos, relatórios ou apresentações. Todo este novo paradigma está previsto no Novo Modelo de Ensino (NME), de nome Modelo de Ensino e Práticas Pedagógicas (MEPP), cujas principais ideias-chave, expressas na página 52 do relatório da CAMEPP-IST, são objetivos como: “aumentar a taxa de sucesso académico”, “aumentar a aprendizagem ativa e autónoma” e “reduzir avaliações por exames e testes”. Com esta fundação assente, poderei agora começar a discursar sobre a minha escolha proposital do verbo “ler” mas imposição prévia que me fiz de “compreender” o livro, porque é neste mesmo sentido que há muito a dizer. 

Verdadeiramente um líder, o Técnico é o único estabelecimento de ensino em Portugal onde temos que engolir um livro de física, sofrer com um campo inteiro de química ou descobrir uma nova faceta da biologia em apenas sete semanas. Semanas essas onde feriados, imprevistos ordinários de professores ou até esquecimentos naturais nossos não existem? O encurtamento das margens leva-nos ao saltar constante de MAP em MAP, ao atrasar estudar em prol de um projeto (e vice-versa) ou ao inescapável adiamento de cadeiras para exame de recurso. Uma gripe que dure mais de uma semana ou um tão comum infortúnio pessoal não fala a língua de um ensino tão denso. Muito sucintamente: aspectos fora do nosso controlo não nos são levianamente perdoados. Este sistema impõe-nos uma série de irreversibilidades a cada 5 dias, uma constante imposição para que estejamos em cima do assunto e uma desadequada pressão para atingir mínimos. Sete semanas não é tempo para se fazer conhecer o erro e aprender dele, apenas tempo para o temer e adotar estratégias que o contornem.

Noutra linha, o espírito de pioneirismo não se cingiu pelo tamanho dos períodos. A perda de Análise Complexa nas cadeiras base de matemática, aspeto inédito a nível mundial, e a simultaneidade a que conceitos são lecionados e aplicados são dois fatos bastante inovadores. Este último provocou constrangimentos como a lecionação de Teoremas da Divergência e Teorema de Stokes aquando da sua aplicação em UC como Eletromagnetismo, como também o caso da UC de Mecânica no primeiro período do primeiro ano da Licenciatura em Física Tecnológica (LEFT). Nesta, alunos frescos do ensino secundário são recebidos com indicações, via email, para que antes do começo das aulas tenham de familiarizar-se com conceitos como “Derivada em Rn”, “Integrais“ e “Expansões de Taylor” para o bom seguimento da cadeira. Novamente, isto são alunos que provavelmente caminharão para a sua primeira aula do ensino superior, onde lhes é pedido para que saibam aquilo que estão para aprender

Email enviado aos alunos do primeiro ano de LEFT antes do começo das aulas.

No que toca à aprendizagem propriamente dita, a correta maturação de noções matemáticas não é processo digno de dias, e por mais que isto possa parecer admitir fraqueza, é algo que garanto não me ser exclusivo. Posso até discorrer na tradução deste conhecimentos em notas, até porque estou convicto da falta de correlação entre estes dois aspetos. O estudo isolado das questões a sair no teste ou ainda o mais prevalente decorar da sucessão de passos a fazer para extrair o máximo de pontos esconde um problema maior: a falta de tempo para construir uma sequência lógica imprescindível à correta compreensão de uma ciência. Modular-me à tipologia dos exercícios de anos anteriores ou equacionar a probabilidade de certa matéria ser alvo de avaliação por imperativa necessidade não é, a meu ver, o ensino de excelência que me foi prometido. Nisto, é importante reforçar a noção da cultura de estudo como puramente uma estratégia de adaptação. Face ao sistema, ouço muitos colegas com uma simples dúvida: passo ou percebo?

Vou mais longe e admito que a compreensão de alguns conceitos de cadeiras periódicas já ultrapassou o período letivo de aulas. Já de férias, despreocupado de assuntos escolares, é que solidifiquei aquilo que andara a remoer. Isto é, só depois de ter sido aprovado à cadeira é que percebi efetivamente a cadeira. Será que é no “ter sido aprovado” que está o problema? No querer acreditar que fui aprovado justamente, respondo que não. O caráter conceptual de muito do que nos é esperado aplicar acarreta um tempo de digestão contudo, argumentos deste género, de caráter pedagógico e quiçá humano raramente se avistam na documentação oficial. Todos concordamos numa equivalência matemática de horas dado que, em princípio, somos apenas alunos de três UC simultaneamente, contudo disciplinas intensivas de oito horas semanais são agora uma realidade. Há pelo menos uma razão para que não façamos o nosso estudo todo 24 horas antes do exame por mais que, hipoteticamente, só sejam necessárias 24 horas de estudo para uma certa cadeira. O tempo de aprendizagem não tem maneio para desdobramentos lineares: o bolo não coze a metade do tempo ao dobro da temperatura. 

Nisto tudo, a retenção insuficiente é talvez o aspeto mais preocupante, uma vez que pouco vale um diploma quando ele pouco diz. Sem invocar a palavra óbvia, a “cultura Técnico”, que tanto é mencionada em documentos de análise, é um mero desvio lógico para falhas estruturais. Volta então para aqui a velha pergunta: Percebi? Algo daquilo que colei a cuspo e vomitei no MAP ficou? Com muitos programas segmentados em três momentos de avaliação curtos e pouco espaçados, não é expectável nada menos que a tal abordagem instrumentalista, muito menos, a existência de estudo independente, desligado da matéria a sair no teste per se.

 Por outro lado e ainda mais importante, reconheço que um engenheiro civil não pensa diariamente em transformadas de Laplace ou tensores de inércia, no entanto há que reconhecer que se o processo ao qual estes conhecimentos foram passados não lhe dá margem para pensar criticamente, será que o tempo gasto neles lhe forneceu alguma competência? Em caso negativo, foi  tempo mal empregue e uma gravosa falha do sistema.

Fechando o raciocínio, a implementação do NME e adoção do novo calendário escolar, que assume ser um esforço para melhorar a flexibilidade curricular, incluir uma vertente curricular humanista e combater a ineficiência formativa, teve como alicerce a avaliação contínua. A avaliação contínua, no vácuo, é mais fácil para o aluno, isto pelo seu caráter fracionado: somos avaliados, por exemplo, a um terço da matéria de cada vez. Ainda nisto, currículos de UC, transversais ou não, foram encurtados ou simplificados, aspeto que nos leva a bastantes constrangimentos aquando da consulta de resumos de colegas mais velhos. Reflitamos então: temos um método de avaliação, a priori facilitado, um leque de escolhas curriculares e portas abertas para o estudo autónomo, onde está então a melhoria? 

Apontar culpas para que não exista efetivamente uma melhoria não é difícil, aliás, a Comissão de Avaliação da Eficiência Formativa do 1º Ciclo do IST (Julho de 2024), nomeada a dedo pelo presidente do IST, já o fez. No relatório produzido por esta, não é preciso ler-se muito para encontrar conclusões como “degradação da experiência académica dos estudantes devido a uma carga de trabalho demasiado elevada” e “excesso de unidades curriculares com métodos de avaliação desajustados”. A principal solução apresentada para a “melhoria da experiência académica no IST” é a implementação de “14 semanas de aulas por semestre, seguida de 1 semana dedicada a testes e discussões de trabalhos”. Infelizmente, este não é único documento “oficial” que enverga neste tipo de discurso já que, embora mais moderado, o relatório do Conselho Pedagógico sobre o impacto do NME (2021/22) tem excertos onde constam percepções e preocupações análogas. Nisto, por mais que seja reconfortante saber que os alunos são em parte ouvidos, algo transversal a muitos destes documentos é que, logo a seguir, segue-se uma hiper-fixação em metas de métricas pouco profundas como taxas de aprovação e classificações médias. De outro modo, o bom  funcionamento da nossa instituição tem sido aferido com base em números que, ironicamente, pouco capturam a dimensão pedagógica de uma faculdade. A este fenómeno, Luís Magalhães, na sua aula de jubilação, apelida de fundamentalmente errado, já que estamos a “estabelecer objetivos de percentagens de aprovação desligados da aferição do acréscimo de conhecimento”.

Resumidamente, há o reconhecimento dos nossos superiores que algo não corre bem, então deixo novamente a exercício do leitor: Porquê deixar arrastar este falhanço por anos? A caminhar para a segunda fornada de licenciados inteiramente MEPP, poderemos chegar a ter engenheiros (mestres) que nunca “aprenderam” de outra forma. Há-de haver até alunos que, por não conhecerem outro, não possuem opiniões fortes sobre o sistema pelo facto de que, na visão deles, isto seja tudo só “a exigência do Técnico”. 

Referências:

[1] – Bostwick, Valerie, Stefanie Fischer, and Matthew Lang. 2022. “Semesters or Quarters? The Effect of the Academic Calendar on Postsecondary Student Outcomes.” American Economic Journal: Economic Policy, 14 (1): 40–80

[2] – Modelo de Ensino. Técnico Lisboa.  https://tecnico.ulisboa.pt/pt/ensino/cursos/modelo-de-ensino/  Consultado a dia 24/1/2025

[3] – Relatório Final. (2019) Comissão de Análise ao Modelo de Ensino e Práticas Pedagógicas do IST- CAMEPP

[4] – INSTITUTO SUPERIOR TÉCNICO. (2024). Regulamento de Avaliação de Conhecimentos. https://tecnico.ulisboa.pt/files/2024/12/ist-regulamentoavaliac-a-o_2024_25.pdf

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