MEPP: a história da mudança “à altura dos pergaminhos do Técnico”

Autoria: Joaquim Valente (DEFT), Leonor Costa (LEFT)

O atual MEPP – Modelo de Ensino e Práticas Pedagógicas – é fruto de uma reforma pedagógica implementada em setembro de 2021 pelo Instituto Superior Técnico (IST), que afeta atualmente toda a oferta educativa da instituição ao nível de Licenciatura e Mestrado. 

Passados quase 4 anos desde a sua implementação, pretende-se fazer uma retrospectiva deste modelo: como e porque surgiu, como foi o processo de transição entre o antigo e o presente modelo, e, finalmente, qual a sua inevitável influência na atualidade, quer nos alunos do IST, como na formação académica que lhes apresenta. Adicionalmente, para compreender melhor o trabalho da comissão responsável por estas mudanças, o Diferencial entrevistou o coordenador da Comissão de Análise ao MEPP (CAMEPP), o Prof. Pedro Brogueira.

O dever de ser pioneiro

No antigo MEPP, o ano letivo era dividido em dois semestres: o primeiro iniciava-se em meados de setembro e o segundo em meados de fevereiro. Cada semestre tinha 14 semanas de aulas contínuas, seguidas por semanas de preparação para exames. A primeira época de exames tinha geralmente duas semanas de duração, enquanto a época de recurso dispunha de uma semana.

Ao longo dos semestres, em muitas Unidades Curriculares (UC), os alunos realizavam testes, trabalhos laboratoriais e projetos. Todas as UC seguiam um modelo semestral, o que implicava que as atividades pedagógicas associadas a uma determinada UC eram realizadas ao longo do semestre. Os testes tinham, em geral, uma duração de 90 minutos, enquanto os exames eram de 3 horas.

Destacam-se algumas diferenças relevantes face ao atual MEPP para além do calendário escolar, nomeadamente, a existência do sistema de UC em semestre alternativo, que permitia realizar a UC no semestre noutro semestre, com outro curso, e o sistema de precedências (que consistia na obrigatoriedade de, antes de poder realizar uma UC, realizar outras específicas, as “precedentes”), ambos eliminados. O sistema em semestre alternativo como consequência da “menor disponibilidade dos docentes para ter várias unidades transversais a funcionar nos dois semestres”[3] e o sistema de precedências, por outro, considerado pelo Prof. Rogério Colaço como “um travão a um plano curricular mais flexível e mais dependente da decisão do aluno […] uma espécie de infantilização dos estudantes do Ensino Superior, […] um «não assunto»”[3]. Outras mudanças estruturais foram a introdução dos minors e dos Teaching Assistants.

Os Mestrados Integrados, que combinavam Licenciatura e Mestrado num único ciclo de estudos de 300 ECTS, foram, em geral, descontinuados. Nestes programas, apenas 6 ECTS eram dedicados ao projeto no 5º ano de Mestrado Integrado, que é análogo ao 2º ano do Mestrado Bolonha, e 30 ECTS destinavam-se à Dissertação. Os restantes 264 ECTS eram ocupados exclusivamente pelas Unidades Curriculares obrigatórias, com muito pouco espaço para disciplinas opcionais ou formações complementares como as HACS.

Os planos curriculares antigos eram rígidos e impunham aos estudantes a realização de determinadas UC apenas para cumprir requisitos, sem muitas opções de escolha. Em geral, havia apenas uma disciplina opcional no 4ª ou 5ª ano, limitando a capacidade dos alunos de personalizarem a sua formação conforme os seus interesses e necessidades futuras.

A rigidez dos antigos planos curriculares era particularmente evidente em cursos como o Mestrado Integrado em Engenharia Aeroespacial (MEAer) e o Mestrado Integrado em Engenharia Física Tecnológica (MEFT). Nestes programas, a estrutura curricular seguia um percurso altamente fixo, com poucas ou nenhumas possibilidades de escolha ao longo dos cinco anos. Os estudantes eram obrigados a cumprir um conjunto fechado de Unidades Curriculares sem margem para adaptar a formação aos seus interesses específicos. No caso do MEAer, a divisão entre as diferentes áreas da Engenharia Aeroespacial era imposta desde cedo, sem a possibilidade de explorar com flexibilidade outras vertentes da engenharia. Da mesma forma, no MEFT, a carga teórica densa e a ênfase na matemática e física teórica deixavam pouco espaço para disciplinas complementares ou formação interdisciplinar. Esta falta de opções livres e a inexistência de um sistema modular mais flexível levaram a uma experiência académica marcada pela rigidez curricular e pela necessidade de cumprir disciplinas muitas vezes sem relação direta com os interesses individuais dos alunos.

O desejo do progresso

O plano estratégico de 2015 do IST estabeleceu um conjunto de objetivos e linhas de ação para modernizar o ensino, incluindo o desenvolvimento de plataformas digitais com material para aprendizagem, o aumento da atratividade dos Mestrados e dos Doutoramentos, a flexibilização dos planos curriculares e promoção da mobilidade para estudantes nacionais e internacionais. Além disso, procurou-se reforçar e diversificar a oferta educativa, alinhando com os princípios do Processo de Bolonha, que havia levado à criação dos Mestrados Integrados e à uniformização de reconhecimento de créditos (ECTS) e graus académicos nas universidades europeias. No entanto, com a mutabilidade das necessidades da sociedade contemporânea, tornou-se necessário rever estes objetivos para que estes servissem de guia para as decisões e escolhas sobre a educação, que são determinantes para o futuro da sociedade.[1] 

Em 2018, os Ministros de Ensino Superior dos países do EEES (Espaço Europeu de Ensino Superior) definiram novos objetivos a serem aplicados a partir de 2020, impulsionando uma revisão da legislação do ensino superior. Nesse contexto, o Decreto-Lei nº 65/2018 introduziu mudanças significativas, permitindo às universidades portuguesas abandonar o modelo de Mestrados Integrados a partir do ano letivo 2021/22 e transitar para um sistema baseado em ciclos de Licenciatura e Mestrados separados. 

Foi nesse cenário que, em janeiro de 2018, o então presidente do IST, Prof. Arlindo Oliveira, criou a CAMEPP para avaliar e propor alternativas ao modelo de ensino então vigente. Durante o período de janeiro de 2018 a março de 2019, a comissão trabalhou na análise crítica do sistema educativo do IST e na formulação de recomendações para um modelo de ensino mais flexível e adaptado às novas exigências académicas e profissionais[5]

A aversão à incerteza, um legado cultural

O aluno do Técnico é um aluno motivado, curioso, interessado? Ou, por outro lado, é ansioso, de raciocínio maquinal, hábil a regurgitar respostas decoradas, exercícios-tipo e pouco mais? Este aluno está preparado para integrar o mundo de trabalho atual, sendo-lhe apresentada a formação de excelência e rigor científico que o IST promete?

Estas e outras questões impulsionaram a ação da CAMEPP, composta por dez investigadores e docentes do IST e coordenada pelo Prof. Pedro Brogueira, do Departamento de Física. Durante sensivelmente um ano, a CAMEPP teve como objetivo principal concretizar respostas a vários problemas do Técnico em propostas específicas, a aplicar conjuntamente com o fim dos Mestrados Integrados. Em março de 2019, entregaram o seu Relatório Final aos então presidentes dos diversos órgãos do IST, nomeadamente ao  Prof. Luís Oliveira e Silva (Conselho Científico) e à Prof. Raquel Aires Barros (Conselho Pedagógico), e ao presidente do próprio IST e do Conselho de Gestão, à data o Prof. Arlindo Oliveira.

Além das falhas pedagógicas, estruturais e curriculares do anterior modelo de ensino, identificadas pela CAMEPP, a cultura do Técnico era aqui apontada como causa de uma obsolescência que permeava a instituição, tanto nos currículos como nas mentalidades de alunos e docentes do IST. A comissão não só reconhecia o carácter “enciclopédico”[2], pouco diversificado e limitador do modelo de ensino antigo como sugeria que, face às condições exteriores que lhes eram impostas, os próprios alunos e docentes tinham um papel ativo na perpetuação de um marasmo intelectual vivido a nível estudantil no IST; os alunos não chegavam ao crucial, isto é, não aprendiam a aprender

Neste marasmo, coexistente com uma “cultura da dificuldade”[2], espelhavam-se as práticas da comunidade académica: por um lado, pouca flexibilidade curricular, programas extremamente teóricos e com pouca formação em competências além de STEM (Science, Technology, Engineering and Math). Por outro, aulas centradas no docente, “do tipo recitativo”[2], frequentemente marcadas pelo “absentismo estudantil crónico”[2], frequentadas (raramente) por alunos que aprendem a fazer testes e não a resolver problemas, cujo sucesso era ditado “pela sua capacidade de sobreviver”[2]

Quase quatro anos após a implementação do MEPP, permanece a questão: até que ponto estas características do IST do passado foram efetivamente superadas? E mais importante, que barreiras ainda impedem uma verdadeira transformação do ensino e da mentalidade académica no Técnico?

O “partir pedra” da CAMEPP[4]

“A comissão foi proposta pelo Conselho Científico e pelo Conselho Pedagógico e teve algumas coisas muito interessantes” – declara o Prof. Pedro Brogueira – “nós, os membros da Comissão, na maior parte não nos conhecíamos”. Menciona ainda que a CAMEPP trabalhou com termos de referência amplos, o que, segundo o prof.,  levou a uma abordagem mais aberta: “os termos de referência […] podiam ter sido muito limitadores, do género «vamos aumentar a eficiência formativa» […] e não foi isso. (Foram) passados 10 ou 15 anos sobre Bolonha […] vamos olhar para aquilo que é […] a forma de ensinar a engenharia hoje em dia e o que é que vamos fazer.”

 Como coordenador da CAMEPP, Brogueira propôs reuniões semanais, inicialmente “muito executivas, no máximo de duas horas”, e posteriormente alargadas a quatro para, segundo o Prof., “dar tempo para partir pedra”. O prof. acrescenta: “Decidimos que todo o trabalho seria sempre baseado em evidência […] começámos por identificar que queríamos falar com vários atores, – alunos, coordenadores, […] queríamos também  […] evidência de escolas de fora.” Escolas estas bastante diversificadas – “escolas com períodos, com semestres, […] tradicionais, escolas europeias, escolas asiáticas, […] quando os orçamentos são de mil milhões […] e mais locais”.

O trabalho de prospeção da CAMEPP baseou-se, portanto, em três pilares principais: um estudo do contexto geral exterior ao IST, nomeadamente, a delineação dos objetivos e dos desafios de uma educação em engenharia no século XXI; uma caracterização de dezasseis universidades de referência; e um estudo do ensino no próprio IST, envolvendo análises a várias métricas, como o abandono escolar e o sucesso académico, e entrevistas, não só aos coordenadores de curso como a alumni e alunos. 

No que diz respeito às entrevistas com alunos, o processo foi mais seletivo do que massificado; não foram conduzidas entrevistas a uma grande escala: “[obter] os alunos foi pedido ao (Conselho) Pedagógico, (ao) vice-presidente aluno; […] sugerimos diversidade, todos os cursos estarem representados, todas as áreas, de primeiro e segundo ciclo […]  [obteve-se] uma lista com umas dezenas muito largas de alunos”. “Foi via delegados”, acrescenta. Através dos inquéritos, foram analisadas questões centrais, como a estrutura letiva (semestral vs períodos), a carga lectiva presencial, a avaliação contínua e a dinâmica das aulas teóricas e práticas.

Após essa fase de recolha de dados, os membros da CAMEPP reuniram-se novamente. Optaram, desta vez, por discussões abertas e prolongadas, nas quais perceberam que as visões dentro do grupo eram diversas e, por vezes, contraditórias: “Fizemos discussões livres, sem nenhuma agenda […] e ao fim de duas ou três reuniões muito longas conseguimos perceber que não tínhamos um caminho […] tínhamos visões diferentes, experiências diferentes”. 

O que permitiu uma maior consonância entre membros foi a estratégia das “minhas 5 ideias”, em que cada participante das reuniões escolhia apenas 5 propostas a defender: “quando cada um de nós teve de reduzir aquilo a 5 grandes princípios começou a haver muito mais coisas em comum […] dessas 5 ideias saíram os 10 ou 11 princípios orientadores […] foi a partir desses princípios orientadores que nós construímos o modelo”.

Do papel à ação: a implementação em plena pandemia

Para a implementação do MEPP, foi concebida uma transição estruturada, mas o inesperado aconteceu – uma pandemia global de COVID-19. Se, por um lado, o modelo estava pronto para reformular o ensino no Técnico, por outro, a súbita necessidade de ensino remoto obscureceu o seu verdadeiro impacto e adiou os ajustes necessários para torná-lo um mecanismo eficiente de modernização do ensino. As aulas remotas forçaram uma adaptação improvisada, tornando difícil distinguir os desafios inerentes ao próprio MEPP daqueles impostos pela crise sanitária. Para muitos, foi uma experiência desorientadora: a incerteza não vinha apenas da mudança curricular, mas do próprio futuro do ensino e da sociedade.

Além disso, a transição para os novos planos curriculares sob o Princípios Enquadradores para a Reestruturação dos Cursos de 1º e 2º ciclo do Instituto Superior Técnico (PERCIST) trouxe obstáculos adicionais, especialmente na equivalência e continuidade dos percursos académicos. No entanto, estes entraves foram mitigados pelo papel crucial dos delegados de curso, que atuaram como intermediários entre os estudantes e a coordenação. A recolha de informação e feedback junto dos alunos permitiu que o processo fosse ajustado de forma mais eficiente, evitando um impacto ainda mais caótico.

Nunca saberemos como teria sido esta transição em circunstâncias normais, mas o que é certo é que a pandemia não só testou a resiliência do modelo como também redefiniu o modo como o Técnico encara o seu próprio processo de evolução.

O MEPP atual – CAMEPP, PERCIST e perspectivas futuras[4]

“O CAMEPP de facto não foi aplicado na sua plenitude”, frisa Pedro Brogueira. “É diferente um documento ser inspirador ou ser um documento operativo […] que é o PERCIST”. Quando questionado sobre o que faria de diferente relativamente ao trabalho da comissão, o Prof. esclarece que teria dado mais atenção à questão da avaliação contínua e do calendário escolar: “(teríamos) dado muitíssima mais importância ao calendário escolar […] a avaliação não foi sequer profundamente debatida […]  […] teria posto um grupo de trabalho a trabalhar na avaliação. Não foi uma coisa que na altura nos pareceu importante e vista agora, a posteriori, acho que merecia uma maior reflexão.”

Acima de tudo, Pedro Brogueira sublinha a diferença entre a visão da CAMEPP, principalmente no que toca à avaliação e ao calendário escolar, e o que se veio a tornar o novo modelo de ensino, após a aplicação do PERCIST: “Acho que a CAMEPP tinha uma visão (que) não foi a que a escola adotou […]  mas (a) que a escola adotou foi perniciosa […] ter muitos MAPs, muitos testes não ajudou a esta perspetiva de respirar, de ir para as unidades de investigação, de fazer minors”. 

Sobre o calendário escolar, acrescenta: “O calendário deu enormes discussões, muitas discussões internas (à) CAMEPP […] o calendário final (o modelo de oito semanas proposto inicialmente pela CAMEPP, e não o modelo atual de 7 semanas) foi um consenso, mas não foi uma unanimidade. […] Vários dos membros da comissão não consideravam que a redução da carga horária por cadeira fosse benéfica e portanto aquela redução das 63 para as 49 (horas) que o PERCIST veio trazer […] o CAMEPP não tinha”. “Não queríamos reduzir significativamente a carga horária por cadeira, mas queríamos reduzir significativamente a carga horária por semana”, salienta.

A implementação do MEPP foi mais do que uma simples reestruturação curricular, foi um choque entre visões distintas para o futuro do ensino no Técnico. Se a CAMEPP concebeu um modelo que pretendia devolver aos alunos tempo para explorar, investigar e aprofundar conhecimentos, a execução final, moldada pelo PERCIST, criou um sistema onde a sobrecarga de avaliações contínuas tornou-se dominante. A promessa de um ensino mais flexível e moderno colidiu com a realidade de uma cultura académica profundamente enraizada, onde o absentismo continua a ser um sintoma de um problema maior: a dificuldade em romper com um ensino que, apesar de reformulado, mantém muitos dos seus vícios estruturais. O MEPP não é, portanto, um ponto final, mas um campo de batalha onde se decide, na prática, se o Técnico se limitará a replicar o passado ou se terá coragem de reimaginar o seu futuro.

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