Entrevista a Daniela Patrício: “A priorização da construção de um Pingo Doce em vez de dar espaço a esta cantina não foi a melhor opção”

Autoria: Diogo Faustino (MEAer) e João Dinis Álvares (MEFT)

Os estudantes do campus Alameda do Instituto Superior Tećnico familiarizaram-se com as instalações temporárias da Cantina Social, no piso 0 do Departamento de Matemática. A maior parte de nós recordará a cara de Daniela Patrício, que na caixa registadora nunca rejeitou um dedo de conversa a ninguém. No final dum dos seus turnos, sentou-se à mesa com o Diferencial para uma entrevista.

Daniela tem 21 anos, tem o décimo segundo ano de artes e trabalha desde os doze anos. “O meu primeiro trabalho foi um castigo, foram 2 meses de verão a trabalhar numa firma de limpezas da minha tia.” A razão deste castigo foi as notas que tinha tirado nesse período, todas 3 na escala de 1 a 5.  “A minha mãe olhou para mim e disse-me: «Queres ter notas medianas? Então, vais ter um trabalho mediano.»

Foi assim que começou a trabalhar, no verão do seu 6º ano. Enquanto trabalhava, recebia convites dos seus amigos para ir à praia, todos diferidos porque o trabalho chamava. Isto passava-se em Lisboa, sítio onde nasceu, mas a sua vida sempre saltou entre vários sítios. Começou por se mudar para Samora Correia e acabou por regressar para Odivelas, tendo feito ainda uma última mudança de casa para Caneças, onde ainda hoje vive.

Após trabalhar na empresa da sua tia, através de uns amigos soube que um estaleiro de obras precisava de pessoas para limpeza. Assim foi, com quinze anos, trabalhar uma vez mais. Daniela fez notar, ainda, que a limpeza nas obras era “uma das poucas partes onde as mulheres também trabalhavam”. Este seu trabalho não durou muito tempo porque não havia botas de biqueira de aço para o tamanho do seu pé, o que fazia com que tivesse de andar no meio de detritos de obras com as suas sapatilhas normais. Isto rapidamente resultou em, sem querer, pisar um prego: “Tive de ir para o hospital e depois não trabalhei lá mais. Foi a primeira e última vez que trabalhei num ambiente de obras.

Muitas vezes trabalhava enquanto estudava, tanto no ensino básico como no secundário, o que a forçava a faltar esporadicamente às aulas. Depois de ter saído das obras, foi trabalhar para a MEO, como vendedora porta-a-porta, “uma experiência super-esquisita. […] Só tinha colegas do triplo da minha idade, o que tornava aquilo um bocado esquisito.” Esta experiência também lhe valeu “grandes escaldões”.

A MEO redirigiu-a depois para telemarketing, posição que ela acabou por abandonar, tendo entrado pouco depois para a Vodafone com obrigações semelhantes. Não parou por aqui, tendo saltado para uma filial da NOS, em Odivelas, onde fazia contratos por via telefónica e também outsourcing. Nesta altura tinha 17 anos, tendo parado de trabalhar durante algum tempo. Chegara a um ponto em que só ia à escola à noite para tentar estudar para os exames. Porém, “como era à noite e eu estava a trabalhar, acabava por não ir.

Às várias operadoras, seguiu-se um trabalho numa loja de telemóveis, onde ainda passou bastante tempo a aprender como repará-los, ainda antes de terminar o ensino secundário. 

Depois de não ter conseguido fazer o exame de geometria descritiva, o que lhe cortou a possibilidade de ir para o ensino superior, decidiu fazer um gap-year, “que se tornou em 3, mas no meio disso arranjei bastantes trabalhos, fui explorando um bocadinho o mundo laboral.

Sabemos assim o caminho, conquanto não na sua totalidade, até ao momento em que Daniela passou a ser uma das caras da Cantina Social do Instituto Superior Técnico, atualmente ao encargo da empresa Eat Dream Smile, a quem foi atribuída a exploração do espaço pelos serviços de ação social da ULisboa.

O meu melhor amigo estava a trabalhar aqui. Já devia estar fartinho e falou comigo, se eu não queria pegar nisto.” Aceitou e entrou num novo emprego, porque estava farta e queria mudar de trabalho: “Estes trabalhos são para ter uma pequena experiência e seguir em frente.” Daniela entrou ao serviço por volta de junho de 2022, tendo trabalhado na copa da cozinha ao mesmo tempo que terminava a sua carta de condução. Para além do seu trabalho na cozinha, estava constantemente a ser chamada para ser tradutora onde serviam a comida, porque havia muitos estudantes internacionais e o resto da equipa não se dava muito bem com o inglês.

A conversa é neste momento brevemente interrompida por uma colega da Daniela, que lhe pede ajuda com a sua conta bancária. Depois de explicar os passos que tem que realizar no multibanco, Daniela ri e garante que isto acontece todos os dias: “Até sobre os passaportes”.

Lembra que há trabalhadores na cozinha que nem sequer falam português, predominando o francês e o crioulo. E os dias de trabalho começam cedo: “Às 7 da manhã já estão a abrir a cozinha e às 10 horas já estão a preparar os almoços, é tudo cozinhado no dia.”

Sobre os estudantes do Técnico, Daniela defende que são uma população heterogénea: “diferem muito, têm muitos grupos”. Conversa bastante com os clientes e garante que até os mais reservados acabam sempre por trocar algumas palavras. Realça ainda a honestidade e bondade dos alunos do Técnico: “Nunca vi um roubo, já vi pessoas a perder telemóveis, carteiras, cartões de crédito e vêm-me sempre entregar”.

Mas não deixa de apontar o dedo: “A priorização da construção de um Pingo Doce em vez de dar espaço a esta cantina não foi a melhor opção. E os estudantes também são culpados, não souberam reclamar e manifestar-se. Não tiveram garantias da direção e não fizeram nada em protesto. Se passassem três dias sem ir à cantina, a faculdade ia sentir isso.”

Relembra de seguida a sua escola secundária que, devido a intervenções na infraestrutura (entretanto já terminadas), deslocou as aulas para contentores. Em conjunto com os colegas da sua turma, convenceram a maioria dos alunos da escola a permanecer na entrada e boicotar as aulas. Não tardou muito até que a direção abrisse as portas da escola e permitisse que as aulas prosseguissem nas novas instalações.

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