Os termos “ambiente” e “cidadania” têm vindo a ser empregues não só amiúde, mas também de modo interligado, o que nos leva a questionar que género de vínculo se estabelece entre ambos. Será a proteção e manutenção de um equilíbrio entre os ecossistemas um dever inerentemente humano? Consiste, sequer, num dever moral ou será, talvez, apenas uma obrigação, a nível social, nos dias de hoje?
Autoria: Patrícia Marques, LEFT
Para além de o meio ambiente afetar diretamente a qualidade de vida humana, também o oposto se verifica, já que a partir dos sistemas económicos, estilo de vida das massas, políticas públicas adotadas por países desenvolvidos e assim por diante advêm consequências mais ou menos concretas no meio envolvente. Consequências estas que tanto podem ser efeitos imediatos como sequelas mais tardias, cuja vinculação aparenta ser dificilmente corroborável. Apesar de esta não constar de uma interdependência instantaneamente incontestável, como ocorre, digamos, em inferências dedutivas, a evolução científica a que temos assistido e os inúmeros artigos publicados com alto rigor técnico, na nossa era, viabilizam a opinião de que a descrença do Homem no seu próprio impacto para com o ambiente seria mera prova indutiva da sua ignorância. É de concordar com os ditados populares “o pior cego é aquele que não quer ver” e “só não vê quem não quer ver”.
Aliando o ambiente à cidadania, emerge a cidadania ambiental, área extremamente correlacionada com a educação para a cidadania e a educação ambiental. A cidadania surge como um conceito “fluido”, compreendendo dimensões política, social, económica e cultural. Refere-se à partilha de normas de comportamento, à integração comunitária e à identidade coletiva (não necessariamente patriótica). Consiste num direito intrínseco de expressar e lutar pelos objetivos e interesses dos indivíduos, numa ótica mais particular, da mesma maneira que contribui para o bem comum da sociedade geral. Em termos mais práticos, implica a participação consciente dos cidadãos na sociedade civil e vida política, o usufruto de direitos, sem distinção, tal como o exercício de deveres, em igualdade, entre eles, tendo em pleno conhecimento os mesmos e a legislação em si.
O perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória, que se estabelece como matriz de referência para uma soma de valores plurais e humanistas que todos os futuros membros ativos da sociedade possam partilhar, subentende estratégias pedagógicas específicas, nomeadamente a proposta da educação para a cidadania e, nela integrada, a educação ambiental. A missão é promover a consciencialização para assuntos relacionados com o ambiente e doutrinar para uma conduta cívica, a par do incentivo do amadurecimento de espírito crítico nos comportamentos, alternativas e posições a tomar face às problemáticas ambientais atuais. Pressupõe, para tal, conhecimentos do modelo de desenvolvimento sustentável, dos problemas das atividades humanas sobre o ambiente e da multiplicidade de possíveis mudanças e respostas ao desafio que é a sustentabilidade.
A cidadania ambiental designa uma norma consensual da prática da educação ambiental, excecionalmente, movida pelo princípio de que a racionalidade do Homo sapiens sapiens não equivale a superioridade em relação às outras espécies. Portanto, engloba a fração das responsabilidades de um cidadão no que diz respeito à proteção da vida, em tudo o que esta abrange – o ambiente. Estamos, então, a articular o poder da participação civil humana com a salvaguarda do equilíbrio dinâmico do planeta. É de realçar que a cidadania ambiental não se restringe, como é compreensível, a estudantes, biólogos e militantes de partidos ambientalistas, visto que basta assimilar a legitimidade da vinculação do Homem ao planeta para se tornar afiliado.
De um ponto de vista ético
Proposto, em 1973, por Arne Næss, o termo “ecologia profunda” designa a defesa de que o ambiente retém direitos inalienáveis e que, por essa mesma razão, deverá ser respeitado, independentemente das possíveis benesses para a humanidade, num quadro utilitário. Defende uma visão holística do planeta, o reconhecimento de relações éticas entre as comunidades bióticas e a valorização de todos os seres vivos como algo mais que meros recursos naturais. Este movimento distingue-se de todos os outros por não se caracterizar pelo típico egocentrismo da espécie humana. Assume, pelo contrário, que a interferência do Homem nos ecossistemas ameaça a ordem natural das comunidades de vida, na Terra, procurando, destarte, o controlo da população humana, a vivência simples e a preservação dos mais variados organismos, atribuindo-lhes uma legitimidade inerente.
Comummente, são os indivíduos que criticam o conceito de ecologia profunda e a linha filosófica de biocentrismo os apologistas de ambientalismo antropocêntrico, plano que se fundamenta na subordinação da natureza relativamente aos seres humanos. Poderá resumir-se a uma visão instrumental do meio ambiente, bem como à sobrevalorização do Homem sobre as restantes espécies dos cinco reinos, conforme o seu status de referência máxima e o argumento da posse de consciência. Acima de tudo, o principal princípio do antropocentrismo ambiental, que configura o paradigma da sociedade contemporânea, resume-se à proteção do meio envolvente canalizada para os benefícios à humanidade, preponderando, por exemplo, legislação ambiental orientada para a tutela da qualidade de vida dos indivíduos, a salvaguarda da saúde e a satisfação de interesses económicos.
De um ponto de vista social
Toquemos no tema da responsabilidade ecológica, que se resume por “Agir de tal modo que os efeitos das nossas ações sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana genuína”, princípio moral supremo formulado por Hans Jonas, filósofo alemão do século XX. Na prática, este conceito propõe a tomada de decisões coletivas que não comprometam a satisfação das necessidades das gerações futuras, uma vez que estas merecem igual direito à vida, pelo qual somos responsáveis. A responsabilidade corresponde não só ao cumprimento dos respetivos encargos, como também ao dever de assumir as repercussões de determinados atos, quer sejam compromissos nossos ou de outrem. No entanto, importa clarificar que somente poderá ser um cidadão responsável aquele que possui liberdade e uma escolha, o que, em inúmeras ocasiões, não é o caso, devido a regimes antidemocráticos, dificuldades económicas e até mesmo desinformação.
Adiante, a responsabilidade ecológica relaciona-se com o dever cívico de preservação da Natureza, em prol da continuidade das espécies. Do mesmo modo que o Homem usufruiu da sua racionalidade para a utilização indiscriminada de recursos naturais, tanto para fins de suposta sobrevivência como para desenvolvimentos tecnológicos e urbanos sobejos, despoletando alterações climáticas excecionais e degradação ambiental, também deverá manipular o seu domínio, enquanto espécie racional, para salvaguardar a sobrevivência dos seres vivos que habitam o mesmo planeta que nós, impedindo a extinção derivada de operações humanas. Sabemos que a conservação da biosfera depende inevitavelmente das condições do meio ambiente; ora, a manutenção destas vincula-se com a ação do Homem.
Diariamente, as propagandas são de incentivo à ação do indivíduo, desde a reciclagem ao minimalismo e da seleção de produtos “verdes” à adesão ao vegetarianismo; porém, a cidadania ambiental não poderá ocorrer unilateralmente, do mesmo modo que o papel de certas ações sistemáticas não deve ser desvalorizado. Urge assim a assunção de um compromisso ambiental por governos, instituições e empresas.
De um ponto de vista legal
Quer queiramos, quer não, a existência de legislação na área do ambiente, atualmente, é inegável, o que significa que há normas com valor jurídico a ser cumpridas por todos e de igual modo, mesmo na inverosímil eventualidade de os argumentos moral e social não configurarem razões suficientes para formalizar as práticas de cidadania ambiental.
Preliminarmente, a Constituição da República Portuguesa impõe, no artigo 9.º, alínea e), a defesa do ambiente e da natureza enquanto tarefa fundamental do Estado. Ademais, no capítulo II, referente aos direitos e deveres sociais, o artigo 66.º dedica-se à matéria do ambiente e qualidade de vida, onde se encontra reivindicada, especificamente, uma clara imposição da defesa por todos os cidadãos de um meio “ecologicamente equilibrado”.
Entre leis e decretos-lei, são imensas as normas legais a respeitar, nomeadamente, a lei de bases da política do ambiente (lei n.º 19/2014 de 14 de abril), documento dedicado à exploração dos objetivos de políticas ambientais, dos seus princípios e instrumentos. Promulga, aliás, a cidadania ambiental como um dever ambiental no artigo 8.º, definindo o conceito como o “dever de contribuir para […] um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado e, na ótica do uso eficiente dos recursos e tendo em vista a progressiva melhoria da qualidade [de] vida, para a sua proteção e preservação.”. Além disso, a lei de bases do ambiente menciona o direito de participação dos cidadãos, no que toca à matéria do ambiente, nomeadamente, a intervenção na elaboração de planos e programas, a par do apelo ao voluntariado e mecenato, neste contexto, ambiental, que poderá beneficiar diversas organizações não governamentais de ambiente e equiparadas – ONGA.
Sintetizando, a responsabilidade ambiental traduz-se numa das obrigações humanas, pelo que deve ser levada a cabo, em específico, por todos aqueles que detenham liberdade para tal, quaisquer sejam os motivos.
Poderemos, quiçá, afirmar que a razão moral constitui o princípio primordial para a defesa do bem da natureza, defendida por todos aqueles que reconhecem o valor do equilíbrio dos ecossistemas. Para os indivíduos que não atribuem uma conotação positiva ou negativa à vitalidade do planeta, por si só, os fatores sociais surgem como o principal incentivo à cidadania ambiental, devido ao incontestável vínculo entre a prosperidade das gerações vindouras e as ações contemporâneas. Em última instância, a existência de normas jurídicas aparenta ser a única fonte originária de uma conduta ambiental correta, caso a consciencialização tenha fracassado. Nestas circunstâncias, será apenas a noção de cumprimento de dever ou o receio da aplicação de sanções o agente inibidor de danos ambientais, já que o cidadão não possui enraizada a noção de responsabilidade no que toca às sequelas dos seus atos no meio circundante.
Referências
[1] ::: Lei n.º 11/87, de 07 de Abril
[2] APA – Políticas > Promoção e Cidadania Ambiental
[3] 2400 ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA
[4] Concepções filosóficas ambientalistas: uma análise das diferentes perspectivas
[5] Sustentabilidade Ambiental: visâo antropocêntrica ou biocêntrica?
[7] Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania
[8] Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória
[10] O que é a cidadania portuguesa e o que implica?
[11] Constituição da República Portuguesa
[12] Legislação na Área do Ambiente
[13] Verbete Draft: o que é Especismo