Na sociedade em que vivemos, um binário de género é-nos incutido desde nascença, restringindo-nos a determinados papéis sociais e cursos de vida. Mas terá sido sempre assim? De que forma é que o sexo e a identidade de género influenciavam as funções sociais e laborais dos nossos antepassados longínquos? E como é que dessas sociedades do passado chegámos às assimetrias entre os géneros que observamos hoje em dia?
Autoria: Guilherme Pata, MEBiom (IST)
Este texto faz uso da forma neutra descrita no Guia Prático Para Um Português Inclusivo do QueerIST.
Entre os povos caçadores-recoletores do Ártico, encontramos es Inuítes, cujo modo de vida tradicional é radicalmente diferente do nosso. Apesar de por vezes recolherem tubérculos e bagas, a principal via de subsistência destes povos é o consumo de carne – em particular carne de foca. Es Inuítes sobrevivem com esta dieta extrema pois consomem o animal por inteiro, incluindo os órgãos, obtendo assim todos os nutrientes essenciais ao ser humano, que são de outra forma difíceis de encontrar apenas na carne. [1]
Tradicionalmente, na sociedade Inuíte, caçar é um trabalho de homens. Apesar de mulheres poderem também participar em tarefas adjacentes à caça, o seu papel primário é cuidar das crianças do bando. Assim sendo, como a maioria da dieta Inuíte é baseada em carne, mulheres estão totalmente dependentes de homens para a sua sobrevivência. No entanto, a estrutura social des Inuítes é relativamente igualitária e, dado o seu caráter comunal, nesta as mulheres não são vistas como propriedade dos seus pais ou maridos – em contraste com as normas culturais prevalecentes nas sociedades “civilizadas” e estratificadas do nosso passado. [2]
Este padrão de homem-o-caçador e mulher-a-cuidadora não é exclusivo aes Inuítes. Na esmagadora maioria dos registos etnográficos que temos sobre sociedades de caçadores-recoletores – sociedades estas que se assemelham à dos antepassados de toda a humanidade – encontramos uma divisão sexual do trabalho. Biologicamente, parece intuitivo que tal divisão deva existir: afinal de contas, apenas corpos femininos podem dar à luz e amamentar, enquanto corpos masculinos são tendencialmente maiores e mais fortes. Mas este raciocínio pode levar-nos a conclusões que não se materializam de facto. Na realidade, es Inuítes tradicionais encontram-se no extremo de um espetro; hoje em dia, diferenças entre os papéis laborais dos sexos em sociedades caçadoras-recoletoras existem, sim, mas não constituem uma dicotomia estrita, tal como as diferenças entre os próprios sexos.
Género, Caçadores e Recoletoras
Num estudo de revisão publicado em 2020, Lombard e Kyriacou dão exemplos de como encontramos uma grande sobreposição de papéis nas sociedades caçadoras-recoletoras da atualidade. Tanto na Austrália como em África, pequenos animais, desde pássaros a marisco, são recolhidos por mulheres sem ajuda de homens. Entre es Momega da Austrália, tanto homens como mulheres participam na pesca. No Calaári do Sul de África, homens Ju/’Hoan recolhem plantas enquanto localizam as suas presas, um papel tradicionalmente feminino, e homens Hiwi da Colômbia e Venezuela recolhem mangas. Também no Sul de África, mulheres San têm um papel vital em localizar e avaliar a condição física de possíveis presas. Nas regiões centrais do continente, mulheres caçam pequenos animais com o auxílio de armadilhas e, para es Aka das florestas do Congo, são elas as principais utilizadoras de redes para caça, enquanto que os homens têm um papel quase igual no que toca a cuidar des filhes. [3][4]
Além desta sobreposição de tarefas, nestes povos vemos, também, que as mulheres têm muitas vezes um papel maior na obtenção de subsistência do que no caso des Inuítes, apesar de éstes não serem o único caso extremo. Por exemplo, para es !Kung do Calaári, alimentos de origem vegetal recolhidos por mulheres constituem 60 a 80 por cento da dieta, enquanto que para es Ache do Paraguai e para es Hiwi, alimentos recolhidos contribuem com apenas 27 e 5 por cento, respetivamente. No entanto, apesar de a divisão sexual do trabalho não ser uma dicotomia estrita, verifica-se que em todos estes povos (com a exceção des Agta das Filipinas) as mulheres são excluídas de participar diretamente na caça armada de animais de maior porte. Mas pode não ter sido sempre assim. [3]
Apesar de esta tendência se observar nos dias de hoje, é possível que não seja indicadora dos papéis de género dos nossos antepassados. De facto, uma descoberta recente pode levar-nos a reavaliar a prevalência deste padrão em sociedades do passado. Numa sepultura que remonta a 9 mil anos atrás, situada nos Andes peruanos, Haas et al. (2020) encontraram o que inicialmente pensaram ser um caçador de elevada importância, enterrado com as suas ferramentas de caça. No entanto, análises posteriores revelaram que a figura enterrada era, na verdade, do sexo feminino. Depois desta descoberta, uma reavaliação de sepulturas Ameríndias anteriormente estudadas revelou que 30 a 50 por cento des caçadores de animais de grande porte seriam do sexo feminino, contrariando o que observamos hoje em dia nas sociedades caçadoras-recoletoras e abanando o paradigma antropológico atual. [5]
Por um lado, as sepulturas encontradas não permitem determinar conclusivamente a razão de éstes indivídues serem enterrades com ferramentas de caça. É possível que as ferramentas não pertencessem às pessoas com quem foram enterradas, tendo lá sido colocadas por costumes religiosos. [5] No entanto, historicamente este raciocínio foi raramente aplicado a sepulturas de corpos masculinos, revelando uma propensão por parte da literatura científica do passado para descartar evidências de caçadoras femininas.
Uma outra limitação importante deste resultado é que as técnicas ao nosso dispor apenas nos permitem estimar o chamado sexo biológico dos corpos sepultados. Determinar se ume indivídue se encontrava no espetro de pessoas intersexo é difícil, sendo que diferentes métodos podem dar resultados contraditórios – um cromossoma Y não implica categoricamente um corpo masculino, e uma pélvis larga face aos ombros não implica categoricamente um sistema reprodutor feminino. Além do mais, como estas sociedades não dispunham de escrita, a identidade de género destes indivídues permanece inacessível. No entanto, se os padrões estatísticos de hoje em dia servirem de alguma indicação – e se pudermos de facto tomar as sepulturas como sendo de caçadores – somos forçades a concluir que pessoas de todos os géneros terão participado na caça armada de animais de grande porte nas Américas pré-históricas. [5] E isto poderá também ter sido verdade noutros continentes. Mas o que vemos hoje em dia nas sociedades caçadoras-recoletoras é uma maior separação de papéis, já para não falar da nossa própria sociedade, onde um passado profundamente patriarcal enraizou um binário sexual heteronormativo, que via a mulher como inferior ao homem. O que é que mudou?
Se olharmos novamente para a sepultura da presumida caçadora andina, é possível que encontremos pistas. A principal ferramenta de caça da altura era o atlatl, ou propulsor de lanças, que facilita o lançamento de projéteis a grandes velocidades. [5] O atlatl é utilizado pela nossa espécie há, pelo menos, 30 mil anos, e encontramos evidências da sua utilização na Eurásia, nas Américas e na Austrália. Aprender a usar um atlatl não é um processo complicado para a maioria das pessoas e, portanto, este pode ser dominado a uma idade precoce. Além disto, a eficácia da sua utilização é relativamente independente da anatomia des lançadores. Assim sendo, o atlatl terá servido como que um nivelador na caça de animais de grande porte, encorajando a participação tanto de homens, como de mulheres e crianças. [5][6]
fonte: De Sebastião da Silva Vieira – Livro de minha autoria: CAVALCANTE, Messias S. Comidas dos nativos do Novo Mundo. Barueri, São Paulo. Sá. 2014, 403 p., CC BY 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=95109348
Uma das hipóteses avançadas por Haas et al. é, portanto, que esta facilidade relativa na caça tê-la-á permitido ser uma atividade sem divisão sexual substancial. Isto apenas terá mudado aquando da introdução de novas tecnologias: nomeadamente, o arco e flecha. Este é mais eficaz, mais preciso e de mais rápida reutilização que um atlatl, mas, em contrapartida, exige considerável força na parte superior do corpo. Desta forma, a utilização do arco e flecha terá introduzido restrições para a participação na caça, tornando-a numa atividade enviesada maioritariamente para indivídues com corpos masculinos. E, aqui, encontraremos a origem das assimetrias de género que vemos nas sociedades caçadoras-recoletoras do presente. Não é difícil imaginar que, uma vez assente este preconceito, as normas culturais o preservassem ao longo das gerações.
No entanto, resta ainda explicar como é que da mera divisão sexual do trabalho chegámos à nossa sociedade patriarcal.
Da Agricultura à Subjugação da Mulher
Em A Origem da Família, Propriedade Privada e o Estado, o filósofo socialista Friedrich Engels defende que foi a estratificação da sociedade em classes que subjugou a mulher em prol do homem. Através desta lente, a domesticação de animais e plantas, que trouxe consigo uma alargada capacidade de produção, terá introduzido um conjunto de pressões sociais e económicas, que serviram de raiz para o conflito entre e dentro de grupos familiares, cimentando a família nuclear como unidade social coesa, e o homem como chefe da mesma. [7][8]
Ao contrário de nómadas, sociedades sedentárias tenderiam a ver a terra que cultivavam como sendo sua propriedade, comprometendo gradualmente as tendências comunais e igualitárias das sociedades que as precederam. A sua grande capacidade de produção alimentar terá também possibilitado o excedente de recursos, permitindo a especialização de certos membros da sociedade em tarefas além da produção alimentar: artesães, mercadores, guerreires, padres. Estas novas classes viriam ajudar a suportar o lugar das famílias que, por vantagens na capacidade de produção, acumularam prestígio e poder entre as suas comunidades – através de leis, de conquistas e de crenças religiosas. Anciães de prestígio tornaram-se chefes de famílias, que se tornaram monarcas, que passaram a governar vastos territórios e explorar crescentes populações de camponeses e escraves. [7][8]
Apesar de terem surgido algumas sociedades matriarcais, estas encontram-se incontestavelmente na minoria dos registos históricos. Da mesma forma, inicialmente os papéis externos à produção de alimentos – mercadores, guerreires e afins – eram, historicamente, realizados por homens. E, tal como no caso da inovação do arco e flecha, inovações em equipamentos agrícolas, como o arado, terão também transformado o cultivo de grandes terrenos numa atividade que favorecia corpos masculinos. A cimentação da unidade familiar terá então tornado mulheres cada vez mais dependentes de homens, promovendo o seu papel quase exclusivo como cuidadoras domésticas e como propriedade do homem da família. A divisão sexual do trabalho foi, portanto, gradualmente amplificada, transformando-se numa profunda desigualdade de géneros, que objetificou e comoditizou a figura feminina e colocou maioritariamente homens em posições de poder. [7][8]
Para Engels, então, torna-se claro que a emancipação da mulher não pode acontecer por completo sem se desmantelar a estratificação da sociedade em diferentes classes. [7][8] Esta é também a perspetiva de muites ativistas feministas, tanto historicamente como na atualidade. [9][10] Mesmo que na nossa sociedade seja possível mulheres chegarem a posições de poder – em certos casos, mas não frequentemente, em paridade com homens – isso por si não elimina a estrutura misógina da mesma. Muito menos elimina a opressão de mulheres trabalhadoras, cuja posição desfavorecida deve-se não só ao seu género, como também à sua falta de poder económico e à forma como estes dois fatores se cruzam. Nesta visão, para que haja mudança não basta incluir a mulher na hierarquia do poder: há que abolir a hierarquia.
Seres Naturais, ou Seres Culturais?
Hoje em dia, certas figuras ainda ousam defender que as grandes diferenças entre os géneros, nomeadamente entre comportamentos e preferências de carreira, têm uma origem que se possa dizer “natural”. Se assim for, as disparidades que vemos hoje em dia entre homens e mulheres “não precisam de ser consertadas”. Mas não existem grandes evidências a favor disto. Ignorando até a realidade complexa da divisão de trabalho em sociedades caçadoras-recoletoras, a nossa história evolutiva não nos permite concluir tal coisa.
Es nosses parentes mais próximos no reino animal são duas espécies de primatas, es chimpanzés e es bonobos, des quais divergimos há cerca de quatro milhões de anos. Es chimpanzés, por um lado, organizam-se em sociedades dominadas por machos, onde muitas vezes os conflitos se resolvem agressivamente. Es bonobos, pelo contrário, vivem em sociedades dominadas por fêmeas, nas quais os conflitos são apaziguados com recurso a atividade sexual – altamente promíscua e sem discriminar nem por sexo, nem por idade. [11] Como o ser humano é igualmente próximo de ambas as espécies, é impossível dizer à partida qual das duas será mais semelhante aos nossos antepassados. Serão naturais as hierarquias com homens no poder, ou com mulheres?
Uma outra questão que é ainda necessário ter em mente, quando pensamos num suposto estado “natural” do ser humano, é o impacto da cultura. Por exemplo, olhando de novo para es bonobos, vemos que para éstes as mães têm um papel importante em transmitir competências sociais aes filhes. [12] Es chimpanzés, por sua vez, são também conhecidos por ensinar es sues companheires e crias a utilizar ferramentas, nomeadamente para pescar térmitas. [13] Estas manifestações de aprendizagem geracional refletem algo que existe na nossa linhagem evolutiva há milhões de anos. É então claro que a transmissão cultural teve – e ainda tem – um enorme papel no desenvolvimento das capacidades humanas, mesmo antes de sabermos falar. Além de que, quando dotades da fala, a capacidade de transmitir ideias trouxe-nos também a capacidade de enraizar preconceitos. Atualmente, não sabemos precisar quando a linguagem terá surgido, com estimativas indo desde o aparecimento de Homo habilis há cerca de 2.5 milhões de anos, até ao aparecimento do ser humano anatomicamente moderno, há menos de 200 mil anos. Porém, tomando qualquer um dos extremos, podemos dizer que a língua faz parte do modo de vida de Homo sapiens como éste é hoje em dia, desde o seu aparecimento no mundo.Dada a variedade de sociedades que observamos, tanto no nosso passado como no nosso presente, não pode haver dúvidas de que a cultura molda os nossos papéis sociais em função do nosso sexo e identidade de género. Mas, se assim é, e se a linguagem e cultura são indissociáveis do ser humano, então nunca existiram humanes “naturais”, inalterades pelo seu ambiente. Mesmo que possam existir preferências e pré-disposições à nascença, em grande parte estas não nos serão mais “verdadeiras” que aquelas que herdamos da sociedade na nossa infância. A evolução cultural formou quem somos em conjunto com a evolução genética. Cabe-nos a nós decidir, então, qual a importância que a nossa identidade de género deve ter na definição dos nossos papéis sociais, e derrubar ativamente as noções preconcebidas e antiquadas do passado.
Referências
[1] Gadsby, P. 2004. “The Inuit Paradox”. Em Discover Magazine.
[2] Nussbaumer, C. 2018. “The tension between tradition and change – gender roles in Inuit communities and the ‘double burden’”. Em Stand.
[3] Lombard, M. & Kyriacou, K. 2020. “Hunter-Gatherer Women”. Em Oxford Research Encyclopedia of Anthropology.
[4] Hewlett, B. 2005. “Are the men of the African Aka tribe the best fathers in the world?”. Em The Guardian.
[5] Haas, R. et al. 2020. “Female hunters of the early Americas”. Em Science Advances.
[6] Milks, A. 2020. “Did prehistoric women hunt? New research suggests so”. Em The Conversation.
[7] Engels, F. 1884. Der Ursprung der Familie, des Privateigenthums und des Staats.
[8] “Engels and women’s liberation”. Em Socialism Today.
[9] Hyde Park Chapter, Chicago Women’s Liberation Union. 1972. “Socialist Feminism: A Strategy for the Women’s Movement”.
[10] Brenner, J. 2014. “Socialist Feminism in the 21st Century”. Em Against the Current.
[11] De Waal, F. 2006. “Bonobo Sex and Society”. Em Scientific American.
[12] Litchfield, C. “For primates, having a mother helps them learn social skills”. Em The Conversation.
[13] Washington University in St. Louis. 2019. “Chimpanzees more likely to share tools, teach skills when task is complex”. Em Science Daily.