Propina em Portugal – além da devolução

Autoria: Patrícia Marques (MECD)

Recentemente anunciada por António Costa, a medida de devolução das propinas nos primeiros anos de trabalho em Portugal está a gerar um fervoroso debate em todo o país. Enquanto os céticos a veem como a transformação da propina num empréstimo feito pelo Estado, outros interpretam-na como uma ferramenta de atração à permanência de jovens qualificados em Portugal. Neste artigo, vamos desmistificar esta medida, explorar o seu impacto e repercussões.

A devolução da propina

Falemos acerca do contexto em que surge este anúncio do “fim da propina” (citando Miguel Costa Matos) que, assim divulgado, assume um teor desonesto e precipitado. [1] A “boa nova” foi transmitida na Academia Socialista, a rentrée do PS, nas entradas de setembro deste ano. [2] 

A medida em questão refere-se à restituição do valor da propina de cursos de licenciatura, mestrado integrado e mestrado lecionados em Instituições de Ensino Superior (IES) nacionais, o qual será gradualmente reembolsado por cada ano de trabalho declarado em Portugal. [3] Ou seja, por cada ano de trabalho em Portugal, será devolvido em IRS o valor de uma propina anual, até ao reembolso total. O relatório do Orçamento de Estado 2024 (OE2024) veio clarificar que esta devolução se aplicará aos recém-graduados tanto de IES públicas como privadas. [4] No entanto, não havendo teto máximo da propina em Portugal para cursos superiores de 2º e 3º ciclo (voltaremos a este tópico adiante), é estabelecido o limite de devolução de 1500 euros anuais para cursos de mestrado. [5] Estima-se que o número de beneficiados vá rondar os 250 mil e que o impacto orçamental seja de 215 milhões de euros.

De notar que a medida faz parte da proposta de lei do OE2024, aprovado pelo Governo dia 7 de outubro, sábado. [6] Entregue à Assembleia da República no passado dia 10, terça, o debate da proposta na generalidade no Parlamento ficou agendado para os dias 30 e 31 deste mês. [7] 

Quanto a críticas, controvérsias e mal-entendidos relativamente à iniciativa, muitos há.

A receção à medida

Comecemos pela eficácia e impacto da medida. Esta pode ser vista como tendo dois objetivos principais: (a) estimular os jovens que terminaram o secundário a ingressar no Ensino Superior e (b) estimular a fixação de licenciados e mestres em Portugal. [8]

  1. De modo quase caricatural, diga-se: “oh, senhor bancário, não se preocupe, o Estado promete que devolve [o valor das propinas pedido em empréstimo ao banco]”, reforçando a noção de que a medida em pouco dissipa a barreira de entrada na universidade imposta a estudantes mais carenciados, em nada aliviando os custos associados à frequência do ensino superior. Até os mais dotados de fé dificilmente crerão que, não tendo um jovem liquidez para suportar, no mínimo, habitação, alimentação e transporte, será a promessa de reembolso um incentivo ao ingresso numa IES, sobretudo em casos de primeira geração. Em caso extremo, um jovem faria um empréstimo, este depois devolvido, ficando ainda em dívida pelos juros. Felizmente, são vários os apoios para estudantes com este perfil, tópico para depois. 
  2. A medida como estímulo à fixação de jovens em Portugal pode ser reformulada como uma compensação para aqueles que prestam “anos de serviço” em Portugal. Comparando valores de custo de vida vs. rendimentos, digamos, entre países europeus, dificilmente seria este um fator determinante à escolha de emigrar ou permanecer no país. Esta é, claro, uma simplificação do paradigma de opções e ignora todos os restantes fatores de decisão – culturais, relações pessoais, bem-estar. Não obstante e dando como exemplo a fração de rendimentos destinada a cobrir custos de habitação, esta representa 29.4% no caso de inquilinos em Portugal e 21% na média da União Europeia (dados de 2022). [9]

Quanto à ideologia ou significado, esta é uma ideia de retribuição bastante interessante. Vai de mão dada com a de que, a não haver propinas, estas não existam porque o valor colocado na educação será devolvido ou espelhado com o retorno que os jovens qualificados retribuirão ao país. A noção de devolução gradual da propina é quase o expoente ou a expressão máxima deste conceito – um prémio e sinal de gratificação para aqueles que permanecem na sua nação e contribuem para o desenvolvimento e manutenção da mesma.

Se o fator de investimento na educação, financiada maioritariamente pelos contribuintes, for o único a considerar, a “obrigação natural” de retribuir à sociedade portuguesa seria aplicada a todos os recém-graduados. No entanto, é curioso notar que o nível de expectativa colocado sobre estes para permanecer em Portugal difere bastante. É muitíssimo alto no caso de um jovem médico para exercer a profissão em Portugal, especialmente no Serviço Nacional de Saúde (SNS), comparativamente ao exigido aos licenciados de geografia, ciências biomédicas ou arquitetura para permanecer no país. A disparidade deve-se, tudo indica, à necessidade da continuidade no sistema de saúde e à natureza da profissão: a prestação de cuidados de saúde é vista como um serviço público vital e o direito à saúde como um dos mais consensuais. Notamos, assim, que a noção de retribuição num país não é direta e é dificilmente generalizável.

Os problemas que ficam de fora

Comecemos pelos “problemas que ficaram de fora” [10] – a habitação, nomeadamente, a oferta de camas em residências estudantis e as rendas nas cidades universitárias. O preço médio por quarto em Portugal rondava os 337 euros em setembro de 2023, uma subida de 43 euros (7.7%) relativamente ao mesmo mês do ano anterior. [11] Este valor de renda corresponde a 44.3% do atual salário mínimo português, indicador do peso absurdo da habitação no bolso dos estudantes e, no geral, das famílias. Dando como exemplo a Universidade de Lisboa (UL), os Serviços de Ação Social da Universidade de Lisboa (SASUL) disponibilizam mais de 1300 camas e, no panorama nacional, apenas cerca de 12% dos alunos deslocados têm lugar em residência, segundo um inquérito de 2017 do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES). [12] Sabemos, contudo, que o Plano Nacional de Alojamento para o Ensino Superior (PNAES) prevê a duplicação das 15370 camas existentes a nível nacional até 2030. O projeto ambicioso é da autoria do MCTES, conta com a intervenção de 42 concelhos e abrange ainda a melhoria de condições de 500 residências já existentes. [13] Melhoria esta imensamente necessária, para que a solução não seja apenas a residência, mas uma residência de qualidade. Livre de interrupções de água fria no inverno, sem surpresas de pratos no lixo sem aviso por cortesia dos funcionários e sem larvas no frigorífico durante dias e dias.

Quanto a bolsas, muitas existem: da Direção-Geral de Ensino Superior (DGES), das próprias IES, de câmaras municipais, de instituições privadas. Para muitos estudantes, representam a solução suficiente e a garantia de alguma estabilidade. Embora sejam evidentemente implementadas medidas de simplificação do processo de atribuição das bolsas DGES, estas não são tipicamente automáticas. Idealmente, todos os estudantes com carência económica teriam disponibilidade, documentação e informação suficientes para ter conhecimento e possibilidade de preencher as candidaturas – nem sempre acontece. O mesmo se aplica a outras bolsas de instituições ou empresas privadas. Ainda assim, é de valorizar a sua existência e, adicionalmente, é de valorizar o papel do NDA, dos departamentos e das associações de estudantes na partilha destas informações. Devo dizer, no entanto, que a popularização do sistema de bolsas visto como um meio seguro de garantir o acesso ao ensino superior me parece falacioso. Embora a intenção do mecenato seja seguramente digna e próspera em resultados, a solução não pode estar à mercê da boa vontade de indivíduos e instituições privadas filantrópicas. Importa assegurar a manutenção de uma abordagem sistemática, acessível, confiável e inclusiva que coloque nas instituições públicas a responsabilidade de fornecer os serviços públicos essenciais, neste caso, a educação, não devendo esta ser substituída pela caridade e doações privadas.

Importa referir que, ao contrário de cursos de licenciatura e mestrado integrado cuja propina está condicionada a um intervalo de valores fixado na lei de bases do financiamento do ensino superior, os de mestrado veem a sua propina fixada pelas instituições em si ou respetivas escolas. Tal equivale à inexistência de teto máximo no preço dos mestrados em instituições públicas. Poderíamos talvez argumentar uma “razão evolutiva”, que é a da progressiva (ou tendencial) diminuição de valores de propina para graus de ensino mais elevados e, nesse caso, diríamos que não existe teto máximo, mas existirá. Mas para quando e para que geração? Neste contexto, convém referir que, no Instituto Superior Técnico, a propina dos mestrados criados nos últimos anos excede os típicos 825€, estando na gama dos 1060€ aos 2500€, como nos casos dos mestrados em Bioengenharia em Medicina Regenerativa e de Precisão que entrou em funcionamento em 2021/22 (1060€) e Engenharia e Gestão da Inovação e Empreendedorismo (MEGIE) que entrou em funcionamento em 2019/20 (2500€). [14-16]

Referências:

[1] Publicação de Miguel Costa Matos na rede social Twitter.   

[2] SIC Notícias. António Costa anuncia a devolução do valor das propinas. 

[3] JPN. António Costa promete devolver as propinas. 

[4]  JN. Medidas anunciadas por António Costa. 

[5] Orçamento do Estado 2024. 

[6] Portugal.gov.pt. Comunicado do Conselho de Ministros. 

[7] SIC Notícias. OE. O que os portugueses podem esperar. 

[8] TSF. Não basta para fixar jovens. 

[9] Eurostat. Housing cost overburden rate by tenure status. 

[10] Público. Devolução da propina longe de fixar em Portugal.

[11] Observatório do Alojamento Estudantil. 

[12] Público. Só há camas nas residências para 12% dos estudantes deslocados. 

[13] DN. Mais alojamento para estudantes em Lisboa. 

[14] Técnico Lisboa. Novos Mestrados. 

[15] DRE. Despacho n.º 10893/2021. 

[16] ULisboa. Alojamento. 

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