Ferrovia

Autoria: António Luciano (MEMec)

É novamente tempo

De desbastar por entre a formada multidão,

Para acertar mais um salto pesado,

Da plataforma confortável dum passado,

Para a incerteza do vagão.

Arrebatado pela inexistente cegueira,

Que cessa e revela bruta o espaço ilusoriamente opaco,

De aromas envernizados da madeira,

Fundidos ao cheiro seco e imundo do tabaco

Sob o tinir estridente das cigarreiras abertas

Sob o tamborilar troante dos jornais,

Interrompido de quando em vez

Adentro das mãos à boca recobertas

Por irreprimivéis tosses súbitas

Daquelas figuras alcalinas e formais.

Juízes do arrumo tímido das bagagens,

Das miradas rapinas que ferem a repique

Costume que replicam todas as paragens

E me fazem estrangeiro onde quer que fique.

Sentado para escutar as conversas de sempre,

Eloquentes de fastio,

Avarentas de disfarce burguês,

Encapotadamente burgessas,

Habitadas de vazio.

Procurando no tédio das lentas mudanças de paisagem

Um arpoar precioso dum ponto de fuga,

Para apartar do tédio desta viagem

E esquecer para onde o destino suga.

É novamente tempo

De desbastar por entre a multidão que se forma,

Para acertar mais um salto pesado,

Do vagão confortável dum passado,

Para a incerteza da plataforma.

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