A Literatura e os Estudantes na Luta Feminista e Antifascista

Autoria: Beatriz Dinis (LEAer), Tomás Faria (LEMec)

O livro “Novas Cartas Portuguesas” chocou o Portugal cinzento e reprimido de 1972. As Três Marias, como ficariam conhecidas, compuseram, em conjunto, uma obra que ia fulcralmente contra o papel submisso e obediente da mulher ideal do Estado Novo. Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreto descreveram uma mulher com vontades e pensamentos autónomos, com desejos carnais, constituindo um dos textos feministas mais emblemáticos da história portuguesa e internacional. Apenas três dias após o seu lançamento, foi destruído pela censura, passando, assim, à clandestinidade.  No entanto, o regime nunca conseguiu abafar a luta feminista, que marcava presença no ambiente universitário, onde uma nova geração ganhava consciência da opressão ao qual as mulheres eram sujeitas.

“Novas Cartas Portuguesas”

Maria Teresa de Mascarenhas Horta Barros nasceu a 20 de maio de 1937, na capital. Estudou no Liceu D. Filipa Lencastre, passando, posteriormente, pela Faculdade de Letras do Porto, onde estudou jornalismo. Durante a sua vida universitária,  envolveu-se intensamente no ABC Cine-Clube e no grupo Poesia 61. A sua carreira a exercer jornalismo começou no “A Capital”, onde se dedicava maioritariamente a entrevistas culturais.

Maria de Fátima de Bivar Velho da Costa nasceu a 26 de junho de 1938, em Lisboa. Passou pelo Convento das Escravas do Sagrado Coração de Jesus, onde começou a escrever textos, elogiados pelas próprias irmãs do colégio. Posteriormente, licenciou-se em Filosofia Germânica pela Universidade de Lisboa e esteve envolvida no Instituto de Investigação Industrial. Cursou também na Sociedade Portuguesa de Neurologia e Psicologia. Antes dos anos 70, já tinha escrito um romance, “Maina Mendes”, onde já se encontrava presente o inconformismo com a repressão e pelo silenciamento da dimensão feminina num mundo masculino dominado pela violência e pelo preconceito, criticando não só o machismo na sociedade, mas também o Estado Novo, promotor da repressão e violência misógina.

Maria Isabel Barreto de Faria Martins nasceu a 10 de julho de 1939, também em Lisboa. Passou pelo Colégio do Sagrado Coração de Maria e licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, seguindo depois para o Instituto de Investigação Industrial. Em 1970, escreveu “ A Morte da Mãe”, que seria apenas publicado em 1979, mas que forneceu o mote para a composição das “Novas Cartas Portuguesas”.

Teresa Horta e Isabel Barreno conheceram-se através de uma entrevista realizada para “A Capital” e acabaram por formar o Movimento de Libertação das Mulheres. Por sua vez, Maria Isabel Barreno trabalhava com Maria Velho da Costa no Instituto de Investigação Industrial. [1]

As “três Marias” (site da Comunidade Cultura e Arte).

Em 1972, “Novas Cartas Portuguesas” é publicado. “O texto constitui-se como uma reescrita progressista, subversiva e diferencial das Cartas Portuguesas* atribuídas à freira de Beja, em que a clausura por imposição paterna, a figura de Mariana e o modelo discursivo epistolar são tópicos reinventados pelas autoras. Em Novas Cartas a história de Mariana e Chamily é desconstruída, servindo de mote a um propósito politico-ideológico e feminista, sendo simultaneamnente uma obra de ficção, cuja temática central é o amor livre e liberto da opressão dos sexos.” [2] As autoras resgatam a imagem tradicional de Mariana,  uma mulher silenciada e oprimida, sujeita a um destino imutável, e subvertem-na, concedendo-lhe vontades próprias e uma voz para as exprimir. Esta escolha não foi inocente: a clausura a que Mariana está sujeita, imposta pelo pai, simboliza a repressão que recaía sobre as mulheres, subjugadas pelos costumes e mentalidades, no seio da sociedade patriarcal. “A ideia da freira apaixonada, abandonada à sua dor e desprezada pelo amante, digna de compaixão pelo leitor, é completamente subvertida em Novas Cartas. Aí encontramos uma Mariana manipuladora, possessiva e possessa de um amor excessivo que sufoca, que usa, que domina e destrói o outro” os papéis tradicionais femininos e masculinos nas relações amorosas são invertidos, pois também no amor está presente uma relação de poder, onde a mulher é, habitualmente, inferior e dominada pelo homem, devendo-lhe obediência e gratidão. Quando confrontada com esta acusação, Mariana afirma que “mais não fez que possu[í-lo] e t[ê-lo] à sua mercê, como é uso os homens fazerem com as mulheres”. [3]

Para além da condição feminina, a obra aponta também criticas ao Estado Novo, acusando-o de ser responsável pela perpetuação da violência contra as mulheres, pois o trauma infligido sobre os homens pelo regime aumenta diretamente a crueldade contra as  mulheres. Apresentam-se casos de mulheres que são brutalmente espancadas pelos maridos que voltaram do Ultramar, como o caso do marido de Maria que “desde que veio das guerras anda transtornado da cabeça e [lhe] mete medo grita a noite toda e dia, bate-[lhe] até se fartar e ficar estendida” [2].  Noutro texto, é descrita também uma situação em que o marido, após ser preso e torturado pela PIDE, insulta e espanca brutalmente a sua mulher:  “começou a dar-lhe pontapés meticulosamente, primeiro nas canelas, depois nas coxas, depois no sexo, […] pela barriga, pelo peito, pelas costas, pela cabeça, […] nos olhos, na boca, no nariz, […], e ali ficou no chão sangrando e inchando” [2]. Assim, a aliança imprescidível da luta feminista à luta anti-fascista ganha corpo em “Novas Cartas Portuguesas”, onde os 120 textos nele presentes retratavam a sociedade portuguesa, a guerra colonial, a opressão das mulheres, a violência e a pobreza.

Edição de “Novas Cartas Portuguesas” (fonte: site da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género).

A obra, acusada de ser imoral e pornográfica, foi censurada e destruída, levando as autoras a tribunal. O caso captou o interesse internacional, resultando na cobertura do processo judicial por parte do próprio New York Times, processo este que apenas terminou com a Revolução dos Cravos, a 25 de abril de 1974. Houve manifestações junto das embaixadas de Portugal em várias cidades do mundo e, em Junho de 1973, na Conferência da National Organization for Women, o ‘processo das Três Marias’ foi votado como a primeira causa feminista internacional [4]. Grandes nomes como Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre e Marguerite Duras também estiveram solidários com esta luta feminista. [1]

A luta feminista nas faculdades

Também no ambiente estudantil, a separação dos papéis do homem e da mulher era marcante, imposta e reforçada pela ditadura. Os liceus eram separados por sexo e, apesar de tal não se verificar nas faculdades, os preconceitos socias ainda erguiam muros entre alunas e alunos [5]. Com o passar dos anos, a juventude ficou cada vez mais fatigada. Os estudantes universitários queriam poder partilhar ideias, salas de aula e tempos de lazer com colegas do sexo oposto mas a doutrina era por vezes demasiado forte, levando a que as próprias estudantes se refriassem de agir de acordo com as suas próprias vontades. 

“Carta a uma jovem portuguesa”

Em 1961, Artur Marinha de Campos estava farto, e foi no jornal Via Latina, em Coimbra, que veio pedir o auxílio das estudantes portuguesas para combater a doutrina opressora que os separava.

Assim, a 19 de Abril desse ano foi publicada uma das mais primordiais concepções de feminismo no jornal “Via Latina”, a “Carta a uma jovem portuguesa”. Marinha de Campos, autor do artigo, de bandeira branca hasteada, afirma “Sou um jovem que vive dentro de uma realidade juvenil, a quer compreender e a quer ver afirmar-se. Por essa afirmação eu quero combater.” Reconhece, em relação à anónima jovem portuguesa: “A minha realidade é igual à tua. Somos jovens. A minha liberdade não é igual à tua. Separa-nos um muro, alto e espesso, que nem tu nem eu construímos. A nós, rapazes, de viver do lado de cá, onde temos uma ordem social que, em relação a vós, nos favorece. Para vós, raparigas, o lado de lá desse muro; o mundo inquietante de sombra e da repressão mental. Do estatismo e da imanência.” O jovem revela o seu conhecimento e  sensibilidade para com a injustiça que sofrem as jovens portuguesas, indignando-se com esta e tentando valmar a atenção à repressão a que as mulheres estão sujeitas. Marinha de Campos quer encontrar a jovem portuguesa no caminho para derrubar o muro, mas sabe que não é capaz de o fazer sozinho. A sua carta aberta serve para reunir tanto os que sentiam o mesmo, mesmo não o  reconhecendo, como aqueles a quem faltava a coragem de agir sós. No entanto, esta carta gerou também muito polémica, e foi um documento essencial no movimento feminista e estudantil da sua geração [6].

“Carta a uma jovem Portuguesa”, Artur Marinha de Campos, 1961 (fonte: Centro de Documentação do 25 de Abril – Universidade de Coimbra).

“Viva a Revolução Sexual!”: Instituto Superior Técnico

Em meados de 1969, foi publicado o Binómio nº 35 com o artigo “Mulher no Mundo”, que falava sobre a emancipação feminina, o papel da mulher e o aborto. O artigo começava por perguntar: “Que se pretende quando se fala da Emancipação da mulher? Em que termos se nos põe a questão, a nós, mulheres? A emancipação é inteiramente gratuita ou é uma conquista, uma vitória merecida? Existe na realidade uma “Emancipação da mulher”… Não será este um falso problema?”. Colocava questões sobre as quais muitas raparigas nunca tinham pensado e, no final, apelava: “Organize grupos de discussão de rapazes-raparigas sobre a situação da mulher na Universidade; sobre a repressão sexual a que estamos submetidos nós, os jovens. Organiza-te na crítica colectiva” (Figura 1). [7] 

Figura 1: Excerto do artigo sobre a Emancipação da Mulher. [7]

Este artigo mudou a perspetiva e abriu horizontes a muitas estudantes. Em 1970, as mulheres correspondiam a apenas 15,3% do número de estudantes no Técnico e enfrentavam restrições como a proibição de usar calças, estando limitadas às saias. No contexto em que o país se encontrava, cada vez mais jovens universitários e de liceu procuravam liberdade, respostas e informação. 

No dia 4 de dezembro de 1968 os estudantes decidiram, em protesto contra o aumento dos preços das refeições, fazer um piquenique no átrio do Pavilhão Central do Técnico. Como o diretor do Técnico tentou impedir a entrada dos estudantes no pavilhão, alguns deles entraram pela Sala de Alunas. Em sequência deste protesto, os estudantes decidiram acabar com a Sala. Foi um processo complicado já que não existiam muitas raparigas envolvidas na AEIST. As envolvidas convenceram outras raparigas a juntar-se, e a Sala das Alunas rapidamente passou a ser usada por todos. Mais tarde, a Sala transitou para os serviços da secretaria da Universidade de Lisboa visando ser utilizada como um símbolo para os problemas e dificuldades femininas. À entrada da antiga Sala das Alunas colocou-se uma faixa a dizer: “Viva à Revolução Sexual!”

A partir desse momento, as transformações e mudanças nos estudantes na luta pela liberdade e igualdade foram inevitáveis. Dias depois, vários estudantes colocariam uma faixa com a inscrição “Viva a Revolução Sexual!” e, posteriormente, a sala tornar-se-ia a “Sala de Convívio para Todos”, acabando assim com a distinção anterior [8]. As raparigas impuseram as calças como o seu vestuário normal e nunca mais voltaram atrás. A AEIST foi invadida pela PIDE no dia 7 de dezembro e o Técnico permaneceu fechado até janeiro de 1969. Na sequência destas manifestações e eventos, foi aprovada uma greve a 9 de dezembro de 1968. 

Daí em diante, o movimento estudantil e a “Revolução Sexual” continuaram a crescer nas universidades e nos liceus. [9]

* “Cartas Portuguesas” é um romance epistolar publicado no século XVII pelo editor Claude Barbin. A obra é constituída por cartas de amor de uma freira portuguesa, Sóror Mariana Alcoforado, enclausurada num convento de Beja, a um oficial francês por quem se apaixonara.

Referências:

[1] Comunidade de Cultura e Arte: “As Três Marias”: o antes, o depois e o impacto das ‘Novas Cartas Portuguesas’“
[2] Maria Sofia da Conceição Silva : “Porque precisamos de continuar a ler Novas Cartas Portuguesas 50 anos depois”
[3] “Novas Cartas Portuguesas”, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa 
[4] Vila Nova : “Três Marias: uma história de um livro escrito a seis mãos”
[5] “Desigualdades entre os homens e as mulheres antes do 25 de Abril”, Filipe Pinto/ David Araújo/ Sérgio Tomás, Site RTP
[6] “Carta a uma jovem portuguesa”, Artur Marinha de Campos, jornal VIA LATINA, 19/04/1961
[7] Binómio nº35, sem data, PT-AHS-ICS-JL-ME-AEIST-0069/PT/MARL/BMRR/EST/IST/00052.103
[8] Luísa Tiago de Oliveira. “O Activismo Estudantil no IST(1945-1980)”
[9] Excerto do texto “A Revolução Sexual” de Mariana Campos e Filipa Rio

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