Infelizmente, #MeToo

Em 2020, a APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima) prestou apoio a mais de 1800 crianças e jovens, sendo a maior parte vítimas do sexo feminino com uma média de 10 anos de idade. Em 2019, entraram 1697 processos de abuso sexual de menores na Polícia Judiciária e apenas 40% foram condenados com prisão efetiva. Passaram-se 10 anos, mas, com muito pesar digo, que o mundo não ficou melhor. Esta foi a minha história.

Autoria: Irina Lopes, MEBiom (IST)

Pratiquei dança num clube desportivo desde os 3 anos. Houve uma altura em que tinha muitas aulas seguidas e a terminar tarde (mais tarde que as minhas colegas). Para fazer tempo até que os meus pais me fossem buscar, comecei a tomar banho nos balneários; a essa hora estava quase sempre sozinha, pois estavam a ocorrer aulas. Depois de sair do banho e de me vestir, saía do balneário e esperava pelos meus pais com o senhor que estava na secretaria, que desde pequena brincava comigo e deixava-me fazer desenhos.  

A partir de uma certa altura (tinha eu 10 anos), o senhor começou a pedir para me sentar ao colo dele, enquanto fazia os desenhos, e acariciava-me as costas; como criança, tomei aquilo como um ato inocente de carinho, visto que ele sempre se mostrara muito afetuoso com toda a gente. 

Um dia, tomei banho, vesti-me e saí do balneário para esperar pela minha mãe que me vinha buscar; como de costume, fiquei junto do senhor a fazer desenhos e ele voltou a pedir-me que me sentasse no seu colo: sentei-me e ele começou a acariciar-me as costas como fazia normalmente (como criança ingénua, continuei a tomar como um ato de carinho). Até que colocou as mãos debaixo da minha camisola e tentou tocar-me nas mamas e eu tentei afastá-lo, ao que ele me prendeu os braços e tentou acariciar-me entre as pernas, colocando a mão dentro das minhas calças e abrindo a braguilha. Antes de ele o conseguir, libertei-me, agarrei na minha mala e saí a correr, a chorar. A minha mãe estava mesmo a chegar e percebeu logo que algo se passava, quando me viu a correr para ela a chorar. Entre soluços, contei-lhe o que se passou e ela abraçou-me (notei que se estava a conter com todas as forças para não ir enfrentar o homem); levou-me para casa, consolou-me e contou ao meu pai.  

Os meus pais fizeram queixa do agressor e, apesar de me tentarem envolver o mínimo possível no processo, tive de ir à Polícia Judiciária prestar o meu testemunho ao inspetor responsável. Uma das piores partes desta situação foi o clube, que eu acarinhava tanto desde pequenina tentar desmentir-me e proteger o agressor, dizendo que eu é que me tinha posto a jeito, que me vestia de forma inapropriada (eu tinha 10 ANOS!) e que era uma miúda de arranjar problemas. Os meus pais tiveram de informar a minha diretora de turma de forma a obter as minhas avaliações escolares com os comentários dos professores a realçar a minha personalidade madura e responsável para a idade, para combater estes argumentos. Até a minha professora de dança, que eu adorava, me veio questionar sobre o acontecimento e pediu esclarecimentos. Senti-me atacada e julgada, como nunca me tinha sentido enquanto criança. Os meus pais descobriram que existiam outras colegas minhas que tinham também sofrido abusos do mesmo agressor, mas as suas família escolheram não reportar. 

O agressor foi despedido no dia seguinte à ocorrência e foi levado a tribunal, onde foi considerado inimputável (não pôde ser responsabilizado por se considerar não ter as faculdades mentais e a liberdade necessárias para avaliar o ato quando o praticou): não sei pormenores, não só porque os meus pais me tentaram manter afastada, mas também porque andei um pouco anestesiada nos tempos seguintes à agressão. Devido ao acontecimento, saí do clube e desisti da dança no próprio dia: algo que sempre me preencheu e que adorava foi manchado por um abuso. A partir daí mudei de desporto e só passado algum tempo consegui voltar ao clube (tinha amigas que andavam lá); também só voltei a dançar muito mais tarde. O trauma faz-me sentir medo de pessoas semelhantes ao agressor (homens mais velhos): conhecendo-os ou não, fico reticente e não gosto de ficar sozinha apenas com eles; nos primeiros tempos, até dos meus avôs sentia receio.  

Fico contente de ter ajudado as minhas colegas que sofriam abusos do mesmo agressor, mesmo que não tenham reportado. Peço às pessoas ATENÇÃO, OLHEM realmente para o que está a acontecer à vossa volta e se acham algo suspeito, aproximem-se e questionem, porque um simples gesto pode salvar vidas.

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