Entraram Quebrados, Mais Quebrados Saíram

Autoria: Margarida Bezerra (LEIC-A)

Nos dias de hoje, as informações que possuímos acerca do que se passa no sistema prisional português são escassas. Informações estas apresentando-se, na sua maioria, como uma forma de culpabilizar e desprezar quem lá está encarcerado, tratando-se, por exemplo, de histórias de utilização de telemóveis, drogas, facas, entre variados objetos ilegais[1] Além disso, chegam-nos notícias sobre a prisão quando algum assassino apanha uma pena significativa (porém, qual pena não o é?) ou alguma personalidade portuguesa recebe prisão domiciliária[2]. Com alguma sorte, no caso dos media portugueses estarem a sentir-se particularmente humorísticos, conseguimos um título chamativo sobre como alguém foi parar à prisão[3]. Ora, com este artigo, pretendo abrir as cortinas vermelhas, expondo o que realmente acontece atrás das grades e as fraquezas do sistema prisional.

Há cerca de dois meses, no dia 17 de setembro, ocorreu uma manifestação em Lisboa cujo lema era “Entraram vivos, saíram mortos” e cujo objetivo era relembrar 3 vítimas, que sofreram tratamento cruel e desumano em estabelecimentos prisionais, resultando na sua morte[4]. Os nomes das vítimas eram Daniel Rodrigues, Danijoy Pontes e Miguel Cesteiro. As mortes de Daniel e Danijoy ocorreram na mesma ala do Estabelecimento Prisional de Lisboa, com minutos de diferença, a 15 de setembro de 2021. A de Miguel, no Estabelecimento Prisional de Alcoentre, no dia 10 de janeiro deste ano. Destas mortes, apenas a de Danijoy foi investigada pela Polícia Judiciária (e não atempadamente[5]). Aliás, mortes suspeitas nas prisões portuguesas não serem investigadas é mais a norma do que a exceção. Nos últimos 5 anos, houve 303 mortes em prisões portuguesas, 66 das quais foram classificadas como suicídios e as restantes atribuídas a “causas naturais”[4]. O número de mortes investigadas pela Polícia Judiciária (que é único orgão com a devida competência para investigar mortes violentas, onde está incluído o suicídio) é assustadoramente baixo: 6[5]. Com isto, não quero dizer que apenas os suicídios nos estabelecimentos prisionais devem ser investigados. Na verdade, as mortes atribuídas a causas naturais decorreram, em grande parte, em circunstâncias suspeitas e, sendo que estas mortes ocorreram isoladas do resto da sociedade, dever-se-ia sempre assumir como suspeitas, como precaução. 

Nos dias que antecederam sua morte, Danijoy esteve em confinamento solitário (segundo as autoridades, como castigo por agressão a outro recluso); e, tanto no corpo deste como no de Daniel, foram encontradas as mesmas substâncias – uma mistura de medicamentos para tratar diversos problemas. Segundo os relatórios e consultas destes dois jovens, nunca foi mencionado que estes tinham receitas para estes medicamentos[6]. As mães que tiveram os seus filhos retirados brutalmente de si, primeiro para dentro das gélidas e solitárias celas e segundo, com o seu falecimento, continuam a apelar por respostas. “Porque arquivaram os casos?”, “Porque é que a PJ não foi chamada para investigar?”, “Porque motivo as roupas de Danijoy estavam ensanguentadas?”[7] são algumas das perguntas às quais as famílias destas 3 vítimas (e centenas de outras) ainda não obtiveram resposta. Com isto, questiono a falta de transparência destas instituições prisionais. Questiono se a lei realmente se aplica nesta realidade paralela a que chamamos prisões. Questiono se o seu objetivo será realmente reabilitar pessoas já previamente marginalizadas. Questiono quantas pessoas tiveram familiares e amigos seus mortos sob tutela do estado.

Em vista destas situações e de muitas outras, proponho a análise da intenção do sistema prisional e do que este se propõe a fazer. Segundo a própria Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, esta define-se como “… o organismo responsável pela prevenção criminal, execução de penas, reinserção social e gestão dos sistemas tutelar educativo e prisional”[8]. Ora, foquemo-nos agora nos tópicos da prevenção criminal e reinserção social. Na verdade, estes estão bastante interligados, dado que, se um ex-recluso não for devidamente reinserido na sociedade e reabilitado para continuar a sua vida, desta vez sem crime, irá cometer crimes outra vez. Apesar de não haver atualmente estatísticas sobre a reincidência criminal em Portugal[9], estima-se que esteja entre os 50% e os 75%[10]. Quem diria que, ao retirar uma pessoa do seu ambiente, amigos e família e colocá-la num ambiente violento, completamente diferente de tudo o que já experienciaram antes, esta não vá conseguir efetivamente crescer, aprender e preparar-se para viver em sociedade? Quem diria que um ambiente anti-higiénico, com uma taxa de mortalidade elevadíssima, com uma taxa de suicídio que é, no mínimo, abismal, onde há drogas ilegais, má nutrição e, como se não bastasse, falta de apoio médico adequado, não é uma solução efetiva de reabilitação de pessoas? O que realmente acontece (e com demasiados estudos a prová-lo[16]) é que prisões não funcionam como meio de justiça restaurativa. Com o seu tempo na prisão, as pessoas saem mais agressivas, com uma saúde mental pior e com mais desconfiança no sistema judicial e prisional. Ora, se mais tempo de pena prisional não é equivalente a uma melhor reabilitação, porque é que Portugal tem um tempo médio de prisão 3 vezes superior ao da média dos 47 países do Conselho da Europa?[11]

Para perceber o problema da reincidência e ineficácia da reabilitação feita nas prisões, temos de analisar a população prisional e os obstáculos que esta enfrenta, não só durante a sua pena, mas já previamente, antes sequer de terem entrado no sistema prisional. Segundo Catarina Fróis, professora no Departamento de Antropologia do Instituto Universitário de Lisboa, a comunidade prisional é “… na sua maioria, iletrada, com empregos precários e dedicada ao tráfico de droga que, atrás das grades, mantém um quotidiano marcado pela rotina, monotonia e inércia”[12]. De facto, 7,5% da população prisional não tem escolaridade nenhuma e 74,4% apenas a escolaridade básica. Juntando tudo, vemos que 81,9% da população prisional portuguesa não completou o ensino secundário[13]. Além disso, são pessoas com baixo estatuto socioeconómico, com histórico familiar de entradas no sistema prisional e que, desde cedo, foram mal tratadas pelo Estado. Já, enraizadamente, em meios propícios a crime (por várias razões; por exemplo, pelo facto de não haver alternativa, ou por desconfiança do Estado e da Lei Portuguesa), jovens crescem já com a possibilidade de serem futuramente encarcerados à sua volta. A realidade é que a maioria das pessoas que acabam na prisão tem sofrido violência que nunca foi resolvida, pois a solução do sistema prisional atual é aprisionar pessoas e nunca explorar, com empatia, tentando chegar à raiz do problema, com vista a alcançar a uma solução que faça tanto as vítimas como os agressores sentir recuperação emocional e psicológica. A maioria das pessoas que acaba na prisão já estiveram nos dois lados da ofensa e, na sua maioria, sofreu de abusos físicos, sexuais e emocionais tremendos enquanto jovens em desenvolvimento.

Estando mais que provado que o atual sistema prisional português falha miseravelmente em recuperar e ajudar quem cometeu crimes, a melhorar e a sair do sistema, parece que temos de encontrar uma nova solução. Atualmente, o Sistema Prisional tem como foco a Justiça Retributiva, que encara o crime como um conflito entre o Estado e o criminoso. Desta forma, o crime centra-se “… no acto criminoso, e é formalmente legalista e garantístico”[14]. Como alternativa, temos a Justiça Restaurativa que é “… um processo no qual a vítima, o infrator e/ou outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime participam ativamente e em conjunto na resolução das questões resultantes daquele, com a ajuda de um terceiro imparcial”[14]. Ou seja, aproximar os indivíduos e a comunidade afetada pelo crime e, em conjunto, perceber os dois lados. Assim, quem é afetado consegue recuperar mais facilmente, e quem cometeu o crime consegue ter empatia pelas pessoas que magoou e tomar completa responsabilidade e fazer um pedido de desculpas honesto. Os Países Baixos conseguiram, em parte, atingir este objetivo. Apesar de não terem fechado todas as prisões, conseguiram fechar 23 delas em 5 anos[15] e conseguiram atingir a terceira taxa de encarceramento mais baixa da Europa[15]. Para mais, metade das pessoas que entram no sistema prisional apenas recebem uma sentença de 1 mês[15]. Uma psiquiatra de uma instituição de saúde mental nos Países Baixos, que trabalha numa alternativa à prisão com foco na reabilitação de pessoas que cometeram crimes e sofrem de doenças mentais, afirma que a maneira como as pessoas são tratadas durante o período de reabilitação tem um grande impacto em como retornam à sociedade. Afirma: “Se as tratarem como cães, as pessoas comportam-se como cães, mas se as tratarem como seres humanos, elas comportar-se-ão como seres humanos”[15].

Para concluir, existem atualmente provas, estudos e profissionais na área da Justiça e Reabilitação Prisional que garantem que o sistema punitivo não funciona, nem para reduzir o crime, nem para reduzir a taxa elevadíssima de reincidência, nem para recuperar e requalificar as pessoas que já têm de carregar às costas o rótulo de “ex-recluso”. É urgente não só encontrar formas alternativas de ajudar estas pessoas e a comunidade que afetaram, como também de chegar à raiz do problema. Não é preciso menosprezar a gravidade dos crimes cometidos por estas pessoas para saber que é um problema estrutural (e não de pessoas em específico), e que, maioritariamente, deve-se a problemas no seu meio familiar, escolar, económicos e muitos, muitos outros. Ao chegar à raiz do problema e resolvê-lo, ajudando pessoas às quais o Estado falhou, conseguiremos diminuir a taxa de crime e acabar com a prisão como a conhecemos.


Referências:

[1] – https://www.jn.pt/justica/droga-e-telemoveis-encontrados-em-quase-todas-as-celas-da-cadeia-de-pacos-de-ferreira-14186345.html

[2] – https://www.sabado.pt/portugal/detalhe/football-leaks-hacker-rui-pinto-colocado-em-prisao-domiciliaria

[3] – https://www.cm-tv.pt/atualidade/detalhe/prisao-preventiva-para-homem-que-empurrou-e-matou-amigo-por-ter-recusado-cerveja-na-feira?ref=Pesquisa_Destaques

[4] – https://www.dnoticias.pt/2022/3/12/301117-varias-dezenas-manifestam-se-em-lisboa-contra-mortes-na-prisao/

[5] – https://www.dn.pt/sociedade/303-mortes-nas-prisoes-em-cinco-anos-pj-so-foi-chamada-a-investigar-seis-14520106.html

[6] – https://duaslinhas.pt/2022/09/no-arquivo-morto/

[7] – https://www.cmjornal.pt/portugal/detalhe/mae-de-recluso-encontrado-morto-em-prisao-de-lisboa-quer-que-mp-reabra-investigacao

[8] – https://dgrsp.justica.gov.pt/

[9] – https://www.publico.pt/2019/01/15/sociedade/noticia/ministerio-justica-nao-sabe-criminosos-condenados-sao-reincidentes-1857856

[10] – https://www.dn.pt/edicao-do-dia/26-nov-2019/75-dos-reclusos-regressam-ao-crime-e-se-houvesse-uma-justica-restaurativa-11551359.html

[11] – https://www.publico.pt/2020/04/07/sociedade/noticia/penas-prisao-portugal-sao-tres-vezes-longas-media-europeia-1911270

[12] – https://www.jn.pt/justica/nas-prisoes-a-sensacao-e-a-de-estarmos-perante-pobreza-ou-melhor-carencia-12086374.html

[13] – https://www.pordata.pt/portugal/reclusos+total+e+por+nivel+de+instrucao+completo-273

[14] – https://apav.pt/apav_v3/index.php/pt/justica-restaurativa/o-que-e

[15] – https://www.theguardian.com/world/2019/dec/12/why-are-there-so-few-prisoners-in-the-netherlands

[16] – Cullen, Francis & Jonson, Cheryl & Nagin, Daniel. (2011). Prisons Do Not Reduce Recidivism: The High Cost of Ignoring Science. The Prison Journal. 91. 48S-65S. 10.1177/0032885511415224.

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