Autoria: João Dinis Álvares (MEFT)
“E se, na aparência, o edifício do Instituto Superior Técnico, para aqueles que na Arquitetura só vêem a pele, se apresenta como obra pobre, lisa e isenta de ornamentações, para outros a sua realização é um luxo. No entanto, não se procurou, nem a pobreza, nem o luxo, mas a medida ajustada às nossas possibilidades económicas, ao nosso poder de realização e acima de tudo à certeza de que seria possível chegar ao fim.”
Vive-se o ano de 1927 e um homem nascido, trinta anos antes, em Pero Pinheiro está prestes a aceitar o projeto que o fez profissionalizar-se a um nível nunca antes visto em Portugal. O seu nome é Porfírio Pardal Monteiro e o projeto as novas instalações do Instituto Superior Técnico.
Comecemos do início.
A Necessidade de Novas Instalações e as Tentativas de Mudança
1917. Passa-se a primeira metade da Primeira Guerra Mundial, os Estado Unidos acabam de entrar nos campos de batalha, James Joyce já publicara o seu “Retrato do Artista enquanto Jovem” e Fernando Pessoa esclarecia o povo sobre o seu neopaganismo: “Eu sou um pagão decadente, do tempo do outono da Beleza”.
É nesta altura que Alfredo Bensaúde [1] faz “notar que as instalações do Técnico já não eram suficientes para a quantidade de alunos que se matriculavam”, fazendo com que se começasse a delinear o projeto para umas novas. Já prevendo a necessidade de expansão, em 1915, Afonso Costa, uma das principais figuras da Implantação da República, dá o aval “à inscrição de um empréstimo no orçamento de Estado do ano 1914/1915 para este projecto” [2]. O arquiteto Ventura Terra ficou encarregue de conceber este projeto, que acabou por não ser levado avante.
Entretanto, as instalações na Rua da Boavista (ou Boa Vista, dependendo da fonte) foram expandidas, por necessidade, tendo sido contratado António Birne Pereira [3] para projetar o novo laboratório de Química, em 1923. Passados anos, António Birne Pereira, açoriano da Horta, foi um dos enviados de Duarte Pacheco ao estrangeiro, de modo a trazer as novidades da Europa para modernizar o país. Porém, os arquivos revelam que não era a pessoa mais ativa: recebeu um processo disciplinar pela Administração Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, onde se apresenta como “provado que o engenheiro Byrnes (sic) Pereira manifestou negligência e má vontade na execução de trabalhos de que tinha sido encarregado pela Direcção, deixando de executar a parte que lhe competia como engenheiro e não dando àqueles trabalhos a unidade da Direção que lhe competia como chefe.” [3], entre outros. Um destes trabalhos era a projeção do laboratório de Química, que deveria ter ficado pronto muito antes de 1923.
Um aparte, hoje em dia, devido à importância do Instituto Industrial e Comercial de Lisboa, a rua que liga a Rua da Boavista à Avenida 24 de julho chama-se Rua do Instituto Industrial.
Em 1923, tal como acontecia todos os anos, dezenas de alunos de Engenharia Eletrotécnica terminaram o seu percurso académico. Um deles, no ano seguinte, foi contratado para professor assistente e dois anos depois já se tinha tornado professor catedrático. Em simultâneo, o então segundo presidente do Instituto Superior Técnico, Eduardo Augusto Ferrugento Gonçalves, preparava-se para abandonar o cargo, por motivos de saúde. Abria-se assim espaço para o terceiro presidente do Técnico. Seria o mais novo alguma vez a ser eleito e o futuro reservava-lhe ainda muito. Salazar erguê-lo-ia ao estatuto de herói nacional.
O seu nome era Duarte Pacheco.
Um pouco de contexto sobre Porfírio Pardal Monteiro
Não sendo o propósito deste artigo dissecar a história do arquiteto que lhe dá nome, faça-se um pequeno apanhado do seu trabalho até à projeção das novas instalações do Instituto Superior Técnico, em 1927.
Nasceu numa família de pedreiros, que mais tarde se tornaram empresários da construção civil, e estudou na Escola de Belas Artes de Lisboa, onde teve a hipótese de trabalhar com vários arquitetos que o impactaram profundamente e o prepararam para a modernização arquitetónica que Portugal tardava em acompanhar. Pouco depois, Porfírio Pardal Monteiro aceita o cargo de primeiro-assistente da cadeira de Arquitetura do curso de Engenharia Civil, no Técnico; em simultâneo, entra ao serviço de arquitetura da Caixa Geral de Depósitos (CGD) e projeta as sucursais desta em Alcântara, Setúbal e Porto [4].
A filial do Porto é o seu primeiro grande trabalho e, logo a seguir, ingressa na projeção da estação do Cais do Sodré, sendo aquela que ainda hoje se mantém de pé.
A construção do Cais termina cerca de um ano depois de lhe ter sido entregue o projeto das novas instalações do Instituto Superior Técnico, pelas mãos de Duarte Pacheco, já diretor.
Perto desta data, Duarte Pacheco faz algo que iria mudar o rumo da história de Portugal: vai a Coimbra convencer António de Oliveira Salazar a regressar ao Ministério das Finanças. O resto da história já é conhecida.
Porfírio Pardal Monteiro, Duarte Pacheco e a nova imagem do Instituto Superior Técnico
Na Torre do Tombo, é possível encontrar o empréstimo feito para a construção das novas instalações. Com este dinheiro, os alunos do Instituto Superior Técnico poderiam começar a sonhar com instalações de qualidade e espaço para todos os alunos poderem estudar e conviver.
Foi durante a construção das novas instalações que Duarte Pacheco e Porfírio Pardal Monteiro se tornaram bastante próximos e fariam até visitas ao estrangeiro em conjunto, para descobrirem como modernizar Portugal.
O melhor registo que encontrei do processo de construção é o artigo publicado pelo próprio arquiteto, na Revista Oficial do Sindicato Nacional dos Arquitetos, a 4 de maio de 1938 [7], pelo que a minha voz se calará para dar lugar à de Porfírio Pardal Monteiro. Deixarei também que os fotógrafos Mário Novais e Horácio Novais nos emprestem as suas lentes, para que possamos olhar para o passado.
“O projecto para as instalações do Instituto Superior Técnico foi concebido de harmonia com a própria organização do ensino, a qual abrange, além de um curso geral, cinco cursos especiais de engenharia: Civil, Máquinas, Electricidade, Química e Minas. Inicialmente chegou a prever-se a hipótese de destinar um pavilhão a cada curso, inclusivé ao curso geral, mas os primeiros cálculos levaram à modificação do primitivo programa, o que deu origem ao partido de composição que o conjunto arquitetural hoje apresenta.”
“Assim, no pavilhão principal agrupam-se, não só todos os serviços de direcção e administração, como os cursos geral e de engenharia civil. Nos quatro pavilhões do corpo médio da actual composição, instalam-se respectivamente os outros quatro cursos de especialidade.”
“Com este partido poupou-se a construção de um pavilhão, tendo-se acrescentado ao programa das instalações dos outros as partes de cada curso que mais afinidades têm com as diversas especialidades. Deste modo, os laboratórios e anfiteatros de química, de física, de eletrotecnia, etc., embora frequentados por alunos dos diversos cursos, agrupam-se respectivamente nos pavilhões de Engenharia, Química, Mecânica e da Electrotecnia. Dois dos outros pavilhões, o das Oficinas e do Gimnásio, completam o actual conjunto de edifícios.”
O terreno acidentado, denominado por “antigas quintas do Arco do Cego”, onde o campus da Alameda do Técnico assentaria e a falta de planeamento urbano para esta zona da cidade [8] trouxeram bastantes desafios. “Contudo, os obstáculos precisamente tentavam-me e não ficaria de bem com a minha consciência se não confessasse que foi com verdadeiro entusiasmo e vontade de vencer que me lancei no estudo dêste problema.”
“Na ocasião em que estudei o projecto para o Instituto Superior Técnico eu não sabia fazer melhor e para chegar àquele resultado não me poupei a trabalhos, estudando, comparando, analisando cada caso isoladamente e no conjunto e solucionando-o o melhor que pude.”
“Tôda a minha satisfação, como português e como arquitecto, consiste em ter procurado contribuir para acabar com a lenda de que para realizar obras de tão grande vulto era necessário recorrer a arquitectos estrangeiros. É certo que o que fiz não é ainda quanto desejaríamos, mas êste e outros casos resolvidos pelos arquitectos portugueses hão de conduzir a resultados melhores.”
“E, para que êste primeiro resultado possa servir de ponto de partida para outros mais perfeitos e em que os arquitectos portugueses se lancem com mais garantias de êxito, permito-me dar conta do modo como, sob os vários aspectos, o problema foi encarado e resolvido.”
Ponderando cada sala de acordo com o curso e necessidades das aulas específicas, o processo de desenhar o novo Instituto exigiu um constante repensar.
“Só depois de fazer uma idéa do desenvolvimento e das características próprias de cada peça essencial me abalancei a lançar as primeiras tentativas de solução para o partido geral da composição. E procedi assim porque me pareceu que doutro modo seria impossível dar satisfação ao programa.”
“O volume da construção que um tão desenvolvido programa atingia, não podia, por diversos motivos, ser concentrado num único edifício: Primeiro, porque a divisão dos cursos em especialidades impunha a previsão de futuras ampliações, consequentes do desenvolvimento de cada uma dessas especialidades; segundo, porque os perfis do grande lote de terreno que ao novo Instituto Superior Técnico estava destinado não eram favoráveis à concentração de tôdas as instalações num único edifício.”
“Assim, os pavilhões de Mecânica e Electrotecnia deveriam formar um grupo dentro do conjunto geral, o mesmo acontecendo com os de Química e de Minas. Qualquer dêstes grupos não podia estar demasiado distante do Pavilhão Central, onde se concentrariam não só os serviços de Direção e de Administração como os cursos Geral e de Engenharia Civil.”
“Em resumo, tratava-se de construir uma escola técnica, uma escola para engenheiros, e foi êsse destino que sem ideias preconcebidas procurei exprimir na feição plástica do conjunto arquitectónico. […] A construção dos pavilhões destinados às Oficinas e às Instalações para estudantes iniciou-se quando a dos outros edifícios já estava relativamente adiantada.”
Do sentido da fachada da faculdade, Porfírio acrescenta que “a previsão, no plano municipal, duma vasta alameda, a alameda de D. Afonso Henriques – que viria a valorizar tôda a região – forçava a considerar como lado principal da composição o que para essa alameda ficasse voltado.”
“A proximidade do importante bairro das «Avenidas Novas» – do qual três ruas transversais passavam a participar do novo conjunto urbanizado – exigia que se considerasse o efeito arquitectural pelo lado oposto à alameda; contudo, tôda a importância deveria ser concentrada para êste lado, embora ao iniciarem-se as obras nada tivesse sido feito pela Câmara Municipal de Lisboa que não nos fizesse correr o risco de construir o Instituto Superior Técnico, com a sua frente principal voltada para um terreno, constituído por quintas, na mais completa desordem urbana e cujo arranjo o povo desconhecia, por estar, então, apenas em planos e a sua realização envolver um largo emprêgo de capital de que talvez a Câmara nessa altura não dispusesse.”
“Haveria no entanto que olhar longe e ter fé no caminho das nossas coisas. A própria construção do novo Instituto Superior Técnico deveria influir seriamente na orientação da Câmara Municipal de Lisboa quanto à conclusão das obras de urbanização projectadas para o local.”
“Em meados do ano lectivo de 1935-36 funcionavam já, nas novas instalações, alguns dos serviços, e no de 1936-37 fôram definitivamente abandonadas as velhas instalações da Rua da Boa Vista.”
Começou assim uma nova etapa na vida da faculdade, que continua até hoje, tendo-se expandido em anos subsequentes com a adição do campus do Taguspark e do Campus Tecnológico e Nuclear (CTN).
Pardal Monteiro, já mais no final do artigo, deixa uma mensagem importante sobre a aparência que carateriza o campus da Alameda.
“A própria experiência adquirida durante os trabalhos da construção veio acentuar a tendência de simplificação, o que de facto se pode verificar facilmente comparando as soluções de cada caso idêntico, no primeiro pavilhão e nos outros.”
“E se na aparência o edifício do Instituto Superior Técnico, para aqueles que na Arquitetura só vêem a pele, se apresenta como obra pobre, lisa e isenta de ornamentações, para outros a sua realização é um luxo. No entanto, não se procurou, nem a pobreza, nem o luxo, mas a medida ajustada às nossas possibilidades económicas, ao nosso poder de realização e acima de tudo à certeza de que seria possível chegar ao fim.”
Termina o artigo com uma demonstração de afeto e respeito enormes por Duarte Pacheco, consolidando a sua proximidade.
“Pela primeira vez, em Portugal, pelo menos nos últimos decénios, foi possível projectar-se uma obra, iniciá-la, concluí-la e pô-la a funcionar sem solavancos, sem hesitações e sem emendas.”
“E estas possibilidades, este resultado, devem-se essencialmente e apenas à circunstância de, à testa do IST, e depois à testa da administração das obras, o Governo ter posto um homem, (nesse tempo rapaz), cuja vontade de ferro, cuja inteligência e cujas qualidades de trabalho causavam a admiração de todos os que com ele privavam. Esse homem merece de todos os portugueses o mais vivo testemunho de reconhecimento porque só às suas excelentes qualidades se deve a realização da obra que domina hoje tôdas as Avenidas Novas. Ninguém suspeitava, então, para que altos desígnios ele estava reservado, mas a Providência, que nunca desamparou esta terra onde os portugueses nascem, soube distingui-lo e levá-lo até onde ele deveria ir e onde poderia ser ainda mais útil à grei.”
“O Instituto Superior Técnico não foi o campo de tirocínio do Engenheiro Duarte Pacheco, mas proporcionou-lhe uma ocasião única, que ele aproveitou como raros, para ter maior contacto com todas as actividades que à sombra da Arquitectura vivem.”
“O Instituto Superior Técnico, a cuja realização dediquei toda a minha energia, todo o escrúpulo profissional, no intuito de bem servir, é fundamentalmente uma consequência apenas dos méritos superiores do Engenheiro Duarte Pacheco, de quem fui apenas um leal e dedicado colaborador.”
PS: Por motivos de completude, deixo aqui uma última parte, sobre o resto da vida de Porfírio Pardal Monteiro.
O resto da vida do Arquiteto de Lisboa
Depois do Técnico, seguiram-se os desenhos do Instituto Nacional de Estatística, a Igreja de Nossa Senhora de Fátima, a Rocha do Conde de Óbidos, os hotéis Mundial, Tivoli e Ritz, a Biblioteca Nacional, a Cidade Universitária de Lisboa, o edifício do Diário de Notícias, entre outros. Em 1942, foi nomeado professor catedrático da cadeira de Arquitetura, no Técnico, tendo ao mesmo tempo participado nos movimentos sindicalistas nacionais e internacionais pela defesa da classe dos arquitetos.
Perto de 1940, a dupla que se tornara quase inseparável, Porfírio Pardal Monteiro e Duarte Pacheco, chega ao seu fim. Quando Pardal Monteiro, o arquiteto de confiança de Duarte Pacheco, lhe trazia os planos, o último gostava de os comentar, riscando-os, algo que o primeiro não apreciava. Por isso, numa das vezes, Pardal Monteiro trouxe um desenho encoberto de vidro, ao que Duarte Pacheco não comentou e, a partir daí, a relação entre ambos degradou-se. Há a possibilidade de terem existido outros motivos [9], mas não há muito consenso histórico sobre quais. O que é certo é que a dupla que desenhou e construiu a Lisboa do Estado Novo terminara o seu trabalho conjunto por volta dessa altura.
Sendo um dos arquitetos mais importantes do século XX, Porfírio Pardal Monteiro marcou a arquitetura que hoje se associa à ditadura. Sem grandes movimentações políticas, Pardal Monteiro era, acima de tudo, arquiteto e apaixonado pelo que fazia, tendo sido usado pelo regime como instrumento para reabilitar a paisagem de Portugal.
Em 1956, sofre o primeiro de pelo menos dois acidentes vasculares cerebrais, que o forçaram a parar de trabalhar. Deprimido, suicidou-se no dia 16 de dezembro de 1957.
Nota: Há vários livros que contam com mais cuidado a vida e obra do arquiteto, pelo que remeto o leitor para as seguintes obras: Biografia de Pardal Monteiro, por Ana Tostões (professora de Arquitetura no IST); Pardal Monteiro 1919-2012, de João Pardal Monteiro e Manuel Pardal Monteiro; Fotobiografias do Século XX – Pardal Monteiro, de Joaquim Vieira; P. Pardal Monteiro: Arquitecto, da Ass. Arquitectos Portugueses, entre muitas outras obras.
Referências:
[1] – Foco, Crise e Guerra: Foi Assim que o Técnico nasceu, João Dinis Álvares, Diferencial [Acedido a 4 de maio de 2024]
[2] – A Cidade do Saber. Estudo do Património Artístico integrado nos edifícios projectados pelo arquitecto Porfírio Pardal Monteiro para a Cidade Universitária de Lisboa (1934-1961), Ana Mehnert Pascoal [Consultado a 4 de maio de 2024]
[3] – Biblioteca e Arquivo Histórico de Economia, PT/AHMOP/PI/125/015 [Consultado a 10 de setembro de 2023]
[4] – Porfírio Pardal Monteiro, Wikipedia [Acedido a 4 de maio de 2024]
[5] – Gabinete de Património Histórico-Arquivo Histórico da Caixa Geral de Depósitos, Filiais e Agências – Filial do Porto [Acedido a 4 de maio de 2024]
[6] – Lisboa de Antigamente – A Estação do Cais de Sodré [Acedido a 4 de maio de 2024]
[7] – Revista Oficial do Sindicato Nacional dos Arquitectos, Director: Arquitecto Cottineli Telmo, 4 maio 1938, Fundação Calouste Gulbenkian – Biblioteca de Arte, Cota PAQT 133. [Consultado a 4 de maio de 2024]
[8] – Recomposições e representações sociais das Avenidas Novas numa cidade em transformação, Fernando Pinto, ISCTEL-IUL (2018) [Consultado a 4 de maio de 2024]
[9] – Pardal Monteiro, Biografia, Ana Tostões, IST [Consultado a 4 de maio de 2024]