Menino de Carvão

Poema recitado no Lounge Proto Poetas Club do dia 15 de dezembro de 2022.

Imagem da autoria de Nick Nice.

Autoria: Cristian Bancu (CPRI, IEP-UCP, @cristi___an)

Da árvore das belas flores
Esticado, arranco um ramo
Escondo-o num pano
Envolto em duas cores


Branco, porque o pano era limpo
Preto, porque disse que era.
Por mais sujo que o deixasse o tempo
Ele cheirava a primavera.


Cheirava a manhã de orvalho
Cheirava a zum-zum de abelhas.
Brilhavam os cabelos grisalhos
Das nossas eternas velhas


Que tecem, e tecendo falam
Do porquê de não estarem caladas
É que as velhas bem embalam
Os bebés em contos de fadas.


O que mais queremos é silêncio
Depois dum inverno só de berros
É que a fome também tem disso,
E o Diabo quer mais enterros.


Flocos de fria neve assentes
Na íris dos que ficaram de olho aberto
Mirando o mundo sem ver nada.
O mundo é casa e o céu é teto.


É por isso que a morte nos pesa tanto
Somos anjos com um tiro na asa
E os nossos filhos choram
Quando os pais saem de casa.


Sou um menino de carvão
À força enfiado na terra
De joelhos escavo o chão
E aguardo a Primavera.


O Inverno não se aquece sozinho
Temos mães por cuidar
E os comboios não marcham
Com um leve sopro de ar


Sei que quando vou pras minas
Deixo as unhas lá enterradas
E a carne exposta à terra,
Infeções maltratadas.

Nem os ricos enriquecem
Se a máquina não for bombando
Nem há pão em cima da mesa
Se não continuar escavando.


Sei que quando vou pras minas
Deixo as unhas lá enterradas
E a carne exposta à terra,
Infeções maltratadas.


Mas por mais que queira chorar
Esforço-me em controlar a mente
Porque sei que carvão molhado
É carvão que não acende.


Quão irónico chega a ser
Que aqueles que de mim precisam
Quando chego a sair da mina
É sobre eles que os meus pés pisam.


Sou um menino de carvão
E fui perdendo o sorriso
Mas sei bem o que é honrar
Os irmãos sobre os quais piso


As irmãs, os pais, os filhos
Os avós e os netos
Que fecharam os seus olhos
E perderam os seus tetos.


Deslocado ao cemitério
Finalmente, choro em paz
Tenho casa e tenho teto
Já não tenho os meus pais


Limpo as lágrimas ao pano
E pouso o ramo na sepultura.
Já não é hábito, nem tradição.
Se há cultivo, há cultura.

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