Autoria: João Dinis Álvares (MEFT)
Através da história do IICL e de Alfredo Bensaúde, torna-se fácil perceber o seguinte círculo vicioso: no ensino, há fases degradantes que o abrem a toda a sociedade, seguidas de um elitismo burguês pela busca do financiamento, o consequente afastamento do povo e, de repente, volta-se ao início. O Plano Estratégico do IST 2030 é a prova de que não se aprendeu nada com a História. Vejamos a história do fundador do Técnico.
Antes de irmos ao sítio onde a nossa história começa, façamos uma paragem em Genebra. Estamos em 1816. Uma das autoras mais conhecidas de sempre participa numa competição de escrita de contos fantasmagóricos, tendo nascido nela uma ideia que só dois anos depois se transformaria num livro a sério. A pessoa que propusera esta competição fora o famoso Lord Byron, amigo da autora. Ela chamava-se Mary Shelley e o livro “Frankenstein”.
Descendo em direção à Europa continental, passando para a outra margem do mar Mediterrâneo, a família Assiboni, de Marrocos, preparava-se para a maior mudança das suas vidas.
Em 1819, Abraão Assiboni parte em direção ao arquipélago que habita o meio do Atlântico: os Açores. Foi dos primeiros judeus marroquinos a aportar em São Miguel, fruto de uma onda de imigrações após a abolição da Inquisição na Península Ibérica. [4]
Um ano depois, Salomão, primo de Abraão, torna-se o primeiro judeu marroquino a desembarcar na Angra do Heroísmo, aumentando a presença da família nos Açores. Estes acabaram por adotar o nome português Bensaúde, por ser mais fácil para os seus novos conterrâneos. Se tivessem continuado a viagem pelo Atlântico, talvez tivessem presenciado o Grito de Ipiranga que ecoava pelas terras brasileiras, o prenúncio de uma nova era.
Salomão funda, em ‘34, a firma Salomão Bensaúde, Filhos & C.a, em São Miguel, que se dedicava à aquisição de veleiros por partes, afretamento e apetrechos de embarcações e tudo o que daí advinha. Elias Bensaúde, irmão de Abraão, começava a desenvolver negócios semelhantes na ilha do Faial [5]. Havia mais primos e familiares que iam desenvolvendo os seus negócios nas ilhas, inconscientes do império que a família Bensaúde iria construir posteriormente.
Um ano depois, 1835, a primeira geração de descendentes dos Assiboni nos Açores contava com o seu mais recente membro, José Bensaúde, filho de Abraão.
Nas sombras do sucesso dos vários membros da família Bensaúde, Abraão dedicou-se à exportação de laranjas, negócio primário da economia açoriana da altura. Porém, o monopólio das laranjas pertencia aos ingleses, sendo a rivalidade que Abraão combatia muito forte, o que acabou por complicar a sua vida. Suspeita-se que Abraão também estava envolvido no negócio de compra e afretamento de veleiros, seguindo o exemplo do primo. Ainda assim, nunca o fez diretamente, uma vez que possuía demasiadas dívidas e os seus sócios não pretendiam levar o negócio à falência caso tivessem de as pagar. Juntando o insucesso financeiro à morte do seu filho Joaquim, a vida não parecia muito promissora para os restantes filhos de Abraão, Jacob e José. Joaquim vinha juntar-se a uma lista de mortes familiares precoces – dos quatro irmãos iniciais, Jacob, Judah, Abraão e Elias, só os últimos dois restavam [6].
Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!
Estas palavras depositou Antero de Quental nos seus escritos e muito disto poderia descrever a situação de José Bensaúde. Conterrâneos, ambos estudaram juntos e tornaram-se grandes amigos. Por falta de dinheiro, José não chegou a seguir o ensino superior, ao contrário de Antero, que foi para Coimbra, integrando a famosa Geração de 70. Porém, José conseguiu virar o seu destino através da introdução do consumo de tabaco nos Açores, fundando a Fábrica de Tabaco Micaelense. A partir daqui, seguiram-se mais negócios, enriquecendo e criando uma fortuna farta o suficiente para providenciar um ensino completo no estrangeiro a quase todos os seus filhos – dar aos seus aquilo que nunca teve. A única filha que teve, Ester, teve a sua educação negligenciada, sendo a visão patriarcal de José não muito diferente da do resto da sociedade.
Mais tarde, em 1891, Antero viveu na casa de José, ficando lá apenas um mês. O motivo da estadia curta é patente nos seus poemas: a angústia existencial, a vivência intensa da bipolaridade do mundo. Com 49 anos, Antero de Quental sai da casa de José, à tarde, e suicida-se.
O resto da família Bensaúde, descendentes de Salomão e Elias, tinha-se aglomerado numa grande firma, Bensaúde & Companhia, que logo expandiu com a chegada de José. A partir daqui, o império económico dos Bensaúde estabelecer-se-ia nos Açores até aos dias de hoje, permeando virtualmente toda a economia açoriana, desde a indústria do açúcar à SATA, a empresa aérea da região autónoma.
Após se casarem, Raquel Bensliman e José Bensaúde tiveram quatro filhos, Joaquim, Ester, Raul e aquele que me fez estar aqui, agora, a escrever estas palavras – o fundador e primeiro diretor do Instituto Superior Técnico, Alfredo, nascido em 1856, em Ponta Delgada. Quase em simultâneo, Sigmund Freud via a luz pela primeira vez na atual Chéquia. Em Portugal Continental, o Instituto Industrial e Comercial de Lisboa, fundado por Vitorino Damásio, completava o seu quarto aniversário.
No mesmo ano em que Alfredo fazia três anos, Charles Darwin lançaria o livro que revolucionaria a biologia e o senso comum, A Origem das Espécies.
Com apenas 16 anos, vai estudar para a Alemanha, um conselho de Antero de Quental (pouco antes deste se suicidar) e fruto da riqueza que os pais tinham acumulado, para estudar “coisas de histórias natural […], insetos, conchas, pedras, etc.”. Seguindo a tradição familiar, também ele próprio era judeu e, por isso, entrou na escola privada hebraica Samson-Schule, em Wolfenbüttel. Esta era apenas uma escola preparatória, tendo tido um desvio de dois meses para outra escola particular, Richmond, em Inglaterra, devido a um surto de cólera na cidade onde se encontrava. Enquanto isto [8], há ainda cartas de José Bensaúde à Câmara Municipal de Ponta Delgada, onde se demonstra que pagou cerca de cem mil reis para que Alfredo fosse removido dos recenseamentos para o exército. As repetidas cartas de José Bensaúde a pedir um comprovativo disso revelam ou que este estava a ser pressionado para explicar onde Alfredo se encontrava ou que a Câmara era incompetente e não conseguia responder às cartas a tempo. Ainda assim, por mais que seja difícil fazer uma apreciação correta de a que é que correspondem cem mil reis em euros, pode-se recorrer a uma comparação com tabelas de índices de preços de alimentação [9] de finais do século XIX. Uma pessoa, em Portugal Continental, gastava em média cerca de 500 reis por ano na sua alimentação.
Apesar das circunstâncias serem diferentes das de hoje, Alfredo Bensaúde era um adolescente extremamente privilegiado.
Em ‘74, atingida a maioridade, migra para a Escola Técnica Superior de Hanover, apenas como preparação para tirar o curso de Engenharia de Minas na Escola Clausthal-Zellerfeld (na altura, apenas Clausthal). A sua graduação foi o resultado de um interesse cada vez maior pelas ciências da terra, tendo mineralogia a primazia dentro destas. Continuou a sua viagem dentro da Alemanha, tendo ido para Göttingen, onde tirou o doutoramento em mineralogia. Tal como ele, o seu irmão Joaquim também se graduou na Alemanha, por sua vez em Engenharia Civil.
Sete anos passados no estrangeiro a estudar. A estadia prolongada deveu-se, em parte, ao ano que Alfredo dedicou única e exclusivamente à construção de instrumentos de arco, violinos acima de tudo, uma paixão sua que o acompanharia durante toda a sua vida. Alguns dos seus violinos ainda sobrevivem até aos dias de hoje.
Em 1881, volta para Portugal e pouco depois concorre a um concurso para ser lente (professor) de Mineralogia e Geologia no famoso Instituto Industrial e Comercial de Lisboa (IICL) [2]. Porém,o IICL [8] já não era o paraíso do proletariado que Vitorino Damásio visionara: era agora uma “escola de filhos da burguesia” [12], de acordo com Alberto George Potier, ex-aluno do IICL, que muita raiva tinha contra a sua própria escola.
Só os filhos da mais alta sociedade é que se formavam no IICL.
Voltemos então à vida de Alfredo Bensaúde, professor de mineralogia no IICL. Durante a fase inicial da sua carreira académica, nascem duas pessoas cuja influência nos respetivos países tem várias semelhanças. A 20 de abril de 1889, nasce um rapaz em Linz e oito dias depois nasce outro em Vimieiro. O primeiro era Hitler e o segundo Salazar.
Muito crítico do ensino no IICL, Alfredo preparou um documento ao qual chamou “Projecto de Reforma do Ensino Technologico para o Instituto Industrial e Commercial de Lisboa, 1892”. Uma das coisas que usou para perceber o que estava mal no Instituto foram questionários a ex-alunos diplomados. As críticas revolviam, acima de tudo, à volta dos espaços deteriorados de ensino e dos docentes que ou não se dedicavam às cadeiras ou nem apareciam sequer para dar aulas. Dos vários questionários que ainda restam no Núcleo do Arquivo, aqueles que são de alunos de Alfredo fazem-lhe sempre uma exceção: era o melhor professor pelo qual tinham passado.
Ao longo do documento, há também uma crítica, por parte de Alfredo [13], à progressiva expansão dos cursos presentes no IICL, que iam tendo cada vez mais ofertas e maior diversidade. Lá se encontra uma frase que resume a sua opinião sobre este alargamento disciplinar:
“Creamos mais encyclopedicos de baixa cathegoria do que profissionaes.”
Isto estava muito ligado com as recorrentes queixas, nos questionários, de que o Instituto não os deixava preparados para enfrentar as profissões para as quais tinham passados vários anos a estudar.
1910 traz a implementação da República e com isso a divisão do IICL em dois institutos: o Instituto Superior do Comércio e o Instituto Superior Técnico [2]. O Ministro do Fomento do Governo Provisório, Manuel de Brito Camacho, confia a Alfredo o cargo de reformar e dirigir este último.
Finalmente, Alfredo Bensaúde tinha a possibilidade de pôr em prática a vontade que lhe nascera enquanto professor: a de reformular o ensino.
Passou os primeiros nove anos como diretor, altura em que a saúde de José, seu pai, deteriora e decide voltar para Ponta Delgada para assumir a administração de uma parte do império Bensaúde. Nesta altura, retornava já com a pessoa com quem casara, Jeanne Oulman, parisiense e conhecida pelos seus contos infanto-juvenis e obras dedicadas ao ensino infantil [11].
Dois anos depois, José Bensaúde, a segunda geração dos primeiros judeus marroquinos dos Açores, perecia.
Durante esta altura, Jeanne e Alfredo já tinham os seus dois filhos na fase adulta, José e Matilde. Sendo Jeanne uma mulher com uma educação acima do normal para a sua altura, não iria deixar que o futuro de Matilde seguisse o mesmo caminho que o da sua cunhada, Esther.
Matilde teve a possibilidade de iniciar os seus estudos na Suíça, completando a sua formação na Universidade de Paris. A sua vida académica acabou por fazer com que passasse uma boa parte da sua vida nos Estados Unidos da América, onde se especializou em Fitopatologia. Para além disso, foi a única mulher entre os fundadores da Sociedade Portuguesa de Biologia e, no final da sua vida, dedicou-se à reestruturação biológica da agricultura em Portugal, a pedido do Ministério da Agricultura.
Ainda assim, no testemunho de Alfredo, tanto este quanto Jeanne admitem que investiram mais dinheiro em José, pelo que deixarão a maior parte da herança monetária a Matilde. Em números, isto correspondia a 3.075.390 reis no total, dos quais 2.306.542 iriam para Matilde e 768.847 iriam para José.
No final do seu testemunho, Alfredo e Jeanne deixam uma última mensagem esperançosa: “Esperamos que, de futuro, reinará entre os nossos filhos a mesma harmonia, para que em todas as circunstâncias da vida se auxiliem mutuamente.”
Alfredo morre em 1941, dois anos depois da Segunda Guerra Mundial se instalar na Europa.
O mais recente e-mail do atual presidente do IST permite-nos observar que este há um círculo vicioso no ensino superior. Há situações difíceis que exigem a criação de instituições de ensino que permitam o melhoramento das condições de vida. Após ter algum impacto social, a burguesia tenta expulsar ou alienar estes alunos, uma vez que se vêem ameaçados. Quando verificam que o povo já não voltará atrás, torna-se num jogo entre o ensino e o dinheiro. A Instituição terá melhores condições se tiver mais dinheiro e sabe que só as pessoas com dinheiro para isso a irão frequentar, pelo que se foca nestas. O povo volta a ficar parado e as condições pioram. Voltámos ao início. O mais recente Plano Estratégico 2030, onde está previsto um “reajuste do preço das propinas dos Mestrados e uma maior percentagem de alunos internacionais”, cujas propinas são de 7000 euros por ano, representa a fase elitista deste círculo. É uma medida que contribui para o desmoronamento da missão fundamental do ensino: este passa a ser restringido apenas àqueles que têm dinheiro para tal. Potenciais transformadores do futuro ficam presos pela repetição dos erros do passado.
Este é o terceiro de um conjunto de artigos que foram escritos de modo a explorar melhor a história do Técnico. O objetivo é tentar apresentar um ponto de vista mais crítico relativamente ao passado para perceber o que está de mal no presente e tentar prever o que se vai fazer a seguir. Esta é, a meu ver, a melhor maneira que a história tem de nos servir. As decisões dos últimos anos por parte do Técnico têm sido cada vez mais desmoralizantes, as mais recentes até chocantes. Onde estamos nós para parar a repetição da história?
PS: Como facto adicional, Emília Bensaúde, mulher do filho de Salomão, com o dinheiro que conseguiu acumular, abriu a maternidade Abraão Bensaúde em honra ao seu marido [10]. Esta maternidade foi a única secreta em Portugal, tendo ficado conhecida como maternidade Bensaúde. Era o único espaço seguro que «permitia às mulheres grávidas pobres e desprotegidas terem os seus filhos de maneira anónima», tendo esta continuado as suas funções durante o Estado Novo, apesar da pressão proveniente da constante vigilância da PIDE.
PPS: Um dos irmãos de Alfredo, Joaquim Bensaúde, ficou conhecido como um dos mais pródigos historiadores dos descobrimentos e, acima de tudo, da história da náutica e da astronomia, tendo deixado uma obra que marcou a Europa inteira.
Bibliografia:
[1] Grupo Bensaúde, História – https://www.grupobensaude.pt/pt/o-grupo/historia/
[2] – Diferencial, João Dinis Álvares: “1852: O Início” – https://diferencial.tecnico.ulisboa.pt/tecnico/1852-o-inicio/
[3] – Há muitas referências possíveis, mas deixo aqui a que mais me marcou: Amin Maalouf – “As Cruzadas Vistas Pelos Árabes”
[4] – Dias, Fátima Sequeira: “Quando as ilhas se tornavam demasiado pequenas : as dificuldades empresariais de Abraão Bensaúde na ilha de S. Miguel (1818 a 1868)” – http://hdl.handle.net/10400.3/427
[5] – Inácio Steinhardt: “História da presença judaica nos Açores” – https://doi.org/10.4000/lerhistoria.646
[6] – Diário de Notícias: “Bensaúde em São Miguel: primeiros judeus nos Açores” https://www.dn.pt/gente/bensaude-em-sao-miguel-primeiro-judeus-nos-acores-1212876.html
[7] – Alfredo Bensaúde, página do IST – https://alfredobensaude.ist.utl.pt/nucleos/nucleo/id/1/paginaid/7
[8] – Núcleo do Arquivo do IST – Espólio de Alfredo Bensaúde (ABS)
[9] – Pimenta, Carlos, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra: “Salários e Preços no Século XIX em Portugal: Análise Económica” – https://digitalis-dsp.uc.pt/bitstream/10316.2/26177/1/BoletimXXVI_Artigo2.pdf
[10] – Ana Sofia Paiva, “Bensaúde, a maternidade «secreta» de Lisboa: https://maislisboa.fcsh.unl.pt/bensaude-a-maternidade-secreta-de-lisboa/
[11] – Correio dos Açores – Jane e Alfredo Bensaude e a educação: https://correiodosacores.pt/NewsDetail/ArtMID/383/ArticleID/18773/Jane-e-Alfredo-Bensaude-e-a-educa231227o
[12] – Citação completa, do arquivo ABS-B-3-2 (1903): “Enquanto se augmentava, atravez o tempo, o número de matérias lecionadas e o número dos professores, modificava-se paralelamente a classe dos seus estudantes; d’uma escola de operários transformou-se o Instituto, pouco a pouco, n’um Estabelecimento de ensino para os filhos da burguesia, que se destinam à Indústria e ao Commércio.”
[13] – “Notas histórico-pedagógicas sobre o Instituto Superior Técnico”, Alfredo Bensaúde