A luta estudantil: dois momentos esquecidos

Autoria: Rute Pinheiro (LEC)

Mudam-se os tempos, mas não se mudam as vontades, pelo menos as dos estudantes que, nos livros de história, são um protagonista regular. Aqui expomos dois momentos menos falados em que os estudantes brilharam: em 1907, a lutar pela reforma do ensino num clima político atribulado, e em 1975, a viver uma revolução, numa das alturas de maior incerteza em relação ao futuro.

Greve de 1907

Recuemos até dezembro de 1906, Coimbra. O descontentamento face ao ensino superior e o crescente sentimento anti-monarquista que reinava entre os estudantes culmina na publicação do “Manifesto dos estudantes republicanos ao país”, escrito por António Granjo, Carlos Olavo e Ramada Curto [2], estudantes de Direito, que mais tarde, na Primeira República, se tornariam deputados.

Dois meses depois, em 1907, rebentam protestos académicos na Universidade de Coimbra em resposta à reprovação, por unanimidade, de José Eugénio Dias Ferreira, republicano e maçom, candidato às provas de doutoramento. Foi algo inédito e sem precedente, evidenciando o comportamento austero e anacrónico do ensino da época. Estes protestos alastram-se pelas escolas do país, tanto secundárias como universidades, tendo o Técnico, que na altura era o Instituto Industrial e Comercial de Lisboa, participado [2].

Como consequência, o lente (professor catedrático) de Filosofia, Bernardino Machado, conhecido por se filiar ao partido Republicano e usado como bode expiatório pelo governo de João Franco, foi coagido pela universidade a apresentar a sua demissão e, posteriormente, deu-se a expulsão de sete alunos, seis deles republicanos [2].

Apesar de esta ser uma revolta que tinha como objetivo o protesto contra um ensino austero e ultrapassado, e a reforma do mesmo, João Franco atribui-lhe um caráter político justificando que, para além dos estudantes republicanos já terem publicado um manifesto anti-monárquico violento em 1906, a grande maioria envolvida na greve estava filiada ao partido. António José de Almeida, deputado do partido Republicano, desmente a intervenção do partido nesta revolta, realçando que estiveram presentes estudantes de todo o espectro político e que o espírito anti-dinástico toca a todos os patriotas: “O nosso verbo espalha-se por toda a parte e a nossa propaganda, como uma onda vitoriosa, alastra sobre a terra. Ela invade as almas boas, que têm sensibilidade para a receber, e toca os corações patriotas, que têm emoção para a sentir” [2].

O movimento estudantil foi tão impactante que o governo viu-se obrigado a encerrar a Universidade de Coimbra, as Escolas Politécnicas, Médica e de Farmácia de Lisboa e do Porto, os Institutos Industriais de Lisboa e do Porto, e o Instituto de Agronomia e Veterinária [2]. Só as decide abrir a 8 de abril numa tentativa de acalmar os ânimos e acabar com a greve, mas falhando. Pouco depois, a 11 de abril, as Cortes são encerradas e, a 10 de maio, dissolvidas, marcando o começo da ditadura franquista [1].

Só depois de os académicos juntarem 340 assinaturas e as entregarem a João Franco é que os sete estudantes expulsos tiveram as suas penas absolvidas, sofrendo apenas castigos de censura e repreensão [2]. Quanto aos grevistas, foi passado um decreto, pouco depois do início da ditadura, que os permitia realizar os exames caso ainda não tivessem chumbado por faltas injustificadas, fazendo-os desistir das greves [1]. 

Estudantes à espera de respostas na entrega das assinaturas, no largo das Cortes [7]

Esta revolta estudantil foi uma grande demonstração de insatisfação em relação ao regime imposto, conduziu a uma crise governamental que provocou a ditadura franquista e empurrou o país em direção ao fim da Monarquia Portuguesa e ao início da 1ª República.

Serviço Cívico Estudantil (SCE)

Avancemos agora até 1974, logo depois do 25 de abril. Nesta que foi uma das épocas de maior mudança social, o ensino superior enfrentava uma crise: as universidades passavam por reformas na gestão interna e no plano curricular e o pessoal docente ligado ao regime foi trocado por gente nova, ao mesmo tempo que 28000 candidatos ao ensino superior, um número recorde até à data, esperavam para dar entrada na faculdade [4].

Em paralelo, o povo sofria as consequências dos duros anos da ditadura: taxa de analfabetização elevada, um grande número de habitações precárias e dificuldade no acesso a serviços básicos de saúde e saneamento.

Devido à incapacidade das universidades de albergar este grande fluxo de novos estudantes e à vontade de reabilitar o país, surgiu a ideia do serviço cívico estudantil, uma maneira de aproximar os jovens das realidades da população, ao mesmo tempo que se tentava resolver o atraso de Portugal em relação ao resto do mundo [5]. Dois coelhos numa cajadada só.

A iniciativa consistia no envio de estudantes para zonas consideradas como carenciadas, para que eles trabalhassem em áreas congruentes com o próprio curso, como a da saúde e educação sanitária, alfabetização, segurança social e em diversas atividades culturais. Era suposto entrar em vigor no ano letivo de 1974/75, mas as inscrições só abriram em fevereiro de 1975 e o decreto de lei que o definia saiu a 30 de maio do mesmo ano. A resistência contra o serviço foi extensa e o apoio, em especial na parte política e administrativa, foi diminuto mas, para o bem ou para o mal, no verão de 75 cerca de 9000 estudantes voluntários são destacados para o Serviço, onde ficam até ao fim de setembro [4].

Alfabetização por iniciativa do SCE numa zona rural [6]

Quando chegou outubro, no início do ano letivo seguinte, considerando que as faculdades ainda não tinham capacidade para receber a grande massa de estudantes, tanto nova como do ano anterior, e a persistência em criar uma educação “sem muros” entre a realidade popular e a academia, o Serviço Cívico foi continuado e passou a ser obrigatório, apesar da crescente contestação provocada pela falta de organização dos Serviços anteriores, que obrigou os integrantes a, por vezes, terem de pedir ajuda às populações locais, já carenciadas, e pelos relatos de “imoralidade” relacionados com a educação sexual levada para as escolas [4].

Com a formação do I Governo Constitucional, em 1976, formado com base no Partido Socialista, o Serviço perde quase por completo o seu apoio político e, quando em 1977 entra em vigor o numerus clausus que selecionava quem entrava no ensino superior consoante um número limitado de vagas, o Serviço Cívico Estudantil passa a ser visto como desnecessário, sendo extinguido em julho nesse mesmo ano.[4]

Apesar do público ter visto os Serviços como uma confusão, a opinião de quem participou não é totalmente negativa. O que os relatos destes alunos têm em comum é o choque que experienciaram quando viram as condições precárias em que as populações viviam e o entusiasmo pela camaradagem entre eles. A maioria acabou também por valorizar a experiência por lhes ter dado mais luz em relação ao caminho que pretendiam seguir: uns, depois de experimentarem a área escolhida, perceberam que aquela não era a sua vocação e outros ganharam uma maior motivação para os estudos [4].

Nesta que foi uma medida experimental que pretendia mitigar o problema do estrangulamento do ensino superior e tinha o objetivo de revolucionar a educação, de quebrar a barreira que havia entre classes, de enriquecer os jovens com novas vivências e de os descolar dos livros, vemos que, mesmo perante os mais mirabolantes contratempos, o que prevaleceu foi a vontade de ajudar quem mais precisava.

A força dos estudantes é evidente: tanto na luta pela melhoria e modernização do seu ensino, como na luta contra um regime opressivo. O mesmo na sua vontade de transcender as mais adversas condições e dificuldades para ajudar o próximo e mobilizar a sociedade.

Bibliografia:

[1] Greve Académica de Março de 1907

[2] A Greve Académica de 1907: suas repercussões políticas e educacionais 

[3] Estudantes de Coimbra a caminho das Cortes 

[4] Luísa Tiago de Oliveira, Estudantes e Povo na Revolução, CELTA 

[5] Decreto-Lei n.º 270/75, de 30 de maio 

[6] Alfabetização por iniciativa do SCE numa zona rural 

[7] Estudantes à espera de respostas na entrega das assinaturas, no largo das Cortes 

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